quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O país com áreas inundadas onde pessoas morrem de sede

As pessoas que retiram a água turva de uma pequena lagoa em Unity, no Sudão do Sul, sabem que ela não é segura para o consumo.

"Sabemos que é uma água ruim, mas não temos outro lugar, estamos morrendo de sede", diz Nyatabah. Ela vive na comunidade e cria gado próximo a um campo de petróleo.

Unity, uma das principais regiões produtoras de petróleo, sempre enfrentou inundações sazonais.

Em 2019, no entanto, chuvas extremas deixaram vilarejos, pastagens e florestas debaixo d'água.

Ano após ano de chuvas intensas se seguiram. A água se acumulou, retida no solo argiloso.

Grandes áreas do Estado estão submersas há vários anos após a inundação, que, segundo cientistas, foi agravada pela mudança climática.

No pior momento, em 2022, dois terços de Unity estavam submersos, segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU – e, ainda hoje, cerca de 40% continuam debaixo d’água.

O ex-engenheiro de petróleo David Bojo Leju afirma que as cheias na região estão levando a poluição para as fontes de água.

Ele diz que a inundação é um "desastre" e que a poluição de instalações de petróleo mal geridas é uma "assassina silenciosa" que se espalha por Unity.

O Sudão do Sul é o país mais jovem do mundo e um dos mais pobres, com um governo extremamente dependente da receita do petróleo.

Legenda da foto,David Bojo Leju obteve asilo na Suécia depois de ter sido alvo de pressões no Sudão do Sul

O ex-engenheiro Bojo Leju trabalhou por oito anos no consórcio de petróleo Greater Pioneer Operating Company (GPOC), uma joint venture entre empresas de petróleo da Malásia, Índia e China — o governo do Sudão do Sul possui 5% de participação na companhia.

Após o rompimento de um oleoduto há cinco anos, ele começou a fotografar e filmar poças de água oleosa e o solo escurecido em várias localidades no Estado de Unity, incluindo áreas próximas a Roriak, onde vivem grupos que criam rebanhos.

Ele afirma que vazamentos de poços e oleodutos eram "uma situação recorrente". Ele relata que o solo contaminado era transportado para longe de estradas, para não ser visível.

Bojo Leju expressou suas preocupações aos gerentes da empresa, mas diz que pouco foi feito e que "não havia plano de tratamento para o solo".

Ele também afirma que a água liberada do solo durante a extração de petróleo, que frequentemente contém hidrocarbonetos e outros poluentes, não era devidamente tratada.

Ele afirma que diariamente havia relatos de alto teor de óleo na água liberada da extração do petróleo, acima dos padrões internacionais, e que "essa água era injetada de volta no ambiente".

"A questão é: para onde vai essa água?", ele questiona. "Vai para o rio, para a fonte de água onde as pessoas bebem, para as lagoas onde as pessoas pescam."

Bojo Leju explica que produtos químicos do petróleo infiltraram no lençol freático e vão para poços artesianos. "O lençol freático está contaminado", diz.

Quando as chuvas intensas começaram em 2019, diques de terra foram erguidos ao redor de alguns vazamentos de óleo. "Mas isso não foi suficiente para suportar o volume de água", acrescenta.

Em Roriak, não há dados disponíveis sobre a qualidade da água consumida pelos habitantes, mas eles temem que a poluição esteja prejudicando a saúde de seus rebanhos. Segundo eles, bezerros têm nascido sem cabeça ou sem membros.

O ministro da Agricultura do Estado de Unity atribui a morte de mais de 100 mil cabeças de gado nos últimos dois anos às inundações combinadas com a poluição do petróleo.

Em uma floresta próxima a Roriak, um grupo de homens e mulheres derruba árvores para fazer carvão. Eles caminharam por oito horas por estradas de terra encharcadas por águas da enchente para chegar à floresta.

Eles dizem que a única água disponível no local está poluída. Mesmo fervida, "causa diarreia e dor abdominal", conta uma mulher.

Outra mulher, Nyeda, enxuga as lágrimas, dizendo que precisa do carvão para vender, mas está preocupada com seus sete filhos, deixados com a mãe por uma semana. "Ela também não tem nada", afirma.

Nyeda vive perto da capital do estado, Bentiu, numa cabana em um campo que abriga 140 mil pessoas que fugiram de conflitos ou das enchentes. A área é completamente cercada por água e protegida apenas por diques de terra.

Eles recebem apoio alimentar, mas muitos na região sobrevivem buscando raízes de lírio-d'água e peixes para complementar suas refeições. Água potável é escassa.

Nyeda usa água de um poço artesiano para lavar e cozinhar, mas precisa comprar água para beber.

Profissionais de saúde e políticos da região disseram à BBC que temem que a poluição e a falta de água limpa estejam afetando a saúde da população.

Em um hospital em Bentiu, uma mãe acaba de dar à luz. O nariz e a boca de seu recém-nascido estão unidos.

