Paulo
Kliass: Quem precisa de teto é o rentismo
Alguns
dos problemas mais graves que vêm afetando a sociedade brasileira ao longo das
últimas décadas podem ser condensados em um binômio de natureza bastante
perversa: a desindustrialização combinada à financeirização. Ao contrário do
que afirmam aqueles que defendem o ocorrido, não se trata de um processo
natural e inevitável, decorrente apenas de uma tendência geral observada em
quase todos os países do mundo. A forma como o fenômeno tomou corpo no Brasil
demonstra que foi algo estimulado e induzido a partir de decisões tomadas no
âmbito do aparelho de Estado e que foram implementadas sob a forma intencional
de políticas públicas devastadoras.
O
movimento de redução do espaço do setor que mais produzia valor agregado
tornou-se viável a partir da liberalização generalizada das importações, que
teve início em 1990 com o governo Collor. A abertura comercial ampla de forma
unilateral e sem um programa que estabelecesse a exigência de contrapartida dos
países parceiros comprometeu de forma aguda a capacidade de concorrência da
indústria brasileira. Além disso, a prática de uma política cambial sem
intervenção governamental – a conhecida ilusão neoliberal nas tais das forças
de mercado – levou a processos de valorização da moeda brasileira de forma
artificial e irrealista, agravando ainda mais a sobrevivência do setor
secundário nacional.
O
processo de aprofundamento da financeirização tem lugar ao longo de período
semelhante ao caso anterior. A hegemonia consolidada do sistema financeiro se
beneficia também de decisões implementadas no âmbito da institucionalidade da
política econômica na administração pública federal. Esse foi o caso da recusa
sistemática do Banco Central (BC) em cumprir com suas funções precípuas de
órgão responsável pela regulação e fiscalização do sistema bancário e
financeiro. Assim, ao longo de décadas a sociedade assistiu de forma passiva à
permanência de mecanismos de espoliação da grande maioria da população aos
agentes econômicos do financismo, por meio de “spreads” elevadíssimos, de
tarifas escorchantes e de práticas de cartel por parte dos grandes bancos. Por
outro, a manutenção da taxa oficial de juros em patamares estratosféricos
praticamente inviabilizava qualquer empreendimento no campo produtivo. O custo
financeiro tornava proibitivo esse tipo de iniciativa no setor real da
economia.
·
Desindustrialização,
financeirização e os riscos do arcabouço fiscal
Os
dois casos acima descritos deveriam servir como alerta para que seja construída
de forma urgente uma barreira à continuidade de outro processo igualmente
prejudicial – a permanência ao longo de décadas de medidas de austeridade
fiscal. Esta se apresenta também sob a forma de uma narrativa enganosa, em que
haveria uma necessidade inelutável de redução dos níveis de despesa pública
observados em nosso país. Seja pelo lado de um combate a um “setor público
gastador” por natureza, seja pelo discurso catastrofista de uma quebra iminente
do Estado por conta de níveis elevados do déficit e do endividamento, o fato é
que a solução sempre se apresenta por meio da faceta reducionista.
A
saga empreendida pelos representantes do financismo em prol da austeridade
fiscal remonta à crise da dívida externa da década de 1980. Ali tem início a
implementação de medidas concretas daquilo que depois passou a ser conhecido
como Consenso de Washington. A tríade composta por orientação para a
liberalização generalizada das economias, propostas de privatização das
empresas estatais e medidas de austeridade fiscal atravessa os continentes e
fixa raízes profundas também em nossa terra. Ainda que com certo atraso, no ano
de 2000 o governo Fernando Henrique Cardoso promove a introdução de uma peça
estratégica em nossa estrutura institucional e legal das finanças públicas: a
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), por meio da Lei Complementar nº 101. Os
princípios da austeridade passam a fazer parte das regras jurídicas.
Mais
à frente, em 2016, na sequência do golpeachment perpetrado
contra a presidenta Dilma Rousseff, o governo Temer introduz em nossa
Constituição o dispositivo do Teto de Gastos, por meio da EC nº 95. Com essa
inovação, os propósitos nem sempre transparentes de redução do Estado
brasileiro à sua dimensão mínima têm a seu favor o próprio texto
constitucional. A intenção explícita da regra austericida era de impedir
qualquer crescimento das despesas orçamentárias por longos 20 anos. Mas sua
natureza severamente draconiana e impeditiva do crescimento do PIB nos níveis
necessários fez que com esse regime fiscal tivesse uma vida mais curta do que o
previsto.
·
Revogação do teto de
gastos e a armadilha do arcabouço
No
período mais recente, em 2023 o ministro Haddad convence o presidente Lula a
adotar uma estratégia igualmente equivocada no trato da questão fiscal.
