Grace
Blakeley: A absurda e crescente riqueza dos bilionários prejudica a democracia
O relatório mais recente da
Oxfam sobre a desigualdade na distribuição global da riqueza pinta um
quadro sombrio das mudanças que ocorreram na economia mundial ao longo da
pandemia.
De
acordo com uma pesquisa da instituição de caridade, os dez homens mais ricos do
mundo dobraram sua riqueza ao longo do ano passado, o que significa que
ganharam o equivalente a US$ 1,3 bilhão por dia.
Para
contextualizar esse número, considere essas ilustrações da diferença entre um
milhão e um bilhão. Se você contasse os números até um milhão, levaria doze
dias; mas se você contasse os números até um bilhão, levaria trinta e dois
anos. Se você gastasse um milhão de dólares em um ano, teria que gastar
aproximadamente $ 2.700 por dia; para gastar um bilhão de dólares no mesmo
tempo, seria aproximadamente $ 2,7 milhões por dia.
Esses
dez homens agora são tão ricos que, mesmo que perdessem 99,999% de sua riqueza,
ainda teriam mais do que 99% das pessoas no planeta.
Esses
números são tão grandes que são difíceis de compreender, mesmo com ilustrações.
Mas é extremamente importante que tentemos entender a escala da desigualdade na
economia mundial agora. Porque a desigualdade de riqueza não diz simplesmente
sobre os padrões de vida e as oportunidades divergentes de pessoas em
diferentes faixas de impostos; ela nos diz sobre as diferenças de poder entre
os ricos e todos os outros.
A
riqueza bilionária não está apenas em contas bancárias acumulando juros; ela
existe na forma de ativos, como ações, propriedades e títulos. Muitos na
direita alegremente utilizam esse ponto para criticar o método de cálculo da
desigualdade de riqueza da Oxfam, argumentando que não deveríamos pensar na
riqueza de Jeff Bezos como equivalente ao valor de seus ativos, porque se ele
vendesse todos eles de uma vez, seus valores cairiam drasticamente.
Mas
essa crítica não vai ao ponto. O problema com a desigualdade entre bilionários
e todos os outros não é apenas que eles podem comprar mais coisas do que todos
os outros; é que eles controlam os recursos dos quais o resto de nós depende
para sobreviver.
Veja Jeff Bezos, cuja riqueza existe
principalmente na forma de ações da Amazon. Ao medir a escala de sua riqueza,
não estamos apenas olhando para o quão rico ele é — mas também olhando para o
quão poderoso. O fato de Bezos controlar pessoalmente cerca de 10% de uma das
maiores e mais valiosas empresas do mundo significa que ele tem uma quantidade
significativa de controle sobre a maneira como a economia funciona.
Ele
pode influenciar os salários que a Amazon define, o que determina a renda de
milhões de pessoas em todo o mundo. Ele pode controlar as decisões de
investimento que a empresa toma, o que não apenas determina quantos empregos
serão criados na economia, mas também os tipos de bens, serviços e tecnologias
que provavelmente serão desenvolvidos nos próximos anos. Ele contribui para uma
série de decisões que têm um impacto enorme no resto da sociedade — da pegada
ambiental da empresa à sua responsabilidade tributária total.
O
mesmo pode ser dito de outros bilionários que controlam a maioria dos recursos
do mundo. Magnatas imobiliários definem nossos aluguéis e influenciam os preços
de terras e propriedades em todo o mundo. Financiadores determinam onde o
investimento é alocado, o que molda todos os tipos de tendências sociais, como
mudança tecnológica, a intensidade de carbono do processo produtivo e a
geografia da produção. E magnatas da mídia ajudam a moldar as próprias
informações que recebemos para entender essas tendências.
As
decisões tomadas por esse pequeno punhado de homens têm um enorme impacto em
quase todos os âmbitos de nossas vidas — incluindo nossos salários, nossos
aluguéis e a temperatura do planeta. E ainda assim eles exercem essa quantidade
extraordinária de poder com pouca ou nenhuma responsabilidade.
Ninguém
em sã consciência argumentaria que esta é uma maneira racional de organizar uma
economia. A maioria dos economistas tradicionais argumenta que pessoas como
Jeff Bezos não têm tanto poder quanto pensamos. As decisões da Amazon são,
dizem eles, determinadas inteiramente por tendências mais amplas dentro do
mercado. Bezos não toma decisões; o mercado sim.
