quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Paulo Kliass: Quem precisa de teto é o rentismo

Alguns dos problemas mais graves que vêm afetando a sociedade brasileira ao longo das últimas décadas podem ser condensados em um binômio de natureza bastante perversa: a desindustrialização combinada à financeirização. Ao contrário do que afirmam aqueles que defendem o ocorrido, não se trata de um processo natural e inevitável, decorrente apenas de uma tendência geral observada em quase todos os países do mundo. A forma como o fenômeno tomou corpo no Brasil demonstra que foi algo estimulado e induzido a partir de decisões tomadas no âmbito do aparelho de Estado e que foram implementadas sob a forma intencional de políticas públicas devastadoras.

O movimento de redução do espaço do setor que mais produzia valor agregado tornou-se viável a partir da liberalização generalizada das importações, que teve início em 1990 com o governo Collor. A abertura comercial ampla de forma unilateral e sem um programa que estabelecesse a exigência de contrapartida dos países parceiros comprometeu de forma aguda a capacidade de concorrência da indústria brasileira. Além disso, a prática de uma política cambial sem intervenção governamental – a conhecida ilusão neoliberal nas tais das forças de mercado – levou a processos de valorização da moeda brasileira de forma artificial e irrealista, agravando ainda mais a sobrevivência do setor secundário nacional.

O processo de aprofundamento da financeirização tem lugar ao longo de período semelhante ao caso anterior. A hegemonia consolidada do sistema financeiro se beneficia também de decisões implementadas no âmbito da institucionalidade da política econômica na administração pública federal. Esse foi o caso da recusa sistemática do Banco Central (BC) em cumprir com suas funções precípuas de órgão responsável pela regulação e fiscalização do sistema bancário e financeiro. Assim, ao longo de décadas a sociedade assistiu de forma passiva à permanência de mecanismos de espoliação da grande maioria da população aos agentes econômicos do financismo, por meio de “spreads” elevadíssimos, de tarifas escorchantes e de práticas de cartel por parte dos grandes bancos. Por outro, a manutenção da taxa oficial de juros em patamares estratosféricos praticamente inviabilizava qualquer empreendimento no campo produtivo. O custo financeiro tornava proibitivo esse tipo de iniciativa no setor real da economia.

·        Desindustrialização, financeirização e os riscos do arcabouço fiscal

Os dois casos acima descritos deveriam servir como alerta para que seja construída de forma urgente uma barreira à continuidade de outro processo igualmente prejudicial – a permanência ao longo de décadas de medidas de austeridade fiscal. Esta se apresenta também sob a forma de uma narrativa enganosa, em que haveria uma necessidade inelutável de redução dos níveis de despesa pública observados em nosso país. Seja pelo lado de um combate a um “setor público gastador” por natureza, seja pelo discurso catastrofista de uma quebra iminente do Estado por conta de níveis elevados do déficit e do endividamento, o fato é que a solução sempre se apresenta por meio da faceta reducionista.

A saga empreendida pelos representantes do financismo em prol da austeridade fiscal remonta à crise da dívida externa da década de 1980. Ali tem início a implementação de medidas concretas daquilo que depois passou a ser conhecido como Consenso de Washington. A tríade composta por orientação para a liberalização generalizada das economias, propostas de privatização das empresas estatais e medidas de austeridade fiscal atravessa os continentes e fixa raízes profundas também em nossa terra. Ainda que com certo atraso, no ano de 2000 o governo Fernando Henrique Cardoso promove a introdução de uma peça estratégica em nossa estrutura institucional e legal das finanças públicas: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), por meio da Lei Complementar nº 101. Os princípios da austeridade passam a fazer parte das regras jurídicas.

Mais à frente, em 2016, na sequência do golpeachment perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff, o governo Temer introduz em nossa Constituição o dispositivo do Teto de Gastos, por meio da EC nº 95. Com essa inovação, os propósitos nem sempre transparentes de redução do Estado brasileiro à sua dimensão mínima têm a seu favor o próprio texto constitucional. A intenção explícita da regra austericida era de impedir qualquer crescimento das despesas orçamentárias por longos 20 anos. Mas sua natureza severamente draconiana e impeditiva do crescimento do PIB nos níveis necessários fez que com esse regime fiscal tivesse uma vida mais curta do que o previsto.

