A Bíblia
manda a mulher ser submissa ao homem?
“Mulheres,
sede submissas aos vossos maridos, como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da
mulher, assim como Cristo é a cabeça da Igreja.”
“Esposas,
sede submissas a vossos maridos, como convém ao Senhor.”
“[…]
ensinem as jovens a amar seus maridos e filhos, a serem modestas, castas,
dedicadas aos afazeres domésticos, boas, submissas a seus maridos, a fim de não
ser blasfemada a palavra de Deus”.
Estas
três frases, que podem soar absurdas aos ouvidos da sociedade atual, são de
trechos de cartas escritas por Paulo Apóstolo às primeiras comunidades cristãs
e fazem parte da Bíblia.
📖 Teólogos e especialistas contemporâneos, contudo, explicam que
são estes claros exemplos de que, para ler os textos sagrados, é preciso
compreender o contexto em que tais materiais foram escritos — do contrário, o
fundamentalismo carrega as contaminações de um anacronismo.
Submissão,
segundo um dicionário de língua portuguesa, é a “condição em que se é obrigado
a obedecer”, “sujeição”, “subordinação”. Também pode ser entendida como
“disposição para obedecer, para aceitar uma situação de subordinação”.
“A
ideia de que a mulher deve ser submissa ao homem deve ser entendida em seu
contexto social e também literal do texto bíblico”, diz à BBC News Brasil a
teóloga e pedagoga Andreia Cristina de Morais, freira da Congregação das
Pequenas Missionárias de Maria Imaculada e professora na Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
🧔🏻♂️ “A maioria das sociedades no mundo antigo era patriarcal. Seus
registros geralmente refletem uma perspectiva masculina, ou seja, enfatizam os
interesses e as preocupações dos homens que os escreveram”, acrescenta ela.
“O
mundo bíblico não era diferente. Assim, os textos da Bíblia geralmente revelam
uma forma masculina e patriarcal de enxergar as situações.”
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Contexto histórico
Morais
aponta que as interpretações contemporâneas buscam “compreender as
representações das mulheres como uma imagem bíblica que simplesmente reflete as
suposições e expectativas culturais de uma antiga sociedade patriarcal”.
Por
isso, ela defende que essa ideia de mulher submissa ao homem seja sempre
interpretada dentro do contexto original.
A
ideia de que as mulheres precisam ser submissas aos maridos, embora citada três
vezes nas epístolas de Paulo e uma na de Pedro, não aparece nenhuma vez nos
evangelhos — os quatro textos que narram a vida e os ensinamentos de Jesus.
Com
isso em mente, a religiosa sugere um olhar mais atento para as motivações de
quem escreveu o texto.
Ela
recorda que Paulo não necessariamente estava criando uma norma de submissão,
mas sim que poderia estar refletindo o que já era praxe para criar uma analogia
com a relação entre Jesus Cristo e a Igreja que começava a se formar.
Esta
interpretação pode ser tomada, por exemplo, do trecho aos Efésios, que continua
com o apóstolo dizendo que, se Jesus é “a cabeça” e a Igreja “é o corpo”, os
maridos devem amar suas mulheres assim como Cristo amou a Igreja.
“Observando
esse contexto mais amplo, Paulo não deseja explicar como a mulher deve se
comportar em relação ao marido, mas usa essa analogia para explicar a relação
entre Cristo e a Igreja, uma relação de submissão, obediência e amor.”
A
teóloga Morais argumenta ainda que, buscando a referência do texto original em
grego, é possível entender que Paulo pretendia “destacar que a submissão é de
uns aos outros no temor do Senhor” e que, para passar essa mensagem, ele
“exemplifica com a mulher em relação ao marido”. Ou seja: essa relação de
submissão aparece como uma verdade dada, algo já próprio daquele contexto.
“A
ideia básica é sempre uma analogia com o marido, com a casa, com o ambiente
doméstico. O ideal de submissão vem desse modelo familiar”, contextualiza à BBC
News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“O
apóstolo Paulo faz uma analogia entre o papel da mulher dentro de casa, sendo
submissa à vontade do marido, e o papel da Igreja, sendo submissa à vontade de
Jesus”.
Ele
ressalta que é preciso compreender aquele contexto histórico. “A Bíblia nasce
num ambiente machista. Ou seja, ela reflete um tipo de comportamento que era
comum em toda a antiguidade, não só entre os judeus, mas entre outros povos da
antiguidade”, diz. “Na construção de sociedades patriarcais, as mulheres acabam
tendo papéis definidos no espaço do oikos, que em grego significa casa.”
Em
paralelo, diz o professor, o homem fica com o “espaço da ágora”, ou seja, da
praça, do público.
“De
maneira geral, o mundo antigo era um mundo patriarcal. As mulheres ficavam
relegadas ao ambiente doméstico e, portanto, quando grupos religiosos falam
sobre o papel da mulher, eles acabam refletindo essa realidade”, diz.
Ele
vê um Paulo muito enfático sobre a divisão de papéis entre homem e mulher na
carta a Timóteo. Ali, o apóstolo faz um paralelo: enquanto homens são incitados
a orarem “em toda parte, erguendo para o céu mãos santas”, as mulheres precisam
se resignar a “guardar silêncio, com toda submissão”.
