quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Luiz Menna-Barreto: A dialética do envelhecimento

É notória a escassez de reflexões sobre as mudanças observadas no aumento da expectativa de vida do ponto de vista evolutivo

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Minha motivação para escrever este relato, em parte muito pessoal, emergiu no meu aniversário de 78 anos, em outubro de 2024. Apesar de estar nitidamente envelhecendo nos últimos tempos, a motivação inexistia, talvez por entender esse relato como inútil, eventualmente redundante com o que se lê por aí. Uma segunda motivação, agora de caráter mais geral, foi compartilhar com eventuais leitores minha opção pela dialética como ferramenta/método de olhar e interpretar realidades. A abordagem dialética aparecerá tanto no relato de minha vivência pessoal como minha leitura sobre o significado evolutivo do envelhecimento.

Ao eventual leitor destas memórias, advirto que se trata de um conjunto de percepções marcadamente pessoais, portanto não generalizáveis. Aliás, qualquer relato de processos vividos do nosso corpo é sempre marcado pela singularidade das nossas histórias de vida. A escolha da expressão “processo em curso” já contém essa advertência do caráter essencialmente dinâmico dos processos dos nossos corpos, tanto vistos do ponto de vista da espécie como do ponto de vista dos indivíduos.

Envelhecer e morrer constituem características da matéria viva e sua funcionalidade está ligada à evolução dessa mesma matéria viva. Cada geração carrega características herdadas, mas também mecanismos adaptativos que favorecem mudanças de rumo ao longo do tempo. A ampliação da expectativa de vida talvez seja um bom exemplo da relativa plasticidade do processo, especialmente em países nos quais as melhoras na qualidade de vida são notórias.

E por que a dialética? Trata-se de uma opção ao mesmo tempo filosófica e ideológica, com óbvia inspiração marxista, situada no campo do materialismo histórico. Cultivo o entendimento segundo o qual cada e qualquer função dos nossos corpos carrega essa dupla carga histórica, a filogenética, de longo prazo, e a ontogenética de prazo mais estreito, tempos que se expressam simultaneamente.

Para quem não está familiarizado com essa leitura temporizada dos organismos, gosto de um exemplo de uma função humana, a linguagem. A capacidade de perceber e emitir sons e atribuir significados a esses sons é um traço que herdamos ao nascer, já a língua que falaremos vem com a experiência social de cada ser humano.  A dialética é um método que nos convida a pensar nos corpos e, porque não, nas coisas e nos eventos envolvendo corpos e coisas, sempre carregados de histórias que nos ajudam a definir tanto corpos como coisas.

Pois eu venho experimentando aspectos positivos e negativos do “estar ficando velho”, alegrias e tristezas datadas nas mudanças atravessadas no percurso de vida. A primeira mudança que quero comentar é a das memórias, mudança muito presente e frequente nos eventos recentes – acho que já vi esse filme, mas não tenho certeza, e ocorre de ter assistido ao filme na semana anterior. Quando já vi e revejo, a memória de já ter assistido ao filme vem aos poucos até virar certeza – sim, já vi esse filme.

Também a memória dos percursos nas ruas da cidade está comprometida, gera insegurança mesmo em trajetos frequentes nas ruas de Mogi da Cruzes, onde vivo há mais de 20 anos. É verdade que as ruas da cidade, bem como as calçadas, principalmente do centro, são muito antigas, estreitas e mal conservadas. Não é raro eu me perder nesses trajetos, cheios de ruas de mão única – logo eu que em visita a uma cidade desconhecida aprendia rapidamente os percursos que ali fazia.

Por outro lado, seguidamente me vêm à tona eventos da minha infância, eventos que pareciam condenados ao desparecimento agora aparecem muito nitidamente. Não consigo relacionar essas memórias resgatadas com eventos marcantes, o processo parece ser mais bem aleatório. Gosto de pensar que essa aleatoriedade pode ser interpretada com o modo de operarmos as memórias, trajetos improváveis abrem espaço para criatividades contidas em associações inéditas.

Se essa minha leitura faz algum sentido, a atribuição de significados específicos aos sonhos, por exemplo, no campo da psicanálise, tende a ser incompleta.  Significados que pecam por ignorar a aleatoriedade buscam afirmar uma lógica às vezes inexistente, mas sobretudo limitada. Esclareço que minha leitura dessa aleatoriedade não implica em ignorar a fecundidade tanto dos métodos e conhecimentos psicanalíticos como neurocientíficos.

O que me parece interessante é associar esses conhecimentos, entendendo que as memórias podem, perfeitamente e finalmente, só fazer sentido nessa associação, ou seja, quando as memórias têm história. No caso das neurociências, a localização de memórias singulares em regiões discretas do córtex cerebral, respeitável pelo esforço exigido, carrega heranças tanto da espécie quanto do indivíduo. Penso que construímos nossas memórias individuais envolvendo diferentes regiões do cérebro, fato que impõe limitação a tentativas de generalizar achados, atribuindo características individuais a toda a espécie.

O que você, leitor/leitora, acaba de ler é um exemplo deste meu exercício dialético sobre a memória. Alguns artigos recentes sobre olfação e sonhos vêm sendo publicados com interpretações que tendem a superar concepções estreitas da função olfatória e sua infraestrutura no cérebro humano. O mapeamento de alterações no funcionamento de áreas da do cérebro, publicado recentemente (Ward et al, 2023) no qual as autoras referem associações entre odores e percepção visual e verbal também trazem essa limitação da generalização: ignorar a história da experiência individual no funcionamento cerebral.

Muito do que se publica atualmente sobre o envelhecimento está apoiado em dados de incidência de patologias em idosos (Ikram, 2024), mas é notória a escassez de reflexões sobre as mudanças observadas no aumento da expectativa de vida do ponto de vista evolutivo. Afinal, se a morte é por assim dizer, programada geneticamente, seus limites específicos (individuais) parecem flexibilizar essa determinação (Tacikowski, 2024).

Entretanto há ensaios sobre a fatalidade da morte individual, mas pouca coisa questionando o papel evolutivo dessa fatalidade, sendo uma exceção o livro de Stanley Shostak (2006). Essa lacuna na literatura acadêmica bem provavelmente está relacionada ao individualismo dominante na nossa cultura, muito ligado ao modelo socioeconômico vigente que atende pelo nome de neoliberalismo.

Além de privilegiar uma visão de mundo limitada aos nossos interesses imediatos (quase sempre ligados ao consumo de bens materiais), essa visão acaba ocultando/inibindo a leitura evolutiva tanto da vida quanto da morte. Trata-se assim de uma contradição entre a leitura individual e coletiva do envelhecimento, com evidente desproporção entre a primeira, dominante, e a segunda, inferiorizada.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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