·        Revogação do teto de gastos e a armadilha do arcabouço

No período mais recente, em 2023 o ministro Haddad convence o presidente Lula a adotar uma estratégia igualmente equivocada no trato da questão fiscal. Tratava-se de substituir o Teto de Gastos por um novo dispositivo de austeridade. Assim, o Brasil passou a contar com a Lei Complementar nº 200, que trata do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Apesar de não estarem mais inseridos na Constituição, os princípios austericidas seguem orientando as ações da política econômica, promovendo um achatamento relativo dos níveis de despesa orçamentária e impedindo a retomada do protagonismo do Estado e da recuperação de padrões minimamente aceitáveis dos programas de políticas públicas.

A concepção do NAF foi articulada pelo ministro da Fazenda em negociação bastante restrita, envolvendo apenas o presidente bolsonarista do BC e presidentes de bancos privados. Ao recusar as contribuições e os alertas dos economistas do campo progressista, Haddad convenceu Lula a respeito da necessidade de um dispositivo que atendesse plenamente aos interesses do financismo. Os resultados passaram a ser sentidos no dia seguinte à promulgação da nova lei. Autoridades da área econômica iniciaram um processo de divulgação de propostas visando a flexibilizar as despesas ditas engessadas. A imprensa começou a divulgar diariamente sugestões de retirar os pisos constitucionais para saúde e educação, além de apresentar a ideia de desvincular os benefícios previdenciários do valor do salário-mínimo.

Assim, tem sido quase dois anos com ataques permanentes às conquistas do movimento social cristalizadas na Constituição Federal. Correndo por fora, o Ministério da Fazenda implementa uma política fiscal arrochada, com contingenciamentos, bloqueios e cortes de despesas. Tudo em função da obstinação injustificável de Haddad com uma meta de zerar o déficit primário em um curto prazo de tempo. Para atender a estes dois parâmetros de natureza austericida, o governo termina por não contar com recursos orçamentários para implementar o programa que levou Lula à vitória eleitoral em outubro de 2022.

As últimas semanas foram objeto de muita pressão das entidades e forças políticas do campo progressista, de forma que aparentemente as ideias mirabolantes e maximalistas de Haddad não contarão com o aval do presidência da República. Mas permanece o foco no corte de gastos a qualquer custo e os dias passam para que a equipe apresente o desenho final das propostas contracionistas para o exercício fiscal de 2025. Pelos números até agora divulgados, tudo indica que a montanha realmente pariu um rato, como diz a sabedoria popular. Para quem afirmava com todas as pompas perante a banca privada que haveria medidas estruturais de redução de despesas, o titular vai ter de se contentar com um corte de “apenas” 30 ou 50 bilhões de reais.

·        Lula: não haverá teto de gastos em meu governo

No entanto, há quem considere mais adequada para o caso a analogia com a parábola do “bode na sala”, uma vez que os cortes em sua versão definitiva serão bastante prejudiciais em termos políticos, sociais e mesmo econômicos. Para o momento atual, ao invés de ficar amealhando bilhões aqui e acolá com medidas pontuais e casuísticas de cortes nas despesas, bastaria editar uma Medida Provisória eliminando o absurdo da isenção tributária para lucros e dividendos. Na verdade, é importante lembrar que os governos do PT tiveram desde o dia 1º de janeiro de 2003 para editar tal norma. E nada foi feito até o momento. Da noite para o dia o governo terá sua receita tributária anual elevada em valor superior aos R$ 50 bilhões que tanto esforço está sendo realizado para alcançar.

Lula deve ter plena consciência dos efeitos nefastos que tal estratégia de insistir na tese da austeridade fiscal pode provocar para o país e para a avaliação popular da segunda metade de seu terceiro mandato. Tanto é assim que, ao longo da campanha eleitoral de 2022, ele nunca deixou de mencionar sua recusa ao princípio do teto de gastos e sua intenção de abandonar tal restrição. Abaixo seguem algumas das declarações do então candidato a esse respeito durante aquele ano:

(…) “O teto de gastos foi criado para que se evitasse dar aumento na saúde, na educação, no transporte coletivo, na renda das pessoas que trabalham neste país. É importante saber que não é nenhuma bravata. Vocês sabem que eu não sou de fazer bravata, não sou de rasgar nota de dez, não sou de dizer coisas que eu não acredito, mas não terá teto de gastos em lei no nosso país” (…) (GN)

(…) “Vou acabar por que o teto de gastos representa os interesses do setor financeiro” (…) [GN]

(…) “Não vai ter teto de gastos no meu governo. Vamos investir em educação, porque é o que dá mais retorno ao país. O que vai resolver a relação dívida/PIB é o crescimento do PIB” (…) [GN]

