quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Como os soviéticos venceram a desertificação

As duas últimas décadas do século passado assistiram a emergência da agroecologia como movimento inicialmente antissistêmico, mas progressivamente assimilado como parte da nova agenda ambiental, enquanto a quantidade de estudos que a caracterizariam como disciplina aplicada – que incorporaria, sob nova perspectiva, dos conhecimentos da ciência do solo até as práticas agrícolas ancestrais – cresceria exponencialmente na primeira década deste século.

O conceito, no entanto, foi formulado em 1928, por um botânico e agrônomo russo, Vasily Mitrofanovich Benzin, que se dedicou ao estudo de cultivos tradicionais resistentes à seca, radicou-se nos Estados Unidos e aí divulgou sua ideia nas décadas seguintes. O primeiro e maior programa agroecológico já desenvolvido até hoje também foi soviético: o assim chamado Grande Plano para a Transformação da Natureza, iniciado em 1949, após a grande seca de 1946-47 e da crise alimentar que lhe seguiu.

Esse plano guarda uma grande diferença frente à agroecologia contemporânea, e que, provavelmente, explica a dimensão do seu impacto transformador, até hoje, nas antigas repúblicas soviéticas do continente europeu, até o sopé do Cáucaso, mesmo que, por pura mesquinharia política, ele não tenha sido levado a termo. Essa diferença pode ser resumida em duas palavras: planejamento e escala.

E essa diferença é de tal magnitude que a agroecologia contemporânea até mesmo evita mencioná-la (e menos ainda refletir sobre ela), atribuindo o pioneirismo do conhecimento agroecológico na sua fase formativa (décadas de 30 a 50 do século passado) a alemães e norte-americanos, ignorando por inteiro os esforços dos soviéticos.

As estepes soviéticas a oeste dos Urais ― da taiga, ao norte, até os mares Negro e Cáspio, ao sul ― historicamente concentram as melhores regiões de cultivo e criação não só do país como também do mundo, por conta de suas férteis terras negras, o chernozem. No entanto, sempre estiveram também à mercê dos ventos secos vindos do sudeste, ou seja, da Ásia central. Com sua exploração intensiva e a erosão superficial produzida seja pelo degelo incontido da neve seja pelas chuvas torrenciais da rasputitsa (a meia estação úmida), a camada superior desses solos torna-se arenosa e, com os ventos, desprende-se em gigantescas nuvens de poeira conhecidas como “tempestades negras”.

Na primavera do ano em que Vasily Benzin formulou o conceito de agroecologia, os cientistas soviéticos calcularam que, nas regiões do centro da Ucrânia, do Donbass, de Stalingrado e de Astrakhan os ventos levantaram mais de 15 milhões de toneladas de chernozem a uma altura de até 1 km, dilapidando uma camada de 10 a 15 cm de solo cultivável. O fenômeno, mais uma vez, produziu a quebra das colheitas entre 1929 e 1931, gerando mais uma das “grandes fomes” que assolaram a região, alastrando-se para o resto do país. O revisionismo nacionalista ucraniano hoje culpa exclusivamente “Moscou” pelo morticínio da fome. Não é essa, evidentemente, a história que a natureza conta.

Vasily Benzin não era o único a se dedicar ao estudo da relação entre agricultura e seca. Naquele mesmo ano de 1928, uma equipe de agrônomos soviéticos dirigida por Vasily Dokuchaev, Pavel Kostychev e Vasily Williams iniciou um experimento piloto de plantio de bosque na árida região de Astrakhan, entre o Volga e o Cáspio, onde o calor no verão chega a 53⁰ C.

Concluíram que, com os devidos cuidados de manejo, isso não apenas era possível como também que um só pinheiro de sete metros e meio de altura coletava 106 kg de água durante as geadas de inverno, retendo a erosão pela neve, reduzindo a evaporação do solo em 20% e produzindo no verão uma sombra onde a temperatura era 20% mais baixa. Tão ou mais importante que a proteção física aos ventos era a contenção da erosão e a manutenção da umidade do solo.

