Construção
da segunda maior ponte do Brasil ameaça ecossistemas e comunidades na Bahia
“Parece
que houve um processo proposital de sucateamento do serviço de ferry-boat, com
o intuito de gerar insatisfação e, assim, facilitar a aceitação da construção
da ponte”, denuncia Maria José Pacheco, secretária-executiva do Conselho
Pastoral dos Pescadores na Bahia.
A
lista de precariedades no transporte marítimo da Baía de Todos-os-Santos é
extensa: atrasos, falta de higiene, problemas mecânicos nas embarcações e até
mesmo colisões. Além disso, uma antiga concessionária foi acusada de
superfaturamento e má gestão, enquanto a atual operadora já recebeu multas
milionárias pelos problemas.
Hoje,
a viagem de ferry entre Salvador e Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, dura cerca
de 50 minutos, e a nova ponte deve encurtar o tempo de travessia para 15
minutos. Com obras previstas para 2025 e duração de quatro anos, o
empreendimento baiano de 12,4 km será a segunda maior ponte do hemisfério sul,
atrás apenas da Rio-Niterói (13,29 km).
O
consórcio de duas empresas chinesas venceu a licitação em 2020 e atuará por
meio de Parceria Público-Privada, com orçamento de R$ 9 bilhões. No portfólio
das construtoras, destacam-se a maior ponte marítima do mundo, no Mar da China,
e ferrovias na Etiópia e na Nigéria. A concessão de 35 anos do Sistema
Rodoviário Ponte Salvador-Ilha de Itaparica envolve as etapas de construção,
operação e manutenção, além de obras como estradas, túneis, viadutos e praças
de pedágio.
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Um atalho logístico e agressivo ao meio ambiente
As
limitações a veículos pesados no ferry-boat tornam a obra atraente para alguns
setores, já que oferece uma alternativa para transportar a produção agrícola do
Recôncavo Baiano sem prolongar a viagem ao contornar a baía. Mas a poluição
gerada pelo fluxo de caminhões atravessando a ilha, dividida entre os
municípios de Vera Cruz e Itaparica, levanta preocupações em uma região onde se
preservam a paisagem natural e o modo de vida interiorano.
“A
ponte será muito invasiva e não trará nenhum benefício efetivo para a ilha, mas
estará a serviço do progresso do estado da Bahia como forma de escoar a
produção para Salvador”, critica Tânia França, moradora de Itaparica e
representante da Associação Religiosa Cultural e Ambientalista (Arca).
A
Baía de Todos-os-Santos, a maior do Brasil, abrange uma área de 1.233 km² e
banha 18 municípios, somando cerca de 4,5 milhões de habitantes distribuídos
entre a região metropolitana de Salvador e cidades vizinhas. Rica em
biodiversidade marinha e costeira da Mata Atlântica, a baía é o sustento de
diversas comunidades tradicionais de pescadores e marisqueiras, que deverão ser
diretamente impactadas pelo projeto.
“O
estudo de impacto ambiental tem a função de subsidiar a licença, que não
deveria ter sido emitida, pois o estudo está incompleto”, afirmou Severino
Agra, biólogo, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e cofundador
do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá), em entrevista à Mongabay.
Especialista
em legislação ambiental, Agra elaborou uma nota técnica listando as falhas do
Relatório de Impacto Ambiental apresentado pela concessionária. Até agora, o
projeto só obteve uma licença prévia, e o governo da Bahia ainda precisa
aprovar o licenciamento definitivo para, de fato, dar início às obras.
Ao
sul da Ilha de Itaparica, em Vera Cruz, uma área sensível de manguezal deve ser
sacrificada para a duplicação de 8 km da BA-001 e a construção de uma nova
rodovia de 22 km. As intervenções prometem facilitar o trânsito de veículos que
se deslocam entre a ponte, a ilha e o Recôncavo Baiano, mesmo que isso
signifique destruir a vegetação nativa.
Os
manguezais são essenciais para a manutenção de ecossistemas, funcionando como
barreiras naturais contra a erosão, além de capturar carbono e filtrar
poluentes. As águas rasas e a vegetação densa de raízes entrelaçadas servem
como berçários para diversas espécies marinhas, oferecendo um espaço seguro e
rico em nutrientes para peixes, crustáceos e moluscos.
Nessa
transição entre águas doce e salgada, atuam as marisqueiras, grupos de mulheres
que buscam no manguezal uma fonte de sustento para suas famílias. Elas coletam
mariscos, como ostras e mexilhões, em um trabalho artesanal e sustentável que
ajuda a monitorar e proteger os recursos naturais.