As pessoas que compartilham de uma maior simpatia ou dose de tolerância por Haddad poderão argumentar: “Ah, Paulo, não seja injusto, pois o teto de gastos não existe mais, ele foi substituído pelo NAF”. Na aparência, isso até pode ser verdade. Mas na essência o mecanismo da austeridade não é lá muito diferente. Tanto que a expressão é utilizada pelo próprio ministro da Fazenda. Veja o que ele afirmou em entrevista recente:

(…) O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. (…) [GN]

A situação atual até pode ser contornada com a conhecida habilidade de Lula em evitar conflitos e buscar soluções de consenso em que os interesses das classes dominantes e da maioria da população não sejam assim tão prejudicados. Mas o ponto a reter aqui no raciocínio é que a permanência do NAF apenas adia o problema para alguns meses à frente. Isso pelo fato de que a aritmética não permite que o bolo total dos gastos orçamentários cresça tão somente a um ritmo de 70% da elevação das receitas, enquanto rubricas relevantes continuem vinculadas ao total das receitas (saúde e educação) e os benefícios previdenciários cresçam acima da inflação, acompanhando o valor do salário-mínimo.

Essa é espada de Dâmocles que permanecerá sobre a cabeça do governo enquanto o NAF não for alterado de forma substancial ou simplesmente abandonado. A cada nova conjuntura voltarão as baterias do financismo e das elites endinheiradas para que as chamadas “medidas estruturais” da austeridade sejam adotadas. E o governo deverá enfrentar uma nova crise política e muito desgaste. Mais uma vez, a palavra final está com Lula, o presidente da República.

 

¨      O “desenvolvimento sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China

O presidente Lula e Xi Jinping assinaram um acordo (20/11) no qual um dos itens propõe a construção de novas usinas nucleares com tecnologia considerada, no documento, avançada e segura, além de ser um marco importante na cooperação entre Brasil e China. O acordo promete fortalecer a capacidade produtiva e a segurança energética dos dois países, promovendo o desenvolvimento de tecnologias nucleares de ponta. Não esqueçamos que Angra 3 já está caindo de velha, antes mesmo de ser terminada. A construção da usina, localizada no estado do Rio de Janeiro, entrou na sua fase final com a montagem dos componentes principais e instalação do reator nuclear. Angra 3 está em obras desde 30 de maio de 2010 e enfrentou vários atrasos ao longo dos anos.

As interrupções aconteceram em 2015 devido a uma revisão do financiamento e investigações relacionadas à Operação Lava Jato, mas as obras foram retomadas em 2022. Questões contratuais e a necessidade de novos investimentos contribuíram para outros atrasos. A estimativa atual é que a usina venha a operar no final de 2028 ou até 2030. O custo inicial de Angra 3 era de R$ 10 bilhões, mas hoje está em torno de R$ 20,3 bilhões. No meio desse imbróglio com a construção de uma sucata que tem custado o dobro do previsto, e nem vou entrar nesse mérito, o governo brasileiro assina esse acordo com a China, para a construção de novas usinas nucleares no Brasil. A promessa é de utilizar tecnologia avançada e “segura” fornecida pela China.

Ao retornar no tempo, com a intenção de construir novas plantas de usinas nucleares, o governo brasileiro ignora os riscos inerentes. Entre os pontos acordados está a capacitação e treinamento de brasileiros para assimilar esse conhecimento “atualizado” atribuído aos chineses.

Mesmo com uma aversão da sociedade à tecnologia de usinas nucleares, o acordo tenta dourar a pílula com a proposta de implementar novas medidas que incluem “sustentabilidade ambiental” e segurança. No bojo do texto entre China e Brasil foram jogadas pílulas de impropriedades como o de obter incremento na capacidade de gerar mais energia no Brasil, além de mencionar uma diversificação na matriz energética. Mas a cereja do bolo ficou, mesmo, com o que chamaram de potencial para a redução das emissões dos gases de efeito estufa, adotando a energia nuclear com o carimbo de “fonte de energia limpa”. Mas essa parceria sai com chavões desenvolvimentistas que conhecemos bem, o de impulsionar o desenvolvimento econômico com inovação tecnológica e desenvolvimento sustentável entre os dois países.