Na década que se seguiria, a atenção e esforços governamentais concentraram-se na industrialização, graças à qual a União Soviética sairia como a grande vencedora da Segunda Guerra Mundial – a um custo humano devastador; culpa, como bem se sabe, da estratégia de extermínio nazista. No entanto, durante vinte anos, mesmo durante a guerra, a Academia de Ciências da União Soviética, as universidades de Moscou e Leningrado, cinco institutos departamentais de pesquisa e dez instituições especiais de ensino florestal e agrícola em diversas cidades do país prosseguiram seus estudos ambientais, até que veio mais uma grande seca e suas “tempestades negras” em 1946, seguidas da grande fome de 1947, que se estima ter matado coisa de 770 mil pessoas das que haviam conseguido sobreviver à guerra.

Foi então que as pesquisas dos científicos soviéticos foram levadas ao Comitê Central do Partido Comunista e ao Conselho de Ministros, para dar origem, em 1948, ao “plano para plantação de proteção florestal, a introdução de rotações de culturas de gramíneas, a construção de lagoas e reservatórios para garantir altos rendimentos sustentáveis nas regiões de estepe aberta e de estepe boscosa da parte europeia da União Soviética”. Como era de hábito na política de culto à personalidade, o plano foi amplamente divulgado como o “Plano de Stalin para a Transformação da Natureza”. E isso acabaria pesando, logo adiante, na sua estigmatização.

Tudo era atribuído ao líder Yosef Stalin, e não deixa de ser curioso notar que o efeito colateral do “culto à personalidade” era uma despersonalização do próprio Stalin, que se transformava em recipiente simbólico para qualquer política estatal. De outra parte, ao proibir o culto à personalidade, a Revolução Cubana, por exemplo, tornaria a própria “Revolução” esse recipiente. São apostas altas, mas, ao mesmo tempo, declarações de responsabilidade histórica que as “democracias” ocidentais não só não estão acostumados a fazer como costumam estereotipar como “populistas”.

O Plano partia da plantação de oito grandes cinturões florestais ao longo das bacias hidrográficas dos rios Volga, Ural, Don e Dnieper, com larguras entre 60 e 300 m e extensões que variavam de 170 a 1.100 km, totalizando uma longitude de 5.320 km (aproximadamente a distância entre Maceió e Santiago do Chile) e uma área inicial de 112 mil hectares nidificados com carvalho, tília, freixo, choupo, bordo tártaro, acácia amarela e outras espécies arbóreas e arbustivas; além de preservar florestas já existentes e reconstituir as que tinham sido destruídas pela guerra.

Os cinturões florestais se expandiam ainda de forma reticulada, com linhas boscosas perpendiculares, de modo a criar microclimas favoráveis numa área de 120 milhões de hectares (30% maior que toda a região Sudeste do Brasil). Além disso, planejou-se a construção de mais de 44 mil lagoas com criações piscosas e reservatórios cercados por bosques ciliares, bem como a introdução de um sistema agrícola de rotação de culturas, em que se intercalavam cereais, leguminosas e gramíneas. Para isso, foram criados 120 viveiros florestais, 110 viveiros agrícolas, 570 estações de proteção florestal para o manejo dos bosques, acompanhadas do contingente técnico para fazê-lo, além de serem mobilizadas 10 fazendas coletivas para o cultivo de mudas. Chegou-se ao “preciosismo” de cultivarem-se groselhas e framboesas nos bosques para atrair os pássaros.

Os objetivos do plano, projetado para ser desenvolvido entre 1949 e 1965, eram tão ambiciosos quanto sua dimensão: a completa autossuficiência alimentar da União Soviética, seguida da expansão das exportações de cereais e carnes para todo o bloco socialista, além de uma significativa ampliação e diversificação da flora e da fauna do país.

Os resultados ambientais e econômicos logo se manifestariam. Já nos primeiros anos de implantação do plano alcançou-se a estabilização da biocenose das estepes. Pela primeira vez em 250 anos, o processo de redução da cobertura florestal em quase todas as zonas de estepe aberta e estepe boscosa foi interrompido. Nos campos protegidos por florestas, aumentou a saturação de oxigênio no solo, o escoamento superficial do degelo e da água da chuva foi contido, de modo que até 80% da umidade passou a ser absorvida pela terra que, mais compacta, não se deixava mais afetar pelos ventos.

