A minoria que polui o planeta e a dívida de
cuidados
“A ‘pegada ecológica’ é, na realidade, uma ‘pegada civilizatória’ (ou pegada
patriarcal, ou de cuidado), denunciando a falsa autonomia do sistema econômico,
ou seja, a falsa autonomia do trabalho ‘produtivo’ que não poderia ser
desenvolvido se as atividades de cuidados restauradores não existissem
simultaneamente. Ou seja, existe uma dependência real da atividade econômica
dos cuidados prestados principalmente pelas mulheres”. A reflexão é de Giulia Costanzo Talarico, socióloga e ativista ecofeminista.
<><> Eis a
entrevista:
Neste verão pudemos
ouvir muitos números “recordes”, não apenas nos Jogos Olímpicos, mas
também sobre as temperaturas, infelizmente, visto que o aquecimento global
atingiu mais uma vez um marco desastroso. No dia 22 de julho, o Serviço
Europeu de Mudanças Climáticas Copernicus registrou uma temperatura média diária global de 17,16 °C, superando o recorde anterior de 17,08 °C,
registrado no dia 6 de julho de 2023.
Se isto não fosse
suficientemente preocupante, a organização internacional Global Footprint
Network relata que os países atingem o Dia da Sobrecarga da Terra mais cedo todos os anos; em 2024, esta data foi 1º de
agosto. Este é um dado que começou a ser calculado em 1970 e serve para alertar
sobre a insustentabilidade do ritmo de consumo atual, pois é a data em que
foram consumidos todos os recursos que o planeta pode gerar num ano. Com outras
palavras, este ano conseguimos esgotar os recursos planetários em sete meses.
Porém, esta é uma média entre países. Na realidade, a data varia de país para
país e é calculada a cada ano dividindo a biocapacidade do planeta pela pegada
ecológica da humanidade, e posteriormente multiplicada pelos 365 dias do ano.
A WWF explica
que, do ponto de vista econômico, seria como “esgotar o saldo disponível e
entrar no vermelho”. Em média, a nível mundial, seria necessário 1,75 planeta
para satisfazer a procura de recursos naturais. Vale ressaltar as diferenças mencionadas
acima entre os países, entre as suas economias. Não é por acaso que países como
os Estados Unidos requerem 5 vezes mais recursos do que o seu território é
capaz de gerar num ano; a Espanha consome
mais 2,5, enquanto outros países não chegam a “gastar” o seu limite anual.
Um estudo
da Oxfam Intermón publicado no final de 2023 revela que em 2019
“o 1% mais rico da população mundial foi responsável por 16% das emissões
globais de carbono, a mesma quantidade dos 66% mais pobres (5 bilhões de
pessoas)”.
Percentagem de
emissões de CO2 em 2019. Fonte: Oxfam Intermón, 2023.
Os dados são
esmagadores e, além disso, os 10% mais ricos localizados em países de rendimentos altos são
responsáveis por 60% das emissões. Além disso, tanto os super-ricos que
pertencem ao 1%, como os ricos do decil superior, têm uma influência
significativa em termos políticos, uma vez que um terço das principais empresas
de comunicação que produzem conteúdos está nas mãos de bilionários privados,
como no caso de Rupert Murdoch, cuja família controla a Fox News.
Exemplo de emissões de
dois bilionários. Fonte: Oxfam Intermón, 2023.
As catástrofes
climáticas estão aumentando e está claro que os responsáveis diretos são os
bilionários e, em geral, os países ricos. Com outras palavras, os principais
responsáveis pelas mudanças climáticas não sofrem as suas consequências diretas
e encorajam decisões que não apoiam políticas para deter a crise climática ou
as desigualdades. Pelo contrário, os países menos responsáveis pelo aquecimento
global não apenas sofrem as piores consequências, como também têm menos
capacidade de recuperação. Este fenômeno, que afeta principalmente
o Sul global, implica também um maior impacto sobre as mulheres, uma
vez que as pessoas mais vulneráveis são aquelas que vivem na pobreza, e segundo
dados da ONU, 70% das pessoas pobres no mundo são representadas por
mulheres.
Neste contexto, é
evidente que falar em “pegada ecológica” é redutor e insuficiente, sendo um
indicador ecológico que representa a situação de insustentabilidade calculada
como “a área de território produtivo ou ecossistema aquático necessário para
produzir os recursos utilizados e para assimilar os resíduos produzidos por uma
população definida com um padrão de vida onde quer que esta área esteja
localizada”. Desta forma, embora o conceito faça alusão à pilhagem de recursos
levada a cabo pelos países ricos, ainda não proporciona uma visão mais
exaustiva da situação, ou seja, não mostra a forma parasitária de exploração e
não reconhece a indispensabilidade das necessidades humanas apoiadas por
cuidados não remunerados.