O Brasil tem de considerar alguns desafios na implementação desse acordo, como a segurança e o descarte dos resíduos perigosos. A construção e manutenção de usinas nucleares requerem orçamentos altos e uma complexidade tecnológica. Considerando a matriz energética brasileira, com o crescimento de geração pelas renováveis como a eólica e solar, e as deploráveis hidrelétricas (gerando energia suja), construídas às custas da biodiversidade, não haveria a necessidade da retomada da energia nuclear. No entanto esse acordo entre Brasil e China, para construção de novas plantas nucleares, tenta dar um tom de tecnologia moderna e avanço científico para o país. Aceitar esse retrocesso é voltar ao passado com mais preocupações com questões ambientais e de segurança. A decisão de expandir o uso de energia nuclear envolveria ponderar esses fatores e considerar as necessidades energéticas futuras do Brasil, bem como as preocupações ambientais e de segurança futura dos descartes dos resíduos.

 

•                       Economista ressalta os acordos com a China: “Nos dá uma força que nunca tivemos na nossa história”

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Xi Jinping, da China, assinaram 37 acordos bilaterais na última quarta-feira (20), consolidando o tigre asiático como maior parceiro comercial do país.  Para analisar o impacto desta parceria, o programa TVGGN 20H recebeu  Jorge Arbache, professor de economia da Universidade de Brasília e ex-vice-presidente de Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF). “Não tem como não reconhecer a importância da China para o Brasil e para a América Latina, que é muito grande e isso se traduz nos números que estão aí, sejam números de comércio, mas também de investimentos, seja na presença da China em vários setores críticos para a região. Eu destacaria a questão da infraestrutura e, cada vez, mais a China tem compartilhado tecnologias”, ressalta Arbache.

Apesar da longa agenda do presidente chinês no país, não aconteceu o que o tigre asiático mais almejava, que era a entrada formal do Brasil no Cinturão da Nova Rota da Seda.  “Acordos com China foram firmados, a relação com a China foi reafirmada em um plano ainda mais estratégico, ganhou a China, ganhou o Brasil. O Brasil se protegeu em não ter assinado e não ter entrado formalmente para o Belt and Road, então não provocou Europa e os Estados Unidos, mas por outro lado fez acordos que são tão importantes quanto”, concluiu o professor de economia.

<><> Futuro

Na visão de Arbache, os acordos firmados com o Brasil foram vantajosos para a China, tendo em vista que o Brasil tem o peso da influência de ser ouvido pelos lados A e B. “Isso hoje em dia não é pouco. Nunca foi pouco, mas hoje em dia é mais destacado.”  Outro ganho do tigre asiático foi a influência no Brasil nas discussões sobre descarbonização da economia global, na agenda de segurança alimentar e na agenda de segurança energética. “Não tem como tratar desses assuntos sem que o Brasil esteja na mesa.” O economista afirma ainda que, atualmente, ter proximidade com o Brasil em tais pautas é “ter proximidade com as soluções que a economia global vai enfrentar”. “O que nos dá uma força que a gente nunca teve na nossa história. jamais tivemos tanto vento a favor como a gente tem agora.”

<><> Infraestrutura

O convidado observou ainda a postura da China, que percebeu que para estreitar as parcerias na América Latina, tem de abrir mais o mercado para a região, além de compartilhar mais tecnologias. “A grande diferença da China para os Estados Unidos e Europa para a região hoje em dia está no apetite em fazer investimentos em especial em infraestrutura, que é o que a gente mais precisa”, emenda o Arbache.

O maior exemplo deste posicionamento foi a construção do porto multibilionário de Chancay, no Peru. Já em relação à guerra comercial entre Estados Unidos e China, especialmente após a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, Jorge Arbache acredita na disputa pelo protagonismo do mundo.  “A economia do futuro será a economia da descarbonização. E aqui a China partiu muito na frente dos EUA e Europa. Hoje, a China lidera várias cadeias importantes para a economia da descarbonização, como a energia solar, energia eólica, carros elétricos, terras raras, minerais para transição e tantas outras tecnologias”, emenda.

De acordo com projeções de bancos multilaterais e de grandes empresas de consultoria internacionais, a economia da descarbonização deve movimentar até US$ 100 trilhões de dólares até 2050. “A grande corrida é para saber quem vai ser o protagonista, quem é que vai comer esse bolo. Hoje, de maneira inequívoca, a gente pode dizer que é a China”, afirma o convidado.  Por fim, a eleição de Trump deve aumentar o processo de fragmentação do comércio e do investimento a nível global, o que não é favorável para o Brasil. “Por outro lado, esse tensionamento poderá criar oportunidades de comércio para o Brasil em várias áreas, inclusive, que o Brasil concorre com os EUA”, conclui.

 

Fonte: Outras Palavras/Correio da Cidadania/Jornal GGN

 

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