Assim, não se tratava, a rigor, de tão apenas conter fisicamente os ventos da Ásia central, mas sobretudo de reter a água. Essa estratégia anteciparia em seis décadas aquilo que a russa Anastassia Makarieva, o russo Victor Gorshkov e o brasileiro Antonio Nobre demonstrariam a partir da Amazônia: a floresta tropical não é resultado passivo da umidade “natural”; são as árvores da floresta tropical que atraem, retêm e controlam a umidade, produzindo, de quebra, os “rios aéreos” que tornam possível a agricultura no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Sem as árvores na Amazônia, não seria apenas esta última região que se transformaria num deserto, mas também aquelas outras três regiões brasileiras. Árvores como sujeitos do clima?… Não é demais acrescentar que as conclusões desses três cientistas, anunciadas entre 2013 e 2014, não foram bem recebidas pelo mainstream da climatologia hegemônica.

Do ponto de vista econômico, a rotação de culturas implantada pelo Grande Plano para a Transformação da Naturezarestaurou a fertilidade do solo das estepes e propiciou uma melhor articulação entre agricultura e criação. Por conta de todos os impactos do Plano, em cinco anos, o rendimento das culturas de grãos (trigo, centeio e aveia) aumentou entre 25 e 30%; dos vegetais, entre 50 e 75%; e de gramíneas para o gado, em 100 a 200%. As fazendas coletivas começaram a produzir 80% mais carne e banha, com a produção de carne de porco aumentando em 100%. A produção de leite aumentou 65%; de ovos, em 240%; e de lã, em 50%.

Atribuir a esse grande programa agroecológico a designação de “transformação da natureza”, tal como originalmente feito, não deixa de ser uma maneira de render tributo à ancestral atitude cultural “prometeica” do Ocidente de reconhecimento dessa natureza como objeto de manipulação, atitude evidentemente reciclada e potencializada pela nossa modernidade e seus avatares da ciência e do progresso. Mas, na sua prática, os resultados daquela transformação desdobram outras implicações, que subvertem a mera posição de exterioridade (manipulável) atribuída à natureza.

Entre o final dos anos 80 e o começo dos anos 90 do século passado, o geógrafo William Denevan e o antropólogo William Balée demonstraram: (i) que uma porção considerável (senão a maior parte) da cobertura vegetal da Amazônia é, na realidade, resultado de milhares de anos de intervenção ameríndia; (ii) que a floresta antropogênica comporta maior biodiversidade; e (iii) que a imagem de uma natureza intocada na Amazônia pode não ser muito mais que um mito. Daí poderíamos nos perguntar: o que chamamos de “natureza” seria de fato uma exterioridade intangível? ou é irremediavelmente resultado de uma interação biótica?

Curiosamente, a transformação da natureza “de Stalin” diz a mesma coisa que os povos ameríndios, do Alasca à Terra do Fogo, há muito também nos dizem: tudo está articulado em uma grande conexão transformativa, ou, segundo a fórmula do velho chefe Seattle, na sua famosa carta de 1855 ao presidente dos Estados Unidos, “o que se fizer à terra, recairá sobre os filhos da terra”. Não é por casualidade que os andinos fazem suas q’uwas rituais à Pachamama: estamos todos em dívida permanente uns com os outros, entre todas as “coisas” e seres. Não se trata de mera “ecologia” (um saber especializado para uma coisa à parte); trata-se de visão de mundo.

Dívida implica reciprocidade; uma reciprocidade já agora ampliada, interespécies. Talvez a lição mais perene da agroecologia seja simplesmente a de que interação não é destruição, qual seja, a negação sumária da reciprocidade. Na prática, a “produção” não parte (e jamais partiu) de uma tabula rasa. Só para insistir numa velha trivialidade marxiana, ela não se assenta em ou se explica por produtos, mas, sim, (em e por) relações. Isso significa também que a natureza não é uma exterioridade “preservável”; ela será sempre e necessariamente “interacionável”. Mas, claro, isso de colocar a relação como precedente lógico é inimaginável para a (cosmo)lógica do individualismo possessivo e seu nominalismo das coisas-em-si (a começar pelo próprio “indivíduo” – depois vêm “identidades” e outras idiotices análogas).

O Grande Plano para a Transformação da Natureza não sobreviveu a Stalin; e tão apenas por levar seu nome, como se fosse ele, Yosef Stalin, que tivesse ido plantar pinheiros em Astrakhan em 1928. Com a morte do líder soviético em 1953 e a ascensão ao governo de Nikita Khrushchev, todo o plano, que cumprira menos de um terço da sua vigência programada, começou a ser restringido em nome da luta contra o culto à personalidade. Dois anos depois, foi definitivamente abandonado.