“Não
permito à mulher que ensine, nem que domine o homem”, prossegue o texto
bíblico. “Mantenha-se, portanto, em silêncio.”
Autor
do livro Igrejas que Calam Mulheres, o pastor batista e teólogo Yago Martins
tem uma visão mais conservadora sobre esses trechos bíblicos. “Não há como
fugir, o Novo Testamento fala em submissão”, diz, em conversa com a BBC News
Brasil.
“Algumas
pessoas querem evitar o termo porque acham que é muito pesado. Mas é um termo
bíblico. A escritura estabelece que o papel da mulher no casamento é de
submissão”, afirma.
“Mas
a escritura diz que a submissão da mulher é a seu próprio marido e não a todo e
qualquer homem. O que se diz é a submissão da esposa ao seu próprio marido.”
Ele
adverte, contudo, que essa submissão não deve ser entendida “como apagamento,
como se fosse para impedir as mulheres de terem vozes, dignidade”.
“Todo
mundo é submisso a patrão, a autoridade pública. Dentro do contexto de famílias
cristãs, a gente entende que há uma ordem complementar em que dois iguais
possuem papéis diferentes”, diz Martins.
“[A
Bíblia] fala de homens tendo um papel de pastoreiro sobre o seu lar e mulheres
que seguem esse pastoreiro. Estabelece que é essa a ordem.”
• Gênesis
Professora
aposentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), a
teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti afirma à BBC News Brasil que a origem
dessa visão de sociedade presente nas cartas de Paulo remete ao Antigo
Testamento, mais especificamente na narrativa da criação do mundo presente no
livro do Gênesis.
Pela
história, Deus teria feito o homem e, depois, retirado uma de suas costelas
para, com este material, fazer a mulher. “Em outro texto [na primeira carta
enviada aos Coríntios], Paulo chega a dizer que ‘o homem não foi tirado da
mulher, mas a mulher foi tirada do homem. E o homem não foi criado para a
mulher, mas a mulher foi criada para o homem’”, conta a teóloga.
Na
justificativa de Paulo, isto é porque “Adão é que foi formado primeiro. Depois
Eva”. E enquanto o primeiro “não foi seduzido”, a mulher foi e “caiu na
transgressão”, conforme explica o teólogo Moraes.
“Nesta
passagem, Paulo revela de onde ele tirou essa ideia de submissão da mulher.
Para ele, a culpa de toda essa visão de uma sociedade machista e patriarcal foi
de Eva. Eva errou. Eva foi enganada. Eva caiu em transgressão e,
consequentemente, levou seu marido ao erro e trouxe o pecado para toda a
humanidade”, analisa ele.
“Por
isso, caberia à mulher não exercer a autoridade dentro de casa e o seu papel, a
sua missão, seria a maternidade”, complementa.
Para
Moraes, o problema é “quando esse tipo de passagem acaba sendo lida sem a
devida contextualização”. “Isso gera a perpetuação dessa visão machista na
sociedade”, adverte o professor.
Autora
de, entre outros livros, As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América
Latina, a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, freira agostiniana, lembra
ainda que o machismo foi erguido a partir de camadas de interpretação dos
textos bíblicos.
“Uma
observação geral importante é que não necessariamente o que está escrito na
Bíblia segue as interpretações misóginas que foram feitas ao longo dos tempos”,
afirma.
“Isto
nos permite uma abordagem diferente da Bíblia como um livro que foi considerado
sagrado, mas, originalmente, todos os livros que o compõem não eram
considerados sagrados, e sim crônicas, textos de sabedorias diversas.”
Do
Antigo Testamento, ela também busca no Gênesis um dos “vários textos que dão
essa interpretação de submissão”. Quando se dá a queda e expulsão do paraíso, o
trecho narra que Deus disse o seguinte à Eva: “Teu desejo te impelirá para o
teu homem, e este te dominará”.
“Usa-se
este e muitos outros textos para afirmar a natural submissão da mulher”,
acrescenta Gebara.
• Auxiliadora?
É
ainda do livro do Gênesis que vem outra questão muito presente quando se
recorre à Bíblia para a definição do que seriam os papéis de gênero.
Mais
precisamente, o segundo capítulo do livro, no trecho em que há a narração de
como teriam sido criados Adão e Eva. É quando a mulher é apresentada como uma
“auxiliadora”.
Este
é o termo que aparece na versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), por
exemplo: “Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei
uma auxiliadora que lhe seja idônea”.
Mas
há uma questão de tradução, esclarecem os especialistas.
Na
tradução Almeida Corrigida Fiel (ACF), o termo é “ajudadora idônea”. Na
Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), o mesmo trecho diz “uma ajuda que lhe seja
adequada”.
Muitos
fundamentalistas se apegam a essa passagem para reduzir o papel da mulher, como
se ela tivesse nascido para nunca protagonizar, para sempre ser uma auxiliar.
O
pastor Martins diz que “essa tradução não tem sido tão reproduzida mais”. Ele
cita uma atualização da Nova Versão Internacional (NVI). “Traduziu agora como
‘aliada semelhante’. ‘Auxiliadora’ virou ‘aliada’”, comenta.
