Movimento
de abstinência sexual ganha força após eleição de Trump
Movimento
feminista sul-coreano 4B viralizou após eleição americana. Proposta rejeita
casamento, filhos, relacionamento sexual e namoro com homens para combater a
misoginia.
Christine
Ivans diz que foi difícil quando começou a se afastar de relacionamentos com
homens, aos 30 anos. A decisão partiu de uma reavaliação de suas prioridades:
investir toda a sua energia em si mesma em vez de tentar encontrar o
"homem ideal".
Alguns
meses se passaram. Depois, alguns anos. "Estou feliz. Fui promovida,
ganhei um aumento e minha saúde mental melhorou", diz Ivans oito anos
depois.
Mas
foi somente quando descobriu o movimento 4B (sigla que significa "quatro
nãos") no TikTok, que ela percebeu que não estava sozinha. "Os quatro
nãos são: nada de casamento, nada de filhos, nada de namoro ou relacionamentos
sexuais com homens – tudo isso eu venho praticando há algum tempo",
explica.
O
movimento 4B, que surgiu na Coreia do Sul em meados da década de 2010, se
popularizou gradualmente entre o público americano.
No
início deste ano, por exemplo, a atriz americana Julia Fox declarou sua
abstinência sexual em resposta à revogação de uma decisão judicial de 1973 da
Suprema Corte dos EUA queestabelecia o direito constitucional ao aborto até a
24ª semana de gravidez. Em 2022, o mesmo tribunal anulou este entendimento e
devolveu aos 50 estados do país a jurisdição sobre a questão. "Senti que,
se eles iriam tirar os direitos que temos sobre os nossos corpos, essa seria
minha forma de recuperá-los", disse Fox em um episódio do podcast Zach
Sang Show.
Mas
foi após a eleição americana deste ano, que reconduziu o republicano Donald
Trump à Casa Branca, que o movimento 4B ganhou força. As buscas no Google sobre
o termo explodiram entre a véspera e os dias seguintes ao pleito americano, em
5 de novembro. Milhares de mulheres compartilharam suas experiências de
abstinência em vídeos no TikTok. Muitas inclusive rasparam o cabelo – uma marca
entre as adeptas ao movimento.
A
sul-coreana Mingyeong Lee, que faz parte do movimento desde sua fundação, se
diz feliz em ver o perfil da 4B crescer tão rapidamente. "Eu estava
esperando que isso acontecesse. Demorou oito anos para chegar até vocês",
disse ela à DW.
Mingyeong
vê semelhanças entre as lutas pelos direitos das mulheres nos EUA e na Coreia
do Sul. "Há oito anos, descobrimos que nossos amigos, pais ou outros
homens próximos a nós não compartilhavam nossa perspectiva sobre questões de
gênero", explica ela.
Ela
se refere a um feminicídio que aconteceu em Seul, capital da Coreia do Sul, no
qual um homem matou uma mulher no banheiro de um bar e alegou que o fez porque
ela o havia ignorado a vida inteira.
O
assassinato deu força a uma nova onda de movimentos feministas na Coreia do
Sul, liderada por mulheres jovens que denunciaram o problema da misoginia no
país. Em 2019, nove entre dez vítimas de crimes violentos no país eram
mulheres, de acordo com o procuradoria-geral da Coreia do Sul. Um relatório
publicado pela ONU nesta semanaaponta que uma mulher ou menina é assassinada a
cada 10 minutos no mundo por seu parceiro ou por um membro da família.
<><>
Mulheres atacadas por "parecerem feministas"
O
movimento viu mulheres construindo solidariedade por meio da resistência, mas
também enfrentou uma reação negativa. "As mulheres que usam cabelo curto
são rotuladas como doentes, assediadas e até mesmo agredidas fisicamente,
porque se parecem com feministas", diz Seohee Lee, estudante sul-coreana e
ativista do 4B.
Ainda
assim, Seohee diz que o movimento não se trata de vingança, mas de criar uma
comunidade segura para as mulheres. "As coreanas estão resistindo às
ameaças do patriarcado de uma forma silenciosa, mas altamente eficaz."
Mingyeong
Lee, por exemplo, tem 32 anos e não quer ter filhos. Ela nasceu em uma época em
que o aborto de fetos do sexo feminino ainda era popular na Coreia do Sul,
apesar de o país ter promulgado uma lei em 1988 que proibia os médicos de
revelar o sexo da criança.
Ainda
assim, a Coreia do Sul tem hoje a menor taxa de natalidade do mundo – um índice
que seu presidente, Yoon Suk-Yeol, atribui ao feminismo. Segundo a Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a nação está entre os
países com maior disparidade salarial entre homens e mulheres. "Este é um
lugar cruel para as mulheres", explica Mingyeong. "Se dermos à luz
meninas, elas não estarão seguras nem felizes."
<><>
Políticas de Trump reforçam movimento
Ivans
vive no estado de Seattle, Washington, a 8 mil quilômetros de distância de
Mingyeong e também não quer ter filhos.