"Eles não têm acesso à água potável", diz Samuel Puot, um dos médicos que cuidam do bebê. "Eles apenas bebem do rio, onde água e óleo se misturam. Esse pode ser o problema."

Ele afirma que há muitos casos de crianças nascendo com anomalias, como ausência de membros ou cabeça pequena, tanto em Bentiu quanto em Ruweng, uma área produtora de petróleo ao norte do Estado de Unity.

Elas morrem em dias ou meses, relata o médico.

Testes genéticos podem fornecer pistas sobre as causas das anomalias congênitas, mas o hospital não dispõe de instalações para isso, e os resultados frequentemente não são conclusivos.

Puot defende que o governo mantenha informações sobre os casos. Como os dados não são registrados de forma sistemática, não está claro se esses relatos indicam uma prevalência incomum de anomalias congênitas.

A poluição ambiental é um fator de risco para as anomalias congênitas, além da genética, idade materna, infecções e má nutrição, afirma Nicole Deziel, especialista em saúde ambiental da Universidade de Yale (EUA).

Substâncias liberadas na produção de petróleo podem afetar o desenvolvimento fetal, afirma Deziel.

"Os relatos anedóticos podem servir como indicadores importantes de problemas de saúde ambiental", diz. Mas ela ressalta que, sem a extração sistemática de dados, é difícil estabelecer provas de uma relação causal.

Em 2014 e 2017, a organização não governamental Sign of Hope, sediada na Alemanha, realizou estudos em campos petrolíferos no Estado de Unity.

Eles encontraram um aumento da salinidade e concentrações elevadas de metais pesados na água perto dos poços de petróleo, assim como concentrações elevadas de chumbo e bário em amostras de cabelo humano.

Os pesquisadores concluíram que se tratava de indicadores de poluição resultante da produção de petróleo.

O governo encomendou uma auditoria ambiental sobre o impacto da indústria do petróleo, mas os resultados ainda não foram divulgados, mais de um ano após o esperado.

Mary Ayen Majok, deputada do partido governista, vem expressando preocupações sobre a poluição causada pelo petróleo há mais de uma década. Ela é vice-presidente da Câmara Alta do Parlamento do Sudão do Sul, e vem da região de Ruweng.

Majok conta que uma pessoa de sua família teve um filho "nascido com deformidades" e acredita que muitos desses casos não são denunciados por medo de estigmatização ou pela falta de acesso a instalações médicas.

Ela afirma que o Sudão do Sul "herdou uma indústria baseada em práticas inadequadas" quando o país foi formado em 2011, após sua independência do Sudão.

Uma guerra civil de cinco anos começou em 2013. Para uma nação que enfrenta conflitos e depende fortemente das receitas do petróleo, melhorar a responsabilidade ambiental ficou "em segundo plano nas nossas prioridades", diz a deputada.

Leis e instituições foram criadas, mas "a responsabilização ainda não é forte", conclui Majok.

"Falar sobre petróleo é como tocar no coração do governo", diz Bojo Leju.

Ele conversou com a BBC na Suécia, onde obteve asilo.

Em 2020, ele foi procurado por advogados sul-sudaneses que queriam processar o governo por poluição causada pelo petróleo.

Ele concordou em ser testemunha. No entanto, afirma que agentes de segurança o detiveram, atingiram sua cabeça com uma pistola e o forçaram a assinar um documento retratando seu depoimento.

Ele fugiu do país logo depois. Os advogados não deram continuidade ao caso.

A BBC pediu comentários sobre as alegações deste relatório ao consórcio petrolífero GPOC e ao escritório do presidente do Sudão do Sul, mas não obteve resposta.

Os cientistas não têm certeza se as inundações no Estado de Unity irão, algum dia, recuar.

Chris Funk, diretor do Climate Hazards Center da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, afirma que em 2019 houve temperaturas recordes na superfície do mar no oeste do Oceano Índico, o que "seria impossível em um mundo sem mudanças climáticas".

O ar mais quente pode conter mais umidade, e ele diz que havia uma "forte ligação" entre essas temperaturas marítimas e as chuvas extremas de 2019 sobre o leste da África.

Funk afirma que as chuvas intensas continuaram desde então sobre a bacia do Lago Vitória, que deságua no Sudão do Sul, mas ainda não está claro se isso representa um novo padrão permanente.

As temperaturas no Sudão do Sul aumentaram e devem subir ainda mais, acrescenta ele.

Isso significa que a precipitação extrema "será ainda mais extrema" e, sob alguns cenários de aquecimento global, o calor e a umidade poderiam tornar algumas áreas do país "inabitáveis", diz.

No entanto, apesar das inundações e dos temores de poluição, muitos ainda esperam voltar a uma vida de criação de animais e sustento da terra.

Perto de Bentiu, uma idosa tritura raízes de lírio d'água ao lado da água da enchente. Ela diz que gostaria de ter uma vaca novamente, algum dia.

"Quando a água baixar, vou plantar grãos, mesmo que demore anos", diz.

 

Fonte: BBC Africa Eye

 

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