Entretanto,
o espaço usado pelas marisqueiras ficará menor por causa das intervenções
rodoviárias. “A mariscagem vai reduzir brutalmente. O próprio estudo da
concessionária assume que haverá perda de cobertura vegetal em cima de
manguezais”, ressalta Agra.
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Impacto na fauna marinha e na pesca artesanal
Segundo
Agra, a cravação dos pilares da ponte provoca ruídos subaquáticos e vibrações
que podem alterar o comportamento e até reduzir as populações de diversas
espécies, incluindo corais e recifes, essenciais para o equilíbrio do
ecossistema local. Entre os animais afetados, os golfinhos são visitantes
frequentes, enquanto as tartarugas-marinhas utilizam a baía como área de
desova.
Os
139 pilares planejados também podem funcionar como uma barreira, dificultando a
passagem de grandes mamíferos, como as baleias-jubarte. Esses animais estão
reconquistando seu espaço nas águas brasileiras e migram entre junho e novembro
para nosso litoral em busca de reprodução e alimentação.
“A
ocorrência da baleia-jubarte na Baía de Todos-os-Santos era bem rara até cinco
anos atrás, quando passou a ocorrer com maior quantidade apesar de todos os
problemas antrópicos, como o tráfego de grandes navios”, afirmou à Mongabay
Enrico Marcovaldi, pesquisador do Projeto Baleia-Jubarte, que há 25 anos mantém
um centro de observação na Praia do Forte, em Salvador.
Durante
os 90 dias da temporada de observação deste ano, o projeto registrou 1.008
avistamentos de baleias-jubarte na região, sendo 72 deles somente dentro da
Baía de Todos-os-Santos. “Isso não significa que mais de mil indivíduos foram
vistos, já que muitas dessas baleias foram avistadas várias vezes”, explica
Marcovaldi.
Iniciada
em janeiro de 2024, a atual fase do projeto — com previsão de término em 2025 —
baseia-se na sondagem geotécnica, que analisa o solo, tanto em terra quanto no
mar, utilizando balsas para fazer 102 perfurações e coleta de amostras.
“Esse
procedimento irá remexer os sedimentos do subsolo, que provavelmente contêm
contaminantes antigos, como resíduos de petróleo e metais pesados. A cada pilar
construído, esses contaminantes poderão ser suspensos na água novamente”,
explica Agra.
A
operação coloca em risco a subsistência de várias comunidades que dependem da
baía, como a colônia de pescadores do Quilombo Alto do Tororó, no bairro de São
Tomé, no subúrbio ferroviário de Salvador, que existe desde o século 19.
“Nossa
preocupação virou desespero, porque nos anos de obra vão desaparecer todos os
corais e recifes onde os peixes que capturamos procuram alimento. Já foi grande
a quantidade de espécies de peixes, crustáceos e moluscos, mas hoje impera a
escassez devido à poluição da baía. A construção da ponte será o golpe de
misericórdia na pesca artesanal”, resume J. Salvador da Paz Barros, mestre do
quilombo.
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A superpopulação da Ilha de Itaparica
Um
dos principais objetivos da construção da ponte é transformar a Ilha de
Itaparica em uma alternativa de moradia para Salvador – quinta cidade mais
populosa do Brasil, com 2,6 milhões de habitantes, conforme o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Com
a construção, estima-se que a população da ilha – composta pelos municípios de
Vera Cruz e Itaparica – passe dos atuais 65 mil para 220 mil habitantes até
2050.
Contudo,
os moradores da ilha estão céticos quanto aos benefícios, principalmente por
causa da possível sobrecarga nos serviços públicos. “O que significa esse
aumento populacional do ponto de vista de aumento da violência, desordenamento
urbano e pressão fundiária sobre comunidades tradicionais?”, questiona Pacheco.
“Terá mais pessoas para concorrer com as políticas públicas de saúde e educação
na ilha, que já são precárias”.
De
acordo com o IBGE, Vera Cruz – que já conta com o terminal do ferry-boat e onde
terá o acesso à nova ponte – soma cerca de 45 mil habitantes, 49 escolas (sendo
apenas cinco com ensino médio), 19 unidades de saúde e saneamento para 24,6% da
população. Já Itaparica – que ocupa apenas 18% do território da ilha – tem 20
mil moradores, 26 escolas (três de ensino médio), dez unidades de saúde e 49,5%
das residências com sistema de esgoto.
“A
ilha vai acabar virando um bairro de Salvador, deixando de ser um lugar de
veraneio, uma área de praia para fugir da cidade grande. Será um caos, porque,
para se tornar uma área urbana organizada, os municípios vão precisar de uma
gestão eficiente. Mas, se esse momento chegar, já terá tanta coisa fora do
lugar — saneamento, saúde, policiamento, escolas — que as chances de reverter a
desordem serão mínimas”, analisa Agra.