No
entanto, em um mundo caracterizado por níveis extremos de desigualdade, altas
taxas de concentração de mercado e de captura corporativa do Estado, essa visão
se torna muito mais difícil de defender. Quando dez homens podem perder quase
tudo o que têm e ainda ser mais ricos do que quase todos os outros no planeta,
é absurdo argumentar que eles não estão no controle porque o mercado está.
Esses
homens são o mercado — literalmente, no caso de Jeff Bezos.
Se
Bezos decidir que quer aperfeiçoar os voos espaciais comerciais,
então é assim que os escassos recursos da humanidade serão usados no futuro próximo; assim como se a Amazon decidir cortar sua folha de
pagamento, a renda dos mais desfavorecidos cairá, enquanto os lucros dos mais favorecidos aumentarão.
A
desigualdade não importa apenas porque é injusta; ela importa porque a riqueza
dos que estão no topo depende da pobreza dos que estão na base.
A
Oxfam enfatiza precisamente esse ponto no relatório deste ano, argumentando que
“a desigualdade extrema é uma forma de violência econômica, onde políticas e as
decisões políticas que perpetuam a riqueza e o poder de alguns poucos
privilegiados resultam em danos diretos à grande maioria das pessoas comuns em
todo o mundo e ao próprio planeta”.
Em
nenhum lugar isso ficou mais claro do que nas respostas dos nossos governos e
bancos centrais à pandemia, injetando bilhões de dólares nos bolsos dos ricos,
enquanto deixaram muitos dos mais pobres se defenderem sozinhos.
Então,
da próxima vez que alguém lhe disser que Jeff Bezos conquistou seu dinheiro e
que ele deveria poder gastá-lo da maneira que quiser, lembre-o de que não foi
assim; ele o extraiu do governo, do meio ambiente e de seus trabalhadores.
¨
Quem tem medo do pobre
periférico? Por Hélio Alexandre da Silva
No
último período tem circulado entre nós um argumento bastante comum que diz
respeito às mazelas atuais da esquerda e do campo progressista. Em linhas
gerais, esse argumento sustenta que, diante do avanço da extrema direita e da
nossa incapacidade crescente de pautar o debate público mobilizando princípios
e valores de esquerda, estaria na hora de “voltarmos para a base” e aprender a
dialogar com os anseios e demandas dos pobres da periferia.
Após
as recentes eleições municipais, houve uma nova onda de diagnósticos que
apontaram para a mesma direção, quase todos estimulados por uma genuína boa
intenção, dizendo o que a esquerda deve fazer para se conectar com as pessoas
mais pobres e evitar que, no futuro, elas optem novamente por projetos que
aprofundam a miséria da sua própria condição.
No
entanto, e esse também é um traço comum, esses diagnósticos tendem a circular
entre especialistas e pessoas “já convertidas” ou ficam presos nas armadilhas
da crítica e da busca pela formulação mais precisa, algo que não é, diga-se, um
problema em si. O que não é tão frequente nessas análises, porém, são
considerações que chamam atenção para o fato que, quando estamos no campo da
política e da busca pela disputa de valores, onde se debate comportamentos e
projetos de sociedade, é razoável esperar que a vida prática esteja intimamente
ligada àquilo que se publiciza em forma de discurso. Dito de outro modo, isso
significa que furtar-se ao esforço de derivar consequências práticas dos nossos
diagnósticos é uma forma de diminuir sua força crítica transformadora ou, no
pior dos casos, é um modo de dar a entender que não acreditamos tanto naquilo
que nós mesmos professamos em discursos e análises teóricas.
“Encontrar
a vacina para um mal não é suficiente para que ele seja erradicado. Após
descobrir o remédio que cura, é preciso convencer o paciente de que ele é
eficaz e, em seguida, aplicá-lo.”
Um
dos expedientes mais comuns nas ciências médicas diz respeito ao fato que, uma
vez feito um diagnóstico e descoberto um procedimento capaz de curar uma
doença, é preciso colocá-lo em prática para que se resolva o problema
diagnosticado. Encontrar a vacina para um mal não é suficiente para que ele
seja erradicado. Após descobrir o remédio que cura, é preciso convencer o
paciente de que ele é eficaz e, em seguida, aplicá-lo. Nesse sentido, quando se
trata de diagnósticos políticos, quantos de nós estamos realmente dispostos a
fazer aquilo que indicamos que é preciso fazer? Quantos de nós estamos
dispostos a construir, nos aproximar e conviver, com alguma frequência, com as
pessoas mais pobres das periferias?
