Luiz
Menna-Barreto: A dialética do envelhecimento
É
notória a escassez de reflexões sobre as mudanças observadas no aumento da
expectativa de vida do ponto de vista evolutivo
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Minha
motivação para escrever este relato, em parte muito pessoal, emergiu no meu
aniversário de 78 anos, em outubro de 2024. Apesar de estar nitidamente
envelhecendo nos últimos tempos, a motivação inexistia, talvez por entender
esse relato como inútil, eventualmente redundante com o que se lê por aí. Uma
segunda motivação, agora de caráter mais geral, foi compartilhar com eventuais
leitores minha opção pela dialética como ferramenta/método de olhar e
interpretar realidades. A abordagem dialética aparecerá tanto no relato de
minha vivência pessoal como minha leitura sobre o significado evolutivo do
envelhecimento.
Ao
eventual leitor destas memórias, advirto que se trata de um conjunto de
percepções marcadamente pessoais, portanto não generalizáveis. Aliás, qualquer
relato de processos vividos do nosso corpo é sempre marcado pela singularidade
das nossas histórias de vida. A escolha da expressão “processo em curso” já
contém essa advertência do caráter essencialmente dinâmico dos processos dos
nossos corpos, tanto vistos do ponto de vista da espécie como do ponto de vista
dos indivíduos.
Envelhecer
e morrer constituem características da matéria viva e sua funcionalidade está
ligada à evolução dessa mesma matéria viva. Cada geração carrega
características herdadas, mas também mecanismos adaptativos que favorecem
mudanças de rumo ao longo do tempo. A ampliação da expectativa de vida talvez
seja um bom exemplo da relativa plasticidade do processo, especialmente em
países nos quais as melhoras na qualidade de vida são notórias.
E
por que a dialética? Trata-se de uma opção ao mesmo tempo filosófica e
ideológica, com óbvia inspiração marxista, situada no campo do materialismo
histórico. Cultivo o entendimento segundo o qual cada e qualquer função dos
nossos corpos carrega essa dupla carga histórica, a filogenética, de longo
prazo, e a ontogenética de prazo mais estreito, tempos que se expressam
simultaneamente.
Para
quem não está familiarizado com essa leitura temporizada dos organismos, gosto
de um exemplo de uma função humana, a linguagem. A capacidade de perceber e
emitir sons e atribuir significados a esses sons é um traço que herdamos ao
nascer, já a língua que falaremos vem com a experiência social de cada ser
humano. A dialética é um método que nos
convida a pensar nos corpos e, porque não, nas coisas e nos eventos envolvendo
corpos e coisas, sempre carregados de histórias que nos ajudam a definir tanto
corpos como coisas.
Pois
eu venho experimentando aspectos positivos e negativos do “estar ficando
velho”, alegrias e tristezas datadas nas mudanças atravessadas no percurso de
vida. A primeira mudança que quero comentar é a das memórias, mudança muito
presente e frequente nos eventos recentes – acho que já vi esse filme, mas não
tenho certeza, e ocorre de ter assistido ao filme na semana anterior. Quando já
vi e revejo, a memória de já ter assistido ao filme vem aos poucos até virar
certeza – sim, já vi esse filme.
Também
a memória dos percursos nas ruas da cidade está comprometida, gera insegurança
mesmo em trajetos frequentes nas ruas de Mogi da Cruzes, onde vivo há mais de
20 anos. É verdade que as ruas da cidade, bem como as calçadas, principalmente
do centro, são muito antigas, estreitas e mal conservadas. Não é raro eu me
perder nesses trajetos, cheios de ruas de mão única – logo eu que em visita a
uma cidade desconhecida aprendia rapidamente os percursos que ali fazia.
Por
outro lado, seguidamente me vêm à tona eventos da minha infância, eventos que
pareciam condenados ao desparecimento agora aparecem muito nitidamente. Não
consigo relacionar essas memórias resgatadas com eventos marcantes, o processo
parece ser mais bem aleatório. Gosto de pensar que essa aleatoriedade pode ser
interpretada com o modo de operarmos as memórias, trajetos improváveis abrem
espaço para criatividades contidas em associações inéditas.
Se
essa minha leitura faz algum sentido, a atribuição de significados específicos
aos sonhos, por exemplo, no campo da psicanálise, tende a ser incompleta. Significados que pecam por ignorar a
aleatoriedade buscam afirmar uma lógica às vezes inexistente, mas sobretudo
limitada. Esclareço que minha leitura dessa aleatoriedade não implica em
ignorar a fecundidade tanto dos métodos e conhecimentos psicanalíticos como
neurocientíficos.
O
que me parece interessante é associar esses conhecimentos, entendendo que as
memórias podem, perfeitamente e finalmente, só fazer sentido nessa associação,
ou seja, quando as memórias têm história. No caso das neurociências, a
localização de memórias singulares em regiões discretas do córtex cerebral,
respeitável pelo esforço exigido, carrega heranças tanto da espécie quanto do
indivíduo. Penso que construímos nossas memórias individuais envolvendo
diferentes regiões do cérebro, fato que impõe limitação a tentativas de
generalizar achados, atribuindo características individuais a toda a espécie.
O
que você, leitor/leitora, acaba de ler é um exemplo deste meu exercício
dialético sobre a memória. Alguns artigos recentes sobre olfação e sonhos vêm
sendo publicados com interpretações que tendem a superar concepções estreitas
da função olfatória e sua infraestrutura no cérebro humano. O mapeamento de
alterações no funcionamento de áreas da do cérebro, publicado recentemente
(Ward et al, 2023) no qual as autoras referem associações entre odores e
percepção visual e verbal também trazem essa limitação da generalização:
ignorar a história da experiência individual no funcionamento cerebral.
Muito
do que se publica atualmente sobre o envelhecimento está apoiado em dados de
incidência de patologias em idosos (Ikram, 2024), mas é notória a escassez de
reflexões sobre as mudanças observadas no aumento da expectativa de vida do
ponto de vista evolutivo. Afinal, se a morte é por assim dizer, programada
geneticamente, seus limites específicos (individuais) parecem flexibilizar essa
determinação (Tacikowski, 2024).
Entretanto
há ensaios sobre a fatalidade da morte individual, mas pouca coisa questionando
o papel evolutivo dessa fatalidade, sendo uma exceção o livro de Stanley
Shostak (2006). Essa lacuna na literatura acadêmica bem provavelmente está
relacionada ao individualismo dominante na nossa cultura, muito ligado ao
modelo socioeconômico vigente que atende pelo nome de neoliberalismo.
Além
de privilegiar uma visão de mundo limitada aos nossos interesses imediatos
(quase sempre ligados ao consumo de bens materiais), essa visão acaba
ocultando/inibindo a leitura evolutiva tanto da vida quanto da morte. Trata-se
assim de uma contradição entre a leitura individual e coletiva do
envelhecimento, com evidente desproporção entre a primeira, dominante, e a
segunda, inferiorizada.
Fonte:
A Terra é Redonda
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