Morto o “faraó” Stalin, seus templos deviam ser destruídos, e os cartuchos de hieróglifos com seu nome, apagados. A nova ciência da União Soviética deveria estabelecer teorias renovadas sobre a agricultura, baseadas no uso intensivo de fertilizantes, e sobre a origem irremediavelmente não florestal do chernozem, para que nunca mais ninguém pensasse em florestas por ali.

As estações de proteção florestal foram desativadas e as instituições ministeriais dedicadas a assuntos florestais foram sistematicamente dispersadas. Como consequência, o manejo das florestas foi abandonado, como também foram abandonados vários milhares de lagoas e reservatórios para piscicultura, que acabaram cobertos por lentilha-d’água. Os cinturões florestais começaram a ser intensamente desmatados para a obtenção de madeira e construção de casas de campo. Em 1963, por conta dos processos de erosão do solo e novas tempestades negras, mais uma crise alimentar eclodiu no país, e a União Soviética, que ambicionava a plena autonomia alimentar, precisou vender 600 toneladas de ouro (um terço das suas reservas) para importar grãos.

Ainda assim, muitos bosques sobreviveram. São hoje precariamente cuidados pelos agricultores locais, que não têm conhecimento de manejo florestal e a quem o Estado pretende transferir a responsabilidade pela sua recuperação, por reconhecê-los como “improdutivos”. Nas suas proximidades, a espessura do chernozem aumentou de 40 para 70 cm.

Eles ainda fornecem abrigo para lebres e esquilos, cogumelos e javalis, passarinhos, perdizes e faisões. Em anos de seca, o rendimento nos campos por eles protegidos é de duas a três vezes maior do que em áreas desprotegidas. A ideia “revolucionária” de biocorredores, hoje aplicada em vários continentes, é apenas uma pálida cópia do que os soviéticos fizeram 70 anos atrás.

Com a Perestroika, o plantio de espécies arbóreas, que havia sido restringido a 30 mil hectares por ano, caiu para 300 hectares. Hoje, o nível de abastecimento de água na agricultura russa é três vezes e meia menor frente ao que era em meados dos anos 80. Em 2010 a porção europeia da Rússia se viu coberta por grandes incêndios nas áreas vegetais.

A outra história que o Grande Plano para a Transformação da Natureza nos conta é que a magnitude do seu impacto só foi possível porque aliou conhecimento, planejamento sistêmico e vontade soberana da nação para implementá-lo. E talvez seja exatamente aqui, semioticamente falando, onde o epíteto “de Stalin” seja passível de reabilitação. Afinal, alguma razão deve haver para que o “faraó” Stalin (pessoa ritualizada como poder de Estado, e não simplesmente “indivíduo”, como gosta a lógica liberal) seja hoje, 33 anos depois da queda da União Soviética, a figura histórica mais admirada pelos russos. Isso pode não ser nem má consciência nem autoengano. Pode ser… visão de mundo.

O termo em que aquela vontade soberana se realiza (e, formalmente, não importa tanto como ela seja constituída) é precisamente o que, no início deste texto, chamamos de “escala”, o fantasma que, no fim das contas, assombrou o contraesforço de Khrushchev. Afinal, uma parte dos cinturões florestais sobreviveu.

Em lugar de microesforços individuais, locais e empresariais – que confortam as consciências politicamente corretas e embalam os sonhos agroecológicos atuais –, dar conta do impacto transformativo e ao menos minimamente regenerador demandado para todo um bioma não exigiria pensar a partir de um Todo ― ou seja, a partir da nação (algo que o músico Dimitri Shostakovich e o letrista Yevgeny Dolmatovsky expressaram discursivamente no verso “Vamos vestir a Pátria com florestas!” ―, para que esse impacto seja minimamente eficaz?

Aqui entra a dimensão pública. E aqui entra um problema que a agroecologia contemporânea não parece muito disposta a considerar. No entanto, quando metade de um país queima com incêndios, talvez essa seja uma questão que mereça alguma atenção. O resto não é mais que a fatalidade da sorte e a negação da política (por mais bonitinha e “alternativa” que seja pintada). E mesmo que venha uma grande fome, uma grande seca ou uma grande enchente, tudo já parecerá tarde demais. Ao menos agora, sob o signo da crise climática, o fatalismo tem um bode expiatório para garantir o business as usual.

 

Fonte: Por Ricardo Cavalcanti-Schiel, em A Terra é Redonda

 

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