Apesar
das preocupações, o mercado imobiliário já está aquecido. Moradores notam a
alta nos preços de terrenos e casas, além do aumento da grilagem de terras. “Se
a ilha for valorizada como área urbana, é ruim, e se não for valorizada como o
esperado, também é ruim. Nos dois casos, a primeira coisa que vai acontecer é
tirar as vilas de pescadores que não têm o título da terra, expulsando para as
periferias ou até mesmo fora da ilha”, prevê Agra.
Outro
temor é a invasão de áreas verdes, como o Sítio dos Milagres, em Itaparica. São
47 hectares de Mata Atlântica que têm sido preservada há décadas como fruto dos
ensinamentos de Venceslau Monteiro, um homem que se tornou uma figura mítica na
comunidade no século passado depois de ter a cegueira curada em uma nascente
dali.
“Venceslau
foi um grande ambientalista do seu tempo. Ele passou a cuidar dessa área verde,
evitando o desmatamento. Com o passar dos anos, isso virou ponto de
peregrinação e de rituais de culturas afro-brasileiras”, diz França, gestora da
Arca, entidade jurídica que administra o Sítio dos Milagres.
O
terreno, antes propriedade de uma imobiliária, foi transferido à prefeitura
como pagamento de dívidas. Segundo França, a promessa das autoridades é
transformar o Sítio dos Milagres em um parque ecológico voltado para o uso
religioso, inspirado no Parque São Bartolomeu, em Salvador.
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Planos compensatórios e alternativas menos invasivas
Para
moradores e comunidades tradicionais, a proposta da ponte ocorreu sem o diálogo
necessário.
“Os
pescadores e marisqueiras nunca foram ouvidos, apesar dos protestos de
movimentos sociais sobre os impactos ambientais, não apenas no entorno da Ilha
de Itaparica. Fomos simplesmente ignorados, como sempre, esquecidos. Nunca se
falou da merecida compensação”, reclama Barros.
O
relatório de impacto ambiental dedica 40 páginas a planos de mitigação e
compensação “em termos ambientais e socioeconômicos, salvaguardando os
interesses das populações e do meio biofísico”. No entanto, essas ações são
apresentadas de forma vaga e superficial.
“As
medidas de mitigação propostas pela concessionária consistem apenas em títulos,
sem qualquer explicação. Trata-se apenas de uma proposta de intenções, sem
esclarecimentos sobre como serão implementadas”, afirmou Agra.
O
governo da Bahia enviou uma nota informando que o licenciamento prévio incluiu
consultas às populações tradicionais da ilha e que a empresa responsável
elaborou um plano de desapropriação, reassentamento e compensação. Em resposta
à Mongabay, a concessionária do Sistema Rodoviário Salvador-Ilha de Itaparica
disse que o projeto básico foi modificado, destacando que “medidas já foram
tomadas para evitar qualquer interferência em manguezais”.
Para
muitos, a solução mais adequada é investir no já estabelecido sistema de
ferry-boat. “Seria melhor se houvesse horários fixos, com saídas a cada meia
hora e operações após a meia-noite”, reflete França. Barros complementa
sugerindo que, “em vez de construir a ponte, poderiam adquirir mais ferries com
maior capacidade de carga e velocidade, minimizando o impacto ambiental”.
O
sistema público de ferry-boat entrou em operação em 1972 e foi privatizado em
1996, passando por várias empresas até chegar à concessão atual pela
Internacional Travessias Salvador. De acordo com a empresa, mais de 15 mil
pessoas (entre passageiros em veículos e pedestres) são atendidas por dia,
juntamente com 2 mil veículos. O serviço conta com sete embarcações, que
comportam, em média, 700 pessoas e 60 veículos. Mas em dias habituais, apenas
três ou quatro ferries estão disponíveis, com viagens partindo, no mínimo, a
cada hora, das 5h às 23h30.
Sobre
os problemas no serviço, a Internacional Travessias Salvador comunicou à
Mongabay que filas longas ocorrem apenas em feriados prolongados e períodos
festivos, quando o fluxo de passageiros chega a triplicar, e que investiu em
novas equipes de limpeza e manutenção.
Embora
seja uma alternativa economicamente mais viável, a modernização do serviço
flutuante não foi avaliada como uma substituição à ponte, cujo custo é de R$ 9
bilhões. Para efeito de comparação, a última licitação para a compra de ferries
indicou o valor de R$ 30 milhões por embarcação.
“Não
realizar o projeto é uma das alternativas”, defende Agra. “A lei exige que o
estudo de impacto avalie detalhadamente cada alternativa, para que se possa
comparar os impactos e escolher a menos agressiva, inclusive a possibilidade de
não executar a obra.”
Fonte:
Mongabay
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