Tratava-se de substituir o Teto de Gastos por um novo dispositivo de
austeridade. Assim, o Brasil passou a contar com a Lei Complementar nº 200, que
trata do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Apesar de não estarem mais inseridos na
Constituição, os princípios austericidas seguem orientando as ações da política
econômica, promovendo um achatamento relativo dos níveis de despesa
orçamentária e impedindo a retomada do protagonismo do Estado e da recuperação
de padrões minimamente aceitáveis dos programas de políticas públicas.
A
concepção do NAF foi articulada pelo ministro da Fazenda em negociação bastante
restrita, envolvendo apenas o presidente bolsonarista do BC e presidentes de
bancos privados. Ao recusar as contribuições e os alertas dos economistas do
campo progressista, Haddad convenceu Lula a respeito da necessidade de um
dispositivo que atendesse plenamente aos interesses do financismo. Os
resultados passaram a ser sentidos no dia seguinte à promulgação da nova lei.
Autoridades da área econômica iniciaram um processo de divulgação de propostas
visando a flexibilizar as despesas ditas engessadas. A imprensa começou a
divulgar diariamente sugestões de retirar os pisos constitucionais para saúde e
educação, além de apresentar a ideia de desvincular os benefícios previdenciários
do valor do salário-mínimo.
Assim,
tem sido quase dois anos com ataques permanentes às conquistas do movimento
social cristalizadas na Constituição Federal. Correndo por fora, o Ministério
da Fazenda implementa uma política fiscal arrochada, com contingenciamentos,
bloqueios e cortes de despesas. Tudo em função da obstinação injustificável de
Haddad com uma meta de zerar o déficit primário em um curto prazo de tempo.
Para atender a estes dois parâmetros de natureza austericida, o governo termina
por não contar com recursos orçamentários para implementar o programa que levou
Lula à vitória eleitoral em outubro de 2022.
As
últimas semanas foram objeto de muita pressão das entidades e forças políticas
do campo progressista, de forma que aparentemente as ideias mirabolantes e
maximalistas de Haddad não contarão com o aval do presidência da República. Mas
permanece o foco no corte de gastos a qualquer custo e os dias passam para que
a equipe apresente o desenho final das propostas contracionistas para o
exercício fiscal de 2025. Pelos números até agora divulgados, tudo indica que a
montanha realmente pariu um rato, como diz a sabedoria popular. Para quem
afirmava com todas as pompas perante a banca privada que haveria medidas
estruturais de redução de despesas, o titular vai ter de se contentar com um
corte de “apenas” 30 ou 50 bilhões de reais.
·
Lula: não haverá teto
de gastos em meu governo
No
entanto, há quem considere mais adequada para o caso a analogia com a parábola
do “bode na sala”, uma vez que os cortes em sua versão definitiva serão
bastante prejudiciais em termos políticos, sociais e mesmo econômicos. Para o
momento atual, ao invés de ficar amealhando bilhões aqui e acolá com medidas
pontuais e casuísticas de cortes nas despesas, bastaria editar uma Medida
Provisória eliminando o absurdo da isenção tributária para lucros e dividendos.
Na verdade, é importante lembrar que os governos do PT tiveram desde o dia 1º
de janeiro de 2003 para editar tal norma. E nada foi feito até o momento. Da
noite para o dia o governo terá sua receita tributária anual elevada em valor
superior aos R$ 50 bilhões que tanto esforço está sendo realizado para
alcançar.
Lula
deve ter plena consciência dos efeitos nefastos que tal estratégia de insistir
na tese da austeridade fiscal pode provocar para o país e para a avaliação
popular da segunda metade de seu terceiro mandato. Tanto é assim que, ao longo
da campanha eleitoral de 2022, ele nunca deixou de mencionar sua recusa ao
princípio do teto de gastos e sua intenção de abandonar tal restrição. Abaixo
seguem algumas das declarações do então candidato a esse respeito durante
aquele ano:
(…)
“O teto de gastos foi criado para que se evitasse dar aumento na saúde, na
educação, no transporte coletivo, na renda das pessoas que trabalham neste
país. É importante saber que não é nenhuma bravata. Vocês sabem que eu não sou
de fazer bravata, não sou de rasgar nota de dez, não sou de dizer coisas que eu
não acredito, mas não terá teto de gastos em lei no nosso país” (…) (GN)
(…)
“Vou acabar por que o teto de gastos representa os interesses do setor
financeiro” (…) [GN]
(…)
“Não vai ter teto de gastos no meu governo. Vamos investir em educação, porque
é o que dá mais retorno ao país. O que vai resolver a relação dívida/PIB é o
crescimento do PIB” (…) [GN]
As
pessoas que compartilham de uma maior simpatia ou dose de tolerância por Haddad
poderão argumentar: “Ah, Paulo, não seja injusto, pois o teto de gastos não
existe mais, ele foi substituído pelo NAF”. Na aparência, isso até pode ser
verdade. Mas na essência o mecanismo da austeridade não é lá muito diferente.
