Mangue Futebol Clube: três jogadas
esportivas nos trinta anos do manguebeat
O estrondo do
manguebeat fez com que gravadoras, emissoras de rádio e canais de televisão
torcessem o pescoço para tentar entender. Tortos de tanto olhar para os mesmos
cantos, empresários e produtores do sudeste demoraram a assimilar os ritmos
amalgamados pelo movimento musical em Pernambuco durante os anos 1990. Não dava
tempo, dos primeiros gestos das bandas à chegada dos discos às lojas, tudo
mudou. Otto passou pelos dois principais emblemas da cena – e ainda se lançou
em carreira solo.
Fez parte da parede
percussiva da primeira fase da Nação Zumbi; esteve na tensa gravação do álbum
Samba Esquema Noise com o Mundo Livre S/A, lançado em 1994. A virada para a
segunda metade da década foi traumática com a morte do cantor, rebatizado de
Chico Ciência por Ariano Suassuna, e a falência de selos musicais alternativos.
Depois dessa inflexão, Otto foi irredutível e se firmou como uma das principais
referências do manguebeat com Samba pra Burro ainda em 1998.
O primeiro disco como
cantor era estranhamente eletrônico até para a cena pernambucana. O desconforto
era audível, quase tátil – é possível que Otto seja o mais imprevisível dos
artistas daquela paisagem. A ponto de ter investido em drum’n bass enquanto os
colegas estavam com guitarras a tiracolo. De testar os limites que separam
regionalismo e brasilidade ao convidar Bebel Gilberto para a canção de
abertura. Mas nenhum desses acontecimentos é o mais insólito da sua biografia.
Talvez tenha sido
mesmo o período como jogador do Santa Cruz Futebol Clube que mais chame
atenção. Antes de perambular pelos seminais conjuntos dos anos 1990, Otto
esteve entre os potenciais futuros craques do futebol profissional do estado. A
reação acalorada da multidão somente viria com a música: antes que fosse
possível descobrir se a carreira seria bem-sucedida, os gramados foram
abandonados. Quando se aprofundou na percussãol, rapidamente foi inserido na
euforia do mangue. Tomou partido na lama.
Da Lama ao Caos,
lançado em 1994 por Chico Science & Nação Zumbi, é o marco inaugural da
agitação. Se o vocalista foi o responsável pela alquimia do manguebeat enquanto
a banda consumava a magia sonora, a Fred Zero Quatro é conferida a função de
ideólogo do movimento. É da sua autoria o manifesto “Caranguejos com Cérebros”,
texto que se abrigou no encarte do disco que completa três décadas. Antes
jornalista, o músico lidera até hoje o Mundo Livre S/A., conjunto que ajudou a
redefinir o pop brasileiro.
A canção-síntese dos
antecedentes do movimento é “Pastilhas Coloridas”, que tem no frontman da banda
um de seus autores: é descrito o desespero dos garotos na rua com o desemprego
em massa, com a repressão policial e com as transformações urbanas que desfiguravam
cidades e tradições país afora. A faixa do disco Guentando a Ôia, de 1996,
registra o que uma geração de adolescentes fez para oferecer uma resposta à
altura da violência que se impunha à realidade local.
Em turnê com o Mundo
Livre S/A em 2024 – que passou inclusive pelo Circo Voador no Rio de Janeiro –,
Fred Zero Quatro ainda canta a solidão do único prédio da rua antes da expansão
imobiliária e da verticalização das cidades. E a mudança se deu em detrimento
da opção de lazer mais barata para as crianças na época. Alternativa que,
embora não exigisse investimento, dava dimensão coletiva àqueles garotos
espalhados pelos quarteirões. O futebol: especificamente, o das peladas sem
maiores refinamentos.
Os terrenos baldios,
convertidos em campinhos, promoveram a diversão até que a especulação avançasse
sobre os terrenos. Cidades, progressivamente, envidraçadas: a jornada das
peladas aos shopping centers não é linear, mas deixa a impressão de que a ofensiva
contra os gramados de rua foi um gesto definitivo. Além da pauperização das
classes médias e da agressividade dos centros urbanos, uma geração se via sem
sua única expressão de lazer. Restava, então, a música.
Xico Sá é uma espécie
de embaixador do manguebeat. A princípio pela localização: nos anos 1990, o
jornalista trabalhava na Folha de S. Paulo – principal veículo impresso de
comunicação do país. Na capital paulista era vizinho dos epicentros da
cobertura musical. A MTV Brasil e a revista Bizz, ainda que não somassem as
maiores audiências possíveis àquela altura, estavam na ponta de lança da
crítica. A proximidade fazia com que o papel desempenhado oscilasse entre o de
porta-voz e o de despachante do movimento.
Foi colega de Fred
Zero Quatro na faculdade. A despeito de ser cearense, o jornalista se formou em
Pernambuco, esbarrou com artistas entre as aulas e estabeleceu relações
pessoais com personagens que fundamentaram a cena da última década do século
XX. Do líder do Mundo Livre S/A, por exemplo, o antigo repórter da Folha foi
companheiro na imprensa independente. Com Chico Science se encontrava na noite
do Recife, antes ainda da consolidação da Nação Zumbi – os óculos de Xico Sá
refletem cultura popular.
Afinal, era para essa
direção que o olhar do cronista e escritor esteve voltado. Isso o credenciava
para ser fiador do manguebeat em São Paulo.
E não apenas – a vocação para perceber o que remanesce de tradição nos hábitos
populares explica a inclinação para o futebol. Não seria um exagero colocá-lo
entre os intérpretes do esporte com mais verve no Brasil, em prosa ou palavra
falada. Porque é também pelas lentes futebolísticas que, muitas vezes, Xico Sá
encara a realidade política no Brasil.
O trato inigualável
com a palavra, que já apareceu em livros especificamente sobre o futebol,
ressurge no recém-lançado Cão Mijando no Caos: o mote do trabalho é passar a
limpo o transe dos últimos anos da política por meio de crônicas borradas pelas
baforadas dos acontecimentos. Quando, em um dos capítulos do livro, o autor
pede a bênção de Maradona e Sócrates, isso fica evidente. E igualmente sonoro –
os dois brilhantes e politizados jogadores haviam se aventurado como músicos
antes das mortes prematuras.
Fonte: Por Helcio
Herbert Neto, no Le Monde
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