Segundo
Martins, o verbo hebraico utilizado originalmente, ozer, “não possui sentido de
autoridade sobre”. “É um termo genérico que fala sobre aliado, que pode ser
superior, inferior ou igual”, explica.
“Entendeu-se
que auxiliadora, no contexto brasileiro, poderia ter um sentido de
inferioridade. Então o termo foi alterado para aliada. Uma outra tradução
possível seria aliada complementar”, diz.
“Depende
da interpretação”, afirma à BBC News Brasil a teóloga, filósofa e biblista
Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação das Filhas de São Paulo,
professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e membro da Associação
Brasileira de Pesquisa Bíblica.
“Na
criação, em Gênesis, Deus cria a mulher do lado do homem, a palavra hebraica é
tsela, para indicar que são iguais. O texto não diz uma auxiliar, mas sim uma
ajudante, no sentido de alguém que socorre”, explica ela. “Esse termo
geralmente ocorre para expressar uma ação divina”.
Ela
acrescenta que em outras passagens bíblicas, o mesmo termo é utilizado no
significado de “salvar”. “Nesse caso, é para salvar Adão de permanecer em si
mesmo”, interpreta.
Silvano
vai além. A frase seguinte diz que Deus “colocou a mulher diante do homem”.
Este “diante de”, em hebraico, é neged.
“Na
literatura rabínica, neged é interpretado nos dois sentidos, ou seja, a mulher
será uma ajuda para o homem, se ele a merecer. Ou será contra o homem, se ele
não a merecer. Deste modo, a mulher é vista como aquela que estabelece um
limite para o homem. Ou seja: ele não é o todo-poderoso. Existe um ser que
também pode mandar”, argumenta a biblista.
• Mulher na sociedade
Interpretações
religiosas à parte, pensadoras feministas entendem que essa questão de fundo
bíblico acabou consolidando, ao longo dos séculos, uma sociedade desigual — em
que as mulheres ficaram relegadas a papéis inferiores, na maior parte das
vezes. E, em alguns meios religiosos fundamentalistas, o princípio segue sendo
perpetuado.
“Quando
a visão religiosa é muito conservadora com relação aos papéis de gênero,
inevitavelmente existe o impacto negativo para a equidade entre homens e
mulheres nos âmbitos familiar, profissional e, consequentemente,
político-social”, diz à BBC News Brasil a economista Regina Madalozzo, autora
do livro Iguais e Diferentes - Uma Jornada Pela Economia Feminista.
“Ao
fomentar a diferença de importância no poder decisório, dentro de uma ideia da
necessidade de submissão das mulheres a seus maridos, por exemplo, acaba-se por
implicar em uma menor possibilidade de autonomia das mulheres sem quebrar os
preceitos religiosos que seguem”, acrescenta ela.
A
economista argumenta ainda que o desincentivo a que mulheres estudem ou
participem ativamente de questões políticas e profissionais, faz do “mecanismo
que fundamenta a diferença entre homens e mulheres” também o que “sustenta e
permite a discriminação entre os gêneros”.
Pesquisadora
na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a historiadora Giovanna
Trevelin avalia que a religião “a partir de uma perspectiva histórica” afeta,
com suas ideias, “diretamente as relações sociais”.
“Quando
olhamos para isso por uma perspectiva não só histórica, mas também feminista,
encontramos aspectos que supõem uma hierarquia bem definida, principalmente a
partir da ideia fundante de um deus que é homem e todo-poderoso, e de uma
mulher pecadora”, comenta ela, à BBC News Brasil.
“É
comum, na nossa história, encontrarmos uma perspectiva de sociedade que está
fundada nestes princípios de diferenças hierárquicas atribuídas aos papéis
sexuais. Temos, então, uma estrutura patriarcal determinante que é consequência
dos ideais cristãos”, explica a historiadora.
“Neste
tipo de sociedade, o homem é o centro: ele toma as decisões, conquista o espaço
público e tem seus desejos atendidos pelas mulheres à sua volta.”
Por
outro lado, compara Trevelin, “as mulheres ficam associadas a um papel
subalterno”.
“E
a gente precisa compreender que essa história nos acompanha estruturalmente, de
diferentes maneiras, até os dias atuais”, analisa.
“Os
valores sociais que nos são dados desde o nosso nascimento têm bases cristãs,
então nós, mulheres, somos guiadas por uma ideia de restrição de existência que
pretende nos excluir das interações ativas da sociedade, afinal os ideais
religiosos determinam nossa passividade como um valor positivo, principalmente
para perpetuar a existência dos homens enquanto agentes públicos, ativos na
sociedade e donos da narrativa histórica.”
Trevelin
considera importante que a leitura da Bíblia seja feita de forma crítica,
porque isso “pode propor outros caminhos”, que não apenas o de aceitação.
“Relacionar
a religião à histórica aspiração de poder e manutenção de privilégios aos
homens é um primeiro passo nessa direção de análise crítica e questionamentos
fundamentais”, diz ela.
Fonte:
BBC News Brasil
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