Tanto que a expressão é utilizada pelo próprio ministro da Fazenda. Veja o que
ele afirmou em entrevista recente:
(…)
O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a
despesa não pode crescer acima de 70% da receita. (…) [GN]
A
situação atual até pode ser contornada com a conhecida habilidade de Lula em
evitar conflitos e buscar soluções de consenso em que os interesses das classes
dominantes e da maioria da população não sejam assim tão prejudicados. Mas o
ponto a reter aqui no raciocínio é que a permanência do NAF apenas adia o
problema para alguns meses à frente. Isso pelo fato de que a aritmética não
permite que o bolo total dos gastos orçamentários cresça tão somente a um ritmo
de 70% da elevação das receitas, enquanto rubricas relevantes continuem
vinculadas ao total das receitas (saúde e educação) e os benefícios
previdenciários cresçam acima da inflação, acompanhando o valor do
salário-mínimo.
Essa
é espada de Dâmocles que permanecerá sobre a cabeça do governo enquanto o NAF
não for alterado de forma substancial ou simplesmente abandonado. A cada nova
conjuntura voltarão as baterias do financismo e das elites endinheiradas para
que as chamadas “medidas estruturais” da austeridade sejam adotadas. E o
governo deverá enfrentar uma nova crise política e muito desgaste. Mais uma
vez, a palavra final está com Lula, o presidente da República.
¨
O “desenvolvimento
sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China
O
presidente Lula e Xi Jinping assinaram um acordo (20/11) no qual um dos itens
propõe a construção de novas usinas nucleares com tecnologia considerada, no
documento, avançada e segura, além de ser um marco importante na cooperação
entre Brasil e China. O acordo promete fortalecer a capacidade produtiva e a
segurança energética dos dois países, promovendo o desenvolvimento de
tecnologias nucleares de ponta. Não esqueçamos que Angra 3 já está caindo de
velha, antes mesmo de ser terminada. A construção da usina, localizada no estado
do Rio de Janeiro, entrou na sua fase final com a montagem dos componentes
principais e instalação do reator nuclear. Angra 3 está em obras desde 30 de
maio de 2010 e enfrentou vários atrasos ao longo dos anos.
As
interrupções aconteceram em 2015 devido a uma revisão do financiamento e
investigações relacionadas à Operação Lava Jato, mas as obras foram retomadas
em 2022. Questões contratuais e a necessidade de novos investimentos
contribuíram para outros atrasos. A estimativa atual é que a usina venha a
operar no final de 2028 ou até 2030. O custo inicial de Angra 3 era de R$ 10
bilhões, mas hoje está em torno de R$ 20,3 bilhões. No meio desse imbróglio com
a construção de uma sucata que tem custado o dobro do previsto, e nem vou
entrar nesse mérito, o governo brasileiro assina esse acordo com a China, para
a construção de novas usinas nucleares no Brasil. A promessa é de utilizar
tecnologia avançada e “segura” fornecida pela China.
Ao
retornar no tempo, com a intenção de construir novas plantas de usinas
nucleares, o governo brasileiro ignora os riscos inerentes. Entre os pontos
acordados está a capacitação e treinamento de brasileiros para assimilar esse
conhecimento “atualizado” atribuído aos chineses.
Mesmo
com uma aversão da sociedade à tecnologia de usinas nucleares, o acordo tenta
dourar a pílula com a proposta de implementar novas medidas que incluem
“sustentabilidade ambiental” e segurança. No bojo do texto entre China e Brasil
foram jogadas pílulas de impropriedades como o de obter incremento na
capacidade de gerar mais energia no Brasil, além de mencionar uma
diversificação na matriz energética. Mas a cereja do bolo ficou, mesmo, com o
que chamaram de potencial para a redução das emissões dos gases de efeito
estufa, adotando a energia nuclear com o carimbo de “fonte de energia limpa”.
Mas essa parceria sai com chavões desenvolvimentistas que conhecemos bem, o de
impulsionar o desenvolvimento econômico com inovação tecnológica e
desenvolvimento sustentável entre os dois países.
O
Brasil tem de considerar alguns desafios na implementação desse acordo, como a
segurança e o descarte dos resíduos perigosos. A construção e manutenção de
usinas nucleares requerem orçamentos altos e uma complexidade tecnológica.