Assim
como Mingyeong e Seohee, Ivans percebeu que pouquíssimos homens em sua vida
compartilhavam de sua consideração pelos direitos das mulheres. Seu pai era um
dos homens que não liga para essa questão. Apesar de quase ter perdido sua
esposa devido a uma gravidez de alto risco, ele votou em Donald Trump.
Durante
seu primeiro mandato, Trump indicou três dos juízes da Suprema Corte que
votaram para derrubar o direito ao aborto nos EUA. O republicano chamou a
decisão de "uma coisa linda de se ver" e opositores apostam que
osegundo mandato do republicano pode ser ainda pior para o direito das
mulheres.
A
ideia de engravidar e não ter acesso a um aborto seguro aterroriza Ivans.
"Meu pai diz que se preocupa com os direitos das mulheres. Mas, na hora do
voto, ele diz que há coisas mais importantes", conta. "Então, a essa
altura, quando influenciadores estão gritando slogans como 'seu corpo, minhas
regras' por toda a internet, o próximo passo lógico é algo como o movimento
4B", acrescenta.
O
slogan citado por Ivans foi propagado pelo influenciador de ultradireita e
supremacista branco Nick Fuentes logo após a vitória de Trump. Ele provoca
indignação, mas é mais do que apenas palavras.
De
acordo com a Pesquisa Nacional sobre Parceiros Íntimos e Violência Sexual dos
EUA, duas em cada dez mulheres do país são estupradas em algum momento de suas
vidas, e quase metade sofre violência sexual além do estupro.
Tendo
seus direitos e corpos atacados, mulheres como Ivans estão se inspirando nas
feministas sul-coreanas e em seus métodos de resistência. "O sexo é uma
linguagem que os homens entendem", explica. "O movimento 4B diz: 'Ei,
eu vou tirar isso até que você esteja ouvindo'. Não como uma punição, mas como
uma forma de chamar a atenção."
<><>
Linguagem universal
A
ativista Seohee Lee está feliz que as americanas estejam adotando o movimento
4B. Ela se pergunta se elas estão vivenciando o que ela sentiu quando a Coreia
do Sul elegeu Yoon Suk Yeol, cuja campanha prometia abolir o Ministério da
Igualdade de Gênero e Família.
Seohee
não se surpreende com o fato de as mulheres nos EUA também enfrentarem
resistência por usarem a abstinência para defender o direito ao aborto.
"Afinal, sou uma feminista que os homens odeiam e detestam", diz ela.
• O que está por trás da
moda das "esposas tradicionais"
Nara
Smith usa um vestido de noite vermelho com lantejoulas enquanto prepara
cuidadosamente um jantar com kimchi (uma comida tradicional coreana) para os
três filhos e o marido. O cabelo da jovem de 23 anos está perfeitamente
penteado e a maquiagem, impecável: é assim que ela sempre aparece em seus
vídeos no TikTok ou no Instagram.
Roupas
igualmente chiques são usadas quando Smith cria versões caseiras de tudo: de
refrigerante a creme de avelã e chocolate. A influenciadora americana faz parte
da crescente tendência no TikTok tradwife, abreviação em inglês para
"esposa tradicional". Perfis e a hashtag tradwife promovem os papéis
tradicionais de gênero, com conteúdo sobre culinária e cuidados com os filhos.
Nara Smith já soma mais de 9 milhões de seguidores no TikTok e mais de 4
milhões no Instagram.
Hannah
Neilman, de 34 anos, é uma influenciadora conhecida no TikTok como
"Ballerina Farm". Na rede social, ela mostra sua vida em uma fazenda
em Utah (EUA), onde organiza a casa, ordenha vacas, cultiva vegetais e cria
oito filhos com o marido. Com quase 10 milhões de seguidores na rede social, a
ex-bailarina, modelo e influenciadora incorpora um novo movimento online que
promove a felicidade doméstica no estilo americano dos anos 50.
Tradwife:
raízes históricas ou um ideal imaginado?
O
movimento da "esposa tradicional" começou a ganhar popularidade nas
mídias sociais há cerca de seis anos. Há quem diga que ele está ligado a um
fórum antifeminista e misógino no Reddit, chamado "Red Pill". No
filme Matrix, tomar a pílula vermelha (a red pill) significa ser despertado
para a verdade - nesse caso, uma metáfora adotada por homens que sentem que sua
masculinidade foi reprimida e que anseiam por papéis de gênero convencionais.
mostrar
conteúdo de Instagram
Mas
a noção de esposa tradicional remonta ao ideal da família dos anos 50 nos EUA.
Atualmente, essa ideia é uma fantasia nostálgica e classista, acredita Lisa
Wade, professora de sociologia do programa de estudos de gênero e sexualidade
da Universidade Tulane, em Nova Orleans (EUA).
Nos
primórdios da história dos EUA, a maioria das famílias funcionava como uma
pequena empresas na qual marido e mulher contribuíam para a viabilidade
econômica, explica Wade.