Aqui
é preciso deixar claro: não se trata de ignorar aquilo que há de correto nas
análises e nas críticas dos analistas, bem intencionados, que estão preocupados
com o futuro do campo progressista e da esquerda, tampouco de mobilizar o
expediente desonesto de desviar o olhar da crítica e dirigi-la aos sujeitos que
criticam. Trata-se, talvez, de pensar nas consequências políticas implicadas em
certa compreensão do binômio clássico da esquerda que é a relação entre teoria
e prática.
Dualismos
ingênuos e vanguardismos extemporâneos
Uma
das características mais presentes nas sociedades modernas capitalistas é a
separação (mais formal do que material) entre espaço público e espaço privado.
Essa separação nos trouxe muitos ganhos mas, de alguma forma, ela contribuiu
para um tipo de comportamento, mais comum entre intelectuais e certa classe
média esclarecida, que nos protege dentro de uma divisão social do trabalho em
que nossa tarefa é observar, fazer diagnósticos e apontar os horizontes e
caminhos sobre o que seria necessário fazer. Feito isso, parece que estamos
autorizados a voltar para nossas casas e dormir o sono tranquilo daqueles que
já cumpriram com sua parte “no nosso belo quadro social”, como diz a canção
popular.
No
entanto, quando se trata da vida política e dos desafios que o nosso tempo nos
impõe, fazer diagnósticos e apontar os horizontes é apenas uma parte da tarefa.
Talvez nos falte pensar um pouco mais na compreensão da relação entre teoria e
prática que opera como pano de fundo desse comportamento. Quais seriam os
motivos que nos prendem na armadilha que nos aproxima, quando convergimos na
avaliação de que precisamos conversar com as pessoas pobres das periferias, mas
nos distancia quando o tema é a disposição de enfrentar as contradições e os
desafios de ir lá e conversar com elas, construir com elas, aprender com elas,
ensiná-las quando preciso e se for preciso? Foi Hegel quem disse que não é
possível aprender a nadar antes de arriscar-se na água.
Aqui
é preciso deixar claro: não se trata de demonizar o trabalho de análise teórica
em defesa de um voluntarismo cego e ingênuo. Não se trata, tampouco, de
defender que o que tinha que ser interpretado já foi interpretado e agora só
nos resta aplicar as interpretações à realidade e organizarmos a luta social
sem um esforço de compreensão das dinâmicas e dos contornos cada vez mais
complexos dos conflitos sociais do nosso tempo. Talvez, para sermos
consequentes, a primeira vacina que devemos tomar é aquela que nos imuniza
contra dualismos ingênuos e vanguardismos extemporâneos.
“Os
movimentos existem em todo o país e possuem grande acúmulo político e
organizativo. Por que não juntar forças com eles e enfrentar as contradições
que eles enfrentam, desafiando o idealismo ingênuo, mas com compromisso com a
melhoria da vida das pessoas mais pobres?”
Se
boa parte das análises de jornalistas, professores e pesquisadores sobre as
falhas da esquerda nas últimas eleições apontam para nosso distanciamento das
bases sociais mais pobres das periferias, então o ensinamento hegeliano pode
nos ajudar: é preciso se arriscar na água (ou no barro, tanto faz) e ouvir, se
aproximar e se colocar à disposição para construir junto (sem pressa e com
generosidade) com as pessoas pobres das periferias.
Esse
envolvimento de aproximação não precisa ser construído do zero. Em todo o
Brasil há exemplos de grupos e movimentos sociais que precisam de apoio e que
se constroem a partir da articulação e organização das camadas populares. Nas
grandes cidades, o MTST possui um trabalho de construção popular, a partir da
luta pela moradia digna que tem crescido e ganhado cada vez mais protagonismo
nos últimos anos; as batalhas de Slams são um exemplo de produção cultural que
reúne milhares de jovens periféricos em quase todo o país; o Movimento dos
Trabalhadores Sem Direitos tem construído uma luta contra a precarização do
trabalho que reúne manicures, pedreiros, pintores, entregadores, camelôs e uma
série de outros trabalhadores informais; de Porto Alegre a Natal, de São Paulo
a Salvador, do Rio a Belém, nossas grandes cidades são espaços de inúmeros
saraus organizados pelas periferias e que ganhariam em visibilidade e força
política se tivessem mais apoio; as Cozinhas Solidárias espalhadas pelo país
são esforços que carregam um enorme potencial organizativo que vai além da
distribuição de comida gratuita para quem tem fome; isso sem mencionar o que se
constrói no campo onde há um conjunto de movimentos organizados, que têm o MST
como exemplo mais conhecido, mas que também reúne muitos outros esforços que
juntam pequenos produtores rurais para enfrentarem cotidianamente os desafios
postos pela luta desigual contra a produção capitalista.