Neste
sentido, Anna Bosch, Cristina Carrasco e Elena
Grau apontam [no livro El trabajo de cuidados] que se trata na
realidade de uma “pegada civilizatória” (ou pegada patriarcal, ou de cuidado),
denunciando a falsa autonomia do sistema econômico, ou seja, a falsa autonomia
do trabalho “produtivo” que não poderia ser desenvolvido se as atividades de cuidados
restauradores não existissem simultaneamente. Ou seja, existe uma dependência
real da atividade econômica dos cuidados prestados principalmente pelas mulheres.
O debate sobre a
sustentabilidade surge a partir da definição de “desenvolvimento sustentável” do relatório Brundtland (1987), onde se afirma que: “Está nas mãos da humanidade
tornar o desenvolvimento sustentável, ou seja, garantir que ele atenda às
necessidades do mundo presente sem comprometer a capacidade das gerações
futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”. O conceito é ambíguo,
na medida em que indica limites, mas não absolutos; ou seja, aceita a
existência de limites, mas mantendo o crescimento econômico. Em 1992, na Cúpula do Rio, a participação de grupos comunitários, movimentos
ambientalistas, feministas, ONGs para agir contra a degradação ambiental,
promoveu a adoção de um novo conceito de sustentabilidade que incluísse a
integração de três tipos de sustentabilidade: ecológica, social e
econômica.
Esta abordagem à
sustentabilidade “integral” implicou uma crítica da epistemologia hegemônica;
no entanto, está igualmente longe de alcançar uma perspectiva verdadeiramente
alternativa ou radical. Os aspectos de gênero estão ausentes e continua a
apresentar conceitos que estão a serviço da economia capitalista e com uma
visão instrumental da natureza, que continua a ser apresentada como um conceito
colonial e inscrita num projeto de conquista e exploração que continua a
reproduzir uma racionalidade que impulsiona as consequências mais terríveis da
globalização neoliberal: um mundo onde uma minoria específica representada por
homens ocidentais brancos detém a riqueza e é responsável pela poluição tanto
quanto os dois terços mais pobres (ou melhor, empobrecidos) da humanidade.
É por isso que é
necessário ter um olhar realmente abrangente que denuncie a violência sistêmica
que se materializa em dívidas ecológicas não neutras, ou seja: a dívida
ecológica com o Sul global em termos de extração de recursos naturais
como meios de produção e também meios de vida dos povos originários; a dívida
social pela mais-valia extraída dos corpos e das mentes dos trabalhadores do
sistema capitalista; e a dívida “encarnada” de cuidados, isto é, da reprodução
não remunerada que fornece valores de uso e regenera as condições de produção,
incluindo a futura força de trabalho do capitalismo.
Em particular, como
explica Cristina Carrasco, a dívida de cuidados ou “dívida patriarcal” representa a
imensa quantidade de trabalho de cuidados e de energias emocionais que as
mulheres realizaram ao longo dos últimos séculos para manter a vida, e que os
homens realizaram em menor proporção, sendo mais beneficiários do que
contribuintes. É possível promover a sustentabilidade ecológica, mas sem levar
em conta o modo de reprodução social será à custa de alguém. Se o preço
da sustentabilidade ecológica for a dominação patriarcal e colonial, então não há
sustentabilidade. Nas análises ecológicas, bem como nas econômicas, ortodoxas,
os cuidados não são levados em consideração; o resultado é uma análise
incompleta com um claro preconceito de gênero que não visibiliza o elemento que
realmente sustenta o sistema, ou seja, os cuidados não remunerados prestados
pelas mulheres.
O trabalho dos cuidados é fundamental para a sustentabilidade da vida e tem sido
historicamente desvalorizado, da mesma forma que o trabalho de sustentação dos
territórios e a manutenção dos ciclos naturais. Visibilizar o papel central do
cuidado é essencial, pois é um elemento que não somente sustenta o ecossistema
e o mercado, mas tem sido tradicionalmente desempenhado pelas mulheres.
Os cuidados são uma necessidade básica e devem ser de responsabilidade
coletiva, razão pela qual não pode haver sustentabilidade, nem justiça social,
territorial ou climática, sem sustentabilidade da vida.
A crise do coronavírus
deixou claro, mais uma vez, não apenas que os interesses do capitalismo global
são necropolíticos e que o “vírus é o sistema”, mas também
que o cuidado (na forma explorada de uma pegada civilizatória) garante a
continuidade da reprodução social, mesmo em situações extremas. A ausência ou
incapacidade das administrações locais ou estatais em responder às necessidades
coletivas aumenta a situação de vulnerabilidade, especialmente das pessoas em
risco de pobreza e exclusão social, entrando num círculo vicioso, dado que a
vulnerabilidade implica injustiça social devido ao aumento da insegurança
ligada a diversas violências estruturais (econômica, institucional, de gênero,
entre outras). O cuidado constitui
a forma de sobrevivência coletiva, por isso é essencial uma reorganização que
promova a corresponsabilidade ativa, capaz de romper com os mandatos
patriarcais e coloniais.