"O
ideal de um marido provedor e uma esposa dona de casa surgiu na década de 1950,
mas rapidamente se desfez", conta à DW. "Na década de 1970, o modelo
de família com dois salários tornou-se dominante devido à necessidade
econômica, pois era cada vez mais difícil sustentar uma família com uma única
renda", explica.
A
pesquisadora acredita que a tendência tradwife "escolhe a parte da
história que convém: um breve período em que homens brancos ricos e de classe
média podiam se dar ao luxo de ter esposas que ficavam em casa". Mas isso
ignora as realidades econômicas da maioria das famílias dos tempos atuais, diz
Wade.
A
tendência da esposa retrógrada atrai tantos fãs quanto haters. Alguns admiram a
feminilidade dessas influenciadoras e sua escolha de se concentrar em suas
famílias. Outros argumentam que essas mulheres retratam papéis de gênero
ultrapassados e estão efetivamente se tornando prisioneiras em suas próprias
casas.
Críticos
dizem que o estilo de vida retratado é irrealista e inatingível para a maioria.
Ser uma influenciadora tradicional nas mídias sociais é, por si só, um trabalho
em tempo integral para aquelas que são bem-sucedidas o suficiente para
monetizar sua produção.
<><>
Onde esposas tradicionais e ultradireita se encontram
Alguns
também questionam se a promoção desse tipo de idílio doméstico faz parte de uma
guerra cultural que atende a determinados fins políticos.
De
acordo com a socióloga Viktoria Rösch, as tradwives fazem parte de uma
discussão mais ampla sobre os papéis de gênero e como se deseja viver em
sociedade. Mesmo que elas não se considerem políticas, sua representação de uma
ordem de gênero específica as torna uma ferramenta útil para grupos de extrema
direita, acrescenta Rösch. As tradwives tendem a culpar o feminismo moderno
pelas dificuldades que as mulheres enfrentam atualmente, como equilibrar
carreira e família. Isso reforça as ideias da extrema direita sobre a família e
os papéis de gênero, detalha Rösch à DW.
O
partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), normalmente
conhecido por sua posição conservadora em relação a questões familiares e de
gênero, tem conseguido aumentar sua popularidade entre as mulheres. O apoio ao
AfD ainda é impulsionado principalmente por homens. No entanto, 15% das
mulheres na Alemanha na faixa etária de 30 a 44 anos apoiam a legenda, segundo
pesquisa realizada este ano pela empresa de radiodifusão alemã RTL.
A
AfD usa em suas campanhas imagens que refletem ideias também promovidas - mesmo
que inconscientemente - pelas tradwives. Por exemplo, uma publicação do partido
no Instagram faz uma comparação entre "feministas modernas" e
"mulheres tradicionais", por meio do uso de estereótipos negativos,
como atratividade, escolhas de carreira e valores.
<><>
Kamala Harris: outra versão da feminilidade
Com
a aproximação da eleição presidencial dos EUA, a moda das esposas tradicionais
contrasta fortemente com a vida da vice-presidente americana Kamala Harris, que
este ano concorre à Casa Branca pelo partido democrata.
Harris
representa a mulher voltada para a carreira. Ela não teve filhos, mas ajudou a
criar os dois enteados.
JD
Vance, o candidato republicano à vice-presidência, fez comentários polêmicos
sugerindo que as mulheres deveriam priorizar a criação dos filhos em detrimento
da carreira. A candidatura de Harris, assim, desafia exatamente essas
expectativas tradicionais, ressalta Wade.
Esse
contraste torna a eleição americana um momento fundamental para determinar o
que a próxima geração de mulheres realmente deseja, inclusive a liberdade de
escolher a vida que desejam levar.
<><>
Esposa tradicional e esposa troféu: qual a diferença?
Outra
moda que chama atenção nas redes sociais é a das "esposas troféu",
que também são mantidas financeiramente pelos maridos e não trabalham
formalmente. A grande diferença é que as esposas tradicionais fazem tudo em
casa e as troféu, delegam. Nas redes sociais, elas mostram que, dentro de casa,
apenas "orientam as funcionárias" para que estas realizem os
trabalhos domésticos ou os cuidados com os filhos.
Para
as "esposas troféu", a estética também é muito importante. A
influenciadora Bruna Testoni Almeida, por exemplo, compartilha seu dia a dia de
cuidados estéticos e soma meio milhão de seguidores no TikTok.
A
rotina das esposas troféu inclui academia, salão de beleza, compras de artigos
de luxo, tratamentos estéticos e tudo mais que as mantenham no padrão de beleza
idealizado pela sociedade.
Mas
a possibilidade de manter uma vida de luxo ao abrir mão da carreira para se
dedicar a um relacionamento, onde o parceiro é o provedor, não faz parte da
realidade da maioria das mulheres, sobretudo no Brasil, motivo pelo qual as
duas tendências parecem muito distantes da maioria das famílias.
Fonte:
DW Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário