O país com
áreas inundadas onde pessoas morrem de sede
As
pessoas que retiram a água turva de uma pequena lagoa em Unity, no Sudão do
Sul, sabem que ela não é segura para o consumo.
"Sabemos
que é uma água ruim, mas não temos outro lugar, estamos morrendo de sede",
diz Nyatabah. Ela vive na comunidade e cria gado próximo a um campo de
petróleo.
Unity,
uma das principais regiões produtoras de petróleo, sempre enfrentou inundações
sazonais.
Em
2019, no entanto, chuvas extremas deixaram vilarejos, pastagens e florestas
debaixo d'água.
Ano
após ano de chuvas intensas se seguiram. A água se acumulou, retida no solo
argiloso.
Grandes
áreas do Estado estão submersas há vários anos após a inundação, que, segundo
cientistas, foi agravada pela mudança climática.
No
pior momento, em 2022, dois terços de Unity estavam submersos, segundo o
Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU – e, ainda hoje, cerca de 40%
continuam debaixo d’água.
O
ex-engenheiro de petróleo David Bojo Leju afirma que as cheias na região estão
levando a poluição para as fontes de água.
Ele
diz que a inundação é um "desastre" e que a poluição de instalações
de petróleo mal geridas é uma "assassina silenciosa" que se espalha
por Unity.
O
Sudão do Sul é o país mais jovem do mundo e um dos mais pobres, com um governo
extremamente dependente da receita do petróleo.
Legenda
da foto,David Bojo Leju obteve asilo na Suécia depois de ter sido alvo de
pressões no Sudão do Sul
O
ex-engenheiro Bojo Leju trabalhou por oito anos no consórcio de petróleo
Greater Pioneer Operating Company (GPOC), uma joint venture entre empresas de
petróleo da Malásia, Índia e China — o governo do Sudão do Sul possui 5% de
participação na companhia.
Após
o rompimento de um oleoduto há cinco anos, ele começou a fotografar e filmar
poças de água oleosa e o solo escurecido em várias localidades no Estado de
Unity, incluindo áreas próximas a Roriak, onde vivem grupos que criam rebanhos.
Ele
afirma que vazamentos de poços e oleodutos eram "uma situação
recorrente". Ele relata que o solo contaminado era transportado para longe
de estradas, para não ser visível.
Bojo
Leju expressou suas preocupações aos gerentes da empresa, mas diz que pouco foi
feito e que "não havia plano de tratamento para o solo".
Ele
também afirma que a água liberada do solo durante a extração de petróleo, que
frequentemente contém hidrocarbonetos e outros poluentes, não era devidamente
tratada.
Ele
afirma que diariamente havia relatos de alto teor de óleo na água liberada da
extração do petróleo, acima dos padrões internacionais, e que "essa água
era injetada de volta no ambiente".
"A
questão é: para onde vai essa água?", ele questiona. "Vai para o rio,
para a fonte de água onde as pessoas bebem, para as lagoas onde as pessoas
pescam."
Bojo
Leju explica que produtos químicos do petróleo infiltraram no lençol freático e
vão para poços artesianos. "O lençol freático está contaminado", diz.
Quando
as chuvas intensas começaram em 2019, diques de terra foram erguidos ao redor
de alguns vazamentos de óleo. "Mas isso não foi suficiente para suportar o
volume de água", acrescenta.
Em
Roriak, não há dados disponíveis sobre a qualidade da água consumida pelos
habitantes, mas eles temem que a poluição esteja prejudicando a saúde de seus
rebanhos. Segundo eles, bezerros têm nascido sem cabeça ou sem membros.
O
ministro da Agricultura do Estado de Unity atribui a morte de mais de 100 mil
cabeças de gado nos últimos dois anos às inundações combinadas com a poluição
do petróleo.
Em
uma floresta próxima a Roriak, um grupo de homens e mulheres derruba árvores
para fazer carvão. Eles caminharam por oito horas por estradas de terra
encharcadas por águas da enchente para chegar à floresta.
Eles
dizem que a única água disponível no local está poluída. Mesmo fervida,
"causa diarreia e dor abdominal", conta uma mulher.
Outra
mulher, Nyeda, enxuga as lágrimas, dizendo que precisa do carvão para vender,
mas está preocupada com seus sete filhos, deixados com a mãe por uma semana.
"Ela também não tem nada", afirma.
Nyeda
vive perto da capital do estado, Bentiu, numa cabana em um campo que abriga 140
mil pessoas que fugiram de conflitos ou das enchentes. A área é completamente
cercada por água e protegida apenas por diques de terra.
Eles
recebem apoio alimentar, mas muitos na região sobrevivem buscando raízes de
lírio-d'água e peixes para complementar suas refeições. Água potável é escassa.
Nyeda
usa água de um poço artesiano para lavar e cozinhar, mas precisa comprar água
para beber.
Profissionais
de saúde e políticos da região disseram à BBC que temem que a poluição e a
falta de água limpa estejam afetando a saúde da população.
Em
um hospital em Bentiu, uma mãe acaba de dar à luz. O nariz e a boca de seu
recém-nascido estão unidos.
"Eles
não têm acesso à água potável", diz Samuel Puot, um dos médicos que cuidam
do bebê. "Eles apenas bebem do rio, onde água e óleo se misturam. Esse
pode ser o problema."
Ele
afirma que há muitos casos de crianças nascendo com anomalias, como ausência de
membros ou cabeça pequena, tanto em Bentiu quanto em Ruweng, uma área produtora
de petróleo ao norte do Estado de Unity.
Elas
morrem em dias ou meses, relata o médico.
Testes
genéticos podem fornecer pistas sobre as causas das anomalias congênitas, mas o
hospital não dispõe de instalações para isso, e os resultados frequentemente
não são conclusivos.
Puot
defende que o governo mantenha informações sobre os casos. Como os dados não
são registrados de forma sistemática, não está claro se esses relatos indicam
uma prevalência incomum de anomalias congênitas.
A
poluição ambiental é um fator de risco para as anomalias congênitas, além da
genética, idade materna, infecções e má nutrição, afirma Nicole Deziel,
especialista em saúde ambiental da Universidade de Yale (EUA).
Substâncias
liberadas na produção de petróleo podem afetar o desenvolvimento fetal, afirma
Deziel.
"Os
relatos anedóticos podem servir como indicadores importantes de problemas de
saúde ambiental", diz. Mas ela ressalta que, sem a extração sistemática de
dados, é difícil estabelecer provas de uma relação causal.
Em
2014 e 2017, a organização não governamental Sign of Hope, sediada na Alemanha,
realizou estudos em campos petrolíferos no Estado de Unity.
Eles
encontraram um aumento da salinidade e concentrações elevadas de metais pesados
na água perto dos poços de petróleo, assim como concentrações elevadas de
chumbo e bário em amostras de cabelo humano.
Os
pesquisadores concluíram que se tratava de indicadores de poluição resultante
da produção de petróleo.
O
governo encomendou uma auditoria ambiental sobre o impacto da indústria do
petróleo, mas os resultados ainda não foram divulgados, mais de um ano após o
esperado.
Mary
Ayen Majok, deputada do partido governista, vem expressando preocupações sobre
a poluição causada pelo petróleo há mais de uma década. Ela é vice-presidente
da Câmara Alta do Parlamento do Sudão do Sul, e vem da região de Ruweng.
Majok
conta que uma pessoa de sua família teve um filho "nascido com
deformidades" e acredita que muitos desses casos não são denunciados por
medo de estigmatização ou pela falta de acesso a instalações médicas.
Ela
afirma que o Sudão do Sul "herdou uma indústria baseada em práticas
inadequadas" quando o país foi formado em 2011, após sua independência do
Sudão.
Uma
guerra civil de cinco anos começou em 2013. Para uma nação que enfrenta
conflitos e depende fortemente das receitas do petróleo, melhorar a
responsabilidade ambiental ficou "em segundo plano nas nossas
prioridades", diz a deputada.
Leis
e instituições foram criadas, mas "a responsabilização ainda não é
forte", conclui Majok.
"Falar
sobre petróleo é como tocar no coração do governo", diz Bojo Leju.
Ele
conversou com a BBC na Suécia, onde obteve asilo.
Em
2020, ele foi procurado por advogados sul-sudaneses que queriam processar o
governo por poluição causada pelo petróleo.
Ele
concordou em ser testemunha. No entanto, afirma que agentes de segurança o
detiveram, atingiram sua cabeça com uma pistola e o forçaram a assinar um
documento retratando seu depoimento.
Ele
fugiu do país logo depois. Os advogados não deram continuidade ao caso.
A
BBC pediu comentários sobre as alegações deste relatório ao consórcio petrolífero
GPOC e ao escritório do presidente do Sudão do Sul, mas não obteve resposta.
Os
cientistas não têm certeza se as inundações no Estado de Unity irão, algum dia,
recuar.
Chris
Funk, diretor do Climate Hazards Center da Universidade da Califórnia, Santa
Bárbara, afirma que em 2019 houve temperaturas recordes na superfície do mar no
oeste do Oceano Índico, o que "seria impossível em um mundo sem mudanças
climáticas".
O
ar mais quente pode conter mais umidade, e ele diz que havia uma "forte
ligação" entre essas temperaturas marítimas e as chuvas extremas de 2019
sobre o leste da África.
Funk
afirma que as chuvas intensas continuaram desde então sobre a bacia do Lago
Vitória, que deságua no Sudão do Sul, mas ainda não está claro se isso
representa um novo padrão permanente.
As
temperaturas no Sudão do Sul aumentaram e devem subir ainda mais, acrescenta
ele.
Isso
significa que a precipitação extrema "será ainda mais extrema" e, sob
alguns cenários de aquecimento global, o calor e a umidade poderiam tornar
algumas áreas do país "inabitáveis", diz.
No
entanto, apesar das inundações e dos temores de poluição, muitos ainda esperam
voltar a uma vida de criação de animais e sustento da terra.
Perto
de Bentiu, uma idosa tritura raízes de lírio d'água ao lado da água da
enchente. Ela diz que gostaria de ter uma vaca novamente, algum dia.
"Quando
a água baixar, vou plantar grãos, mesmo que demore anos", diz.
Fonte:
BBC Africa Eye
Nenhum comentário:
Postar um comentário