Poderíamos
apresentar aqui mais uma centena dessas iniciativas, já em andamento, e que
precisam de todo tipo de apoio para construírem suas lutas. Não há uma receita
de “como fazer” que possa servir para todas essas organizações populares, mas
todas elas possuem um certo know how capaz de
reunir pessoas pobres e construir algo em comum capaz de enfrentar o
crescimento da direita, inclusive entre os mais pobres.
É
preciso não se esquecer que o processo de construção popular não deve ser visto
com a lente da cartilha do gerenciamento neoliberal que exige que primeiro se
construa um modelo de planejamento estratégico e, em seguida, garantida todas
as condições e os melhores quadros de funcionários, se execute a tarefa com
maior eficácia. Um outro cantor popular já nos disse que “a vida é real e de
viés”, um projeto de sociedade à esquerda não pode perder de vista esse
aspecto. Há certo espírito de tentativa e erro, de experimentação e aposta que
acompanha experiências políticas dessa natureza e que não precisa ser
compreendido como um problema. No entanto, isso não significa que só nos resta
apostar e experimentar tudo do zero orientados por uma espécie de otimismo da
vontade. Os movimentos populares existem em todo o país e possuem grande
acúmulo político e organizativo. Por que não juntar forças com eles e enfrentar
as contradições que eles enfrentam, desafiando o idealismo ingênuo, mas com
compromisso com a melhoria da vida das pessoas mais pobres?
“Não
é preciso dizer que o desafio de não perder de vista a relação intrínseca entre
teoria e prática não é algo novo, ao menos desde os Manuscritos de 44,
Karl Marx já destacava a sua relevância.”
É
nesse sentido que é preciso destacar que boa parte das análises que se
multiplicaram nesse período pós eleições municipais se esquecem que, para o
pensamento progressista e de esquerda, a prática é uma de suas características
constitutivas. Não apenas a prática teórica, mas também a prática que busca
construir laços sólidos e permanentes com aqueles que nós enxergamos como
oprimidos; aquela que enfrenta os desafios e contradições concretas implicadas
na efetivação de nossos valores e princípios teóricos. As contradições são
concretas e só podem ser superadas de forma concreta.
Não
é preciso dizer que o desafio de não perder de vista a relação intrínseca entre
teoria e prática não é algo novo, ao menos desde os Manuscritos de 44,
Karl Marx já destacava a sua relevância. Mas a passagem em que ele nos chama
atenção para isso é tão elucidativa que não seria exagero reproduzi-la aqui.
Ele diz:
“A
própria resolução das oposições teóricas só é possível de um
modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua
solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa
vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque a
tomou apenas como tarefa teórica.”
A
crítica é uma parte absolutamente necessária para que a gente possa transformar
nossas mazelas em esperança, nossas experiências sociais regressivas em
potencial de florescimento e libertação emancipatória. Nenhum movimento social
organizado sobrevive e tem vida longa sem dialogar com os diagnósticos e
teorias construídas por pesquisadores e intelectuais que dedicam suas vidas aos
estudos das dinâmicas sociais e políticas nas universidades e em centros de
pesquisas. Uma sociedade que pretende ser capaz de construir um projeto de
esquerda, acabar com a desigualdade e com as mazelas da pobreza não vive sem
ciência, sem teoria, sem intelectuais e sem crítica; e também não vive sem a
solidariedade objetiva, a compreensão, o respeito, o convívio cotidiano e permanente
com quem enfrenta os desafios trazidos pela falta do botijão de gás na hora do
almoço e pela humilhação de não conseguir ler o comunicado do INSS sobre o
corte do benefício social.
A
crítica, e os críticos, só têm a ganhar quando se aproxima, convive e
compartilha concretamente as experiências de quem é silenciado e oprimido pela
vergonha de ter que pedir ajuda para comprar o leite que falta para o filho, ou
que pena pela falta de autoestima de falar em público perto de gente
instruída. Foi Leonardo Boff quem um dia disse que “a cabeça pensa a
partir de onde os pés pisam”.
Fonte:
Tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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