Considerando a matriz energética brasileira, com o crescimento de geração pelas
renováveis como a eólica e solar, e as deploráveis hidrelétricas (gerando
energia suja), construídas às custas da biodiversidade, não haveria a
necessidade da retomada da energia nuclear. No entanto esse acordo entre Brasil
e China, para construção de novas plantas nucleares, tenta dar um tom de
tecnologia moderna e avanço científico para o país. Aceitar esse retrocesso é
voltar ao passado com mais preocupações com questões ambientais e de segurança.
A decisão de expandir o uso de energia nuclear envolveria ponderar esses
fatores e considerar as necessidades energéticas futuras do Brasil, bem como as
preocupações ambientais e de segurança futura dos descartes dos resíduos.
• Economista ressalta os
acordos com a China: “Nos dá uma força que nunca tivemos na nossa história”
Os
presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Xi Jinping, da China, assinaram 37
acordos bilaterais na última quarta-feira (20), consolidando o tigre asiático
como maior parceiro comercial do país. Para
analisar o impacto desta parceria, o programa TVGGN 20H recebeu Jorge Arbache, professor de economia da
Universidade de Brasília e ex-vice-presidente de Setor Privado do Banco de
Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF). “Não tem como não reconhecer
a importância da China para o Brasil e para a América Latina, que é muito
grande e isso se traduz nos números que estão aí, sejam números de comércio,
mas também de investimentos, seja na presença da China em vários setores
críticos para a região. Eu destacaria a questão da infraestrutura e, cada vez,
mais a China tem compartilhado tecnologias”, ressalta Arbache.
Apesar
da longa agenda do presidente chinês no país, não aconteceu o que o tigre
asiático mais almejava, que era a entrada formal do Brasil no Cinturão da Nova
Rota da Seda. “Acordos com China foram
firmados, a relação com a China foi reafirmada em um plano ainda mais
estratégico, ganhou a China, ganhou o Brasil. O Brasil se protegeu em não ter
assinado e não ter entrado formalmente para o Belt and Road, então não provocou
Europa e os Estados Unidos, mas por outro lado fez acordos que são tão
importantes quanto”, concluiu o professor de economia.
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Futuro
Na
visão de Arbache, os acordos firmados com o Brasil foram vantajosos para a
China, tendo em vista que o Brasil tem o peso da influência de ser ouvido pelos
lados A e B. “Isso hoje em dia não é pouco. Nunca foi pouco, mas hoje em dia é
mais destacado.” Outro ganho do tigre
asiático foi a influência no Brasil nas discussões sobre descarbonização da
economia global, na agenda de segurança alimentar e na agenda de segurança
energética. “Não tem como tratar desses assuntos sem que o Brasil esteja na
mesa.” O economista afirma ainda que, atualmente, ter proximidade com o Brasil
em tais pautas é “ter proximidade com as soluções que a economia global vai
enfrentar”. “O que nos dá uma força que a gente nunca teve na nossa história.
jamais tivemos tanto vento a favor como a gente tem agora.”
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Infraestrutura
O
convidado observou ainda a postura da China, que percebeu que para estreitar as
parcerias na América Latina, tem de abrir mais o mercado para a região, além de
compartilhar mais tecnologias. “A grande diferença da China para os Estados
Unidos e Europa para a região hoje em dia está no apetite em fazer
investimentos em especial em infraestrutura, que é o que a gente mais precisa”,
emenda o Arbache.
O
maior exemplo deste posicionamento foi a construção do porto multibilionário de
Chancay, no Peru. Já em relação à guerra comercial entre Estados Unidos e
China, especialmente após a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, Jorge
Arbache acredita na disputa pelo protagonismo do mundo. “A economia do futuro será a economia da
descarbonização. E aqui a China partiu muito na frente dos EUA e Europa. Hoje,
a China lidera várias cadeias importantes para a economia da descarbonização,
como a energia solar, energia eólica, carros elétricos, terras raras, minerais
para transição e tantas outras tecnologias”, emenda.
De
acordo com projeções de bancos multilaterais e de grandes empresas de
consultoria internacionais, a economia da descarbonização deve movimentar até
US$ 100 trilhões de dólares até 2050. “A grande corrida é para saber quem vai
ser o protagonista, quem é que vai comer esse bolo. Hoje, de maneira
inequívoca, a gente pode dizer que é a China”, afirma o convidado. Por fim, a eleição de Trump deve aumentar o
processo de fragmentação do comércio e do investimento a nível global, o que
não é favorável para o Brasil. “Por outro lado, esse tensionamento poderá criar
oportunidades de comércio para o Brasil em várias áreas, inclusive, que o
Brasil concorre com os EUA”, conclui.
Fonte:
Outras Palavras/Correio da Cidadania/Jornal GGN
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