¨ Indígenas devem liderar o manejo de incêndios florestais,
sugerem cientistas
A crescente
intensidade e frequência dos incêndios florestais no Brasil –
especialmente na última quinzena – e no mundo, consequência de atos
criminosos, das mudanças climáticas e da má gestão ambiental, têm evidenciado a
necessidade de abordagens inovadoras para mitigar seus impactos devastadores.
Nesse contexto, especialistas sugerem que povos que vivem modos de vida
indígenas são os mais bem preparadas para liderar o manejo sustentável do fogo.
De acordo com
cientistas florestais e profissionais de combate a incêndios, em artigo publicado na revista Nature, duas fontes de conhecimento que são frequentemente
negligenciadas são essenciais para o manejo do fogo: a administração do fogo
liderada por indígenas e os avanços tecnológicos na aquisição de dados.
Segundo os
pesquisadores, a supressão total do fogo, como forma de gerenciar ecossistemas,
é ineficaz. O exemplo do Parque Nacional Jasper, no Canadá, atingido por um dos
maiores incêndios florestais de sua história em julho deste ano, evidencia a
fragilidade de políticas tradicionais que visam apenas extinguir o fogo.
Cientistas florestais argumentam que, em vez de suprimir o fogo, é necessário
integrá-lo de forma controlada e planejada, em um processo chamado queima
controlada. Nessa abordagem, a inclusão do conhecimento ancestral indígena,
especialmente no contexto brasileiro, pode ser uma ferramenta importante.
Os povos indígenas no
Brasil, assim como em outras partes do mundo, há séculos utilizam o fogo como
ferramenta de manejo florestal, de forma equilibrada e em harmonia com a
natureza. Essas práticas culturais de queima são usadas para diversos fins,
como limpar áreas para plantio, estimular a germinação de certas espécies
vegetais e prevenir incêndios de grande escala por meio da redução de material
combustível no sub-bosque. A queima prescrita também promove a biodiversidade,
uma vez que muitas espécies vegetais dependem do calor do fogo para liberar
suas sementes e florescer.
No Brasil, a
devastação provocada por incêndios florestais tem afetado drasticamente a
biodiversidade, além de ameaçar comunidades indígenas que vivem nessas regiões.
Em muitos casos, essas comunidades são as primeiras a enfrentar os impactos dos
incêndios, com a destruição de seus territórios e mudanças em seus modos de
vida. Ao mesmo tempo, são elas que possuem o conhecimento necessário para
controlar e prevenir esses eventos.
O manejo do fogo,
quando liderado por indígenas, é capaz de aliar práticas tradicionais à
sustentabilidade, respeitando o ciclo natural dos ecossistemas e as
necessidades das populações locais. Essas práticas, no entanto, não devem ser
apenas apropriadas pelas políticas públicas sem a devida participação ativa das
comunidades indígenas. É essencial que esses povos estejam à frente do processo
decisório e que suas práticas sejam incorporadas de maneira respeitosa e
contextualizada.
Apesar das evidências
de que o manejo indígena do fogo pode ser uma solução eficaz para reduzir o
risco de incêndios descontrolados, há resistências. Críticos apontam os riscos
de “fugas” de incêndios controlados que possam atingir áreas além do previsto,
principalmente em um contexto de mudanças climáticas que tornam o clima mais
quente e seco. Além disso, questões sobre quem deve liderar e supervisionar
essas práticas ainda são fonte de debate.
Contudo, especialistas
defendem que os benefícios do manejo proativo do fogo superam os riscos,
especialmente quando combinado com tecnologias modernas, como drones e
satélites. O uso dessas ferramentas tecnológicas permite monitorar áreas de
risco e aumentar a segurança nas operações de queima controlada.
Para que o Brasil
avance na integração das práticas indígenas de manejo do fogo, é necessário
fortalecer a capacidade dessas comunidades de participar ativamente na gestão
florestal. Isso requer não apenas maior comunicação entre os profissionais
indígenas e as agências de combate a incêndios, mas também investimentos
contínuos em treinamento conjunto e cooperação.
A liderança indígena
no manejo do fogo é uma oportunidade de reverter os danos provocados por
séculos de políticas florestais baseadas na supressão total dos incêndios. Ao
reconhecer o valor do conhecimento ancestral e combiná-lo com tecnologias
modernas, o Brasil pode reduzir os impactos dos incêndios florestais e
fortalecer a resiliência de seus ecossistemas e comunidades locais.
A gestão dos incêndios
florestais no Brasil precisa de uma abordagem holística e inclusiva, que
reconheça a importância das práticas indígenas de manejo do fogo. O
conhecimento ancestral dessas comunidades, combinado com o uso de tecnologias
avançadas, pode ser a chave para proteger as florestas e seus habitantes,
garantindo a preservação de ecossistemas valiosos e o sustento cultural e
ecológico das populações indígenas.
Fonte: El
Salto - tradução do Cepat,
para IHU/eCycle
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