José Luiz Fiori: ‘O caminho da Índia’
A civilização indiana
é tão ou mais antiga que a chinesa, embora seu desenvolvimento tenha sido mais
descontínuo e menos homogêneo. Sua formação se deu ao longo do Rio Indo, e o
processo de “sedentarização” de suas populações começou por volta do ano 5000
a.C. Seu território, entretanto, foi objeto de inúmeras invasões e ocupações
por parte de povos “estrangeiros”.
Por volta de 1500
a.C., a região foi ocupada por povos indo-europeus provenientes do Mar Negro e
do Mar Cáspio, quando se inicia o Período Védico. No ano de 520 a.C., seu
território foi invadido por Dario, o Rei da Pérsia, e permaneceu 200 anos sob o
domínio persa, até a invasão por Alexandre, o Grande, que trouxe consigo as
marcas da civilização grega.
Todas essas sucessivas
invasões, que prosseguiram nos séculos seguintes, só conseguiram se instalar de
forma periférica, como entrepostos militares ou mercantis de uma produção local
diversificada e sofisticada que fora obra milenar de uma população que era
cultural e linguisticamente heterogênea, mas que seguia majoritariamente o
hinduísmo, a mais antiga de todas as religiões.
Até o momento em que
se iniciaram as invasões e conquistas muçulmanas, no século VII, provenientes
do Sistão, atual Irã, e que deram origem ao Império Mogol ou Mogul, fundado por
Babur, descendente de Gengis Kan, e que chegou a dominar quase todo o subcontinente
indiano entre 1526 e 1857. Essa estrutura imperial durou até 1720, pouco depois
da morte do último grande imperador mogol, Aurangzeb.
Pouco depois, em 1763,
a Companhia Inglesa das Índias Orientais impôs seu domínio mercantil e
tributário sobre a região de Bengala e, a partir daí, progressivamente, sobre
todo o território indiano, até que as forças do Império Britânico derrotaram a
rebelião indiana de 1857-58, submetendo a Índia ao governo imperial da Coroa
Britânica, de 1858 até sua independência, em 15 de agosto de 1948.
Em 1885, foi fundado o
Congresso Nacional Indiano, primeira semente revolucionária de um movimento que
adquiriu plena maturidade a partir de 1930, quando Mahatma Gandhi lançou seu
Movimento da Desobediência Civil, que culminaria com a independência indiana e
a divisão dos territórios britânicos entre Paquistão e Índia, e posteriormente,
Bangladesh.
Depois de sua
independência, a Índia adotou uma política externa anticolonialista e sofreu o
efeito imediato da coincidência de sua data de independência com a data do
início da Guerra Fria, logo antes da vitória da Revolução Comunista na China.
Esses fatos por si só colocaram o território indiano no coração de um espaço
geopolítico que teve grande importância durante toda a segunda metade do século
XX, durante a Guerra do Vietnã, e após a queda do Xá do Irã e a invasão
soviética do Afeganistão, ocorridas em 1979.
Nesse período, a Índia
enfrentou várias guerras de fronteira, três com o Paquistão (1948, 1965 e 1971)
e uma com a China (1962), manteve uma disputa aberta com Bangladesh (1979), em
relação à nacionalidade de uma ilha na Baía de Bengala, e desde então mantém um
litígio permanente com o Paquistão em torno a suas fronteiras na região de
Jammu e Caxemira.
Constrangida pela
forma como se deu a luta por sua independência, a Índia adotou uma posição de
liderança inconteste e ativa dentro do Movimento dos Países Não-Alinhados,
nascido da Conferência de Bandung, em 1955, apoiando um “neutralismo ativo” e
uma defesa intransigente da soberania e igualdade de todas as nações contra
todo tipo de pressão ou ingerência das grandes potências nos assuntos internos
dos demais Estados. Estabeleceu um relacionamento econômico, político e militar
muito estreito com a antiga URSS, que se manteve depois com a Rússia.
A Índia não apresenta,
à primeira vista, as características de uma potência expansiva, e se comporta,
estrategicamente, como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e
garantir sua segurança numa região de alta instabilidade. Assim mesmo, desenvolve
e controla tecnologia militar de ponta, como no caso de seu sofisticado sistema
balístico e arsenal atômico; possui, ainda, um dos exércitos mais bem treinados
de toda a Ásia.
Mas foi só depois da
sua derrota militar para a China, em 1962, e da primeira explosão nuclear
chinesa, em 1964, logo antes da guerra com o Paquistão, em 1965, que a Índia
abandonou o “idealismo prático” da política externa de Nehru e adotou a Realpolitik do
primeiro-ministro Bahadur Shastri, que autorizou o início do programa nuclear,
na década de 1960.
Foi quando a Índia
atingiu sua maturidade, com as explosões nucleares de 1998 e o sucesso do
míssil balístico Agni II, em 1999. Naquele momento, ela se tornou uma potência
atômica e definiu sua nova estratégia de inserção regional e internacional, com
base na afirmação simultânea de seu novo poder militar.
Por outro lado, desde
sua independência, a Índia vem adotando uma estratégia econômica de corte
fortemente nacionalista, e hoje é o país com maior crescimento econômico dentro
do sistema mundial. Apesar do viés cada vez mais orientado na direção asiática,
a política externa indiana mantém uma equidistância pragmática com relação a
Estados Unidos, Europa e China, e em algum momento esteve próxima de se
transformar em um aliado atômico dos americanos. Mais recentemente, voltou a
distanciar-se dos Estados Unidos e de seu projeto de construção de um cerco
nuclear da China, com a possibilidade de extensão da área de atuação da OTAN
até a região Indo-Pacífica.
Muito recentemente, já
em meados de 2024, houve um movimento de reaproximação entre Índia e China, as
nações mais populosas do planeta, que somam juntas três bilhões de habitantes e
já são a primeira e a terceira maiores economias do mundo, respectivamente, por
paridade de poder de compra. Esta reaproximação sinaliza o desejo de resolver
suas disputas de fronteira na Caxemira e em Arunachal Pradesh, que remontam a
décadas e já provocaram enfrentamentos armados com a China, com quem mantém uma
fronteira comum de 3.379 km de extensão.
O mesmo tem acontecido
com relação ao Paquistão e, em ambos os casos, o novo governo indiano parece
decidido a tranquilizar e estabilizar sua zona de influência na região sul da
Ásia. Mais do que isso, a Índia tem resistido a participar do “Diálogo de Segurança
Quadrilateral” promovido pelos Estados Unidos, o QUAD, que também envolve a
Austrália e o Japão; mantém estreita relação comercial e estratégica com a
Rússia; fez parte da criação conjunta do BRICS; e é membro da Organização de
Cooperação de Shangai.
Tudo indica que a
Índia está se dispondo a resolver suas pendências regionais para poder assumir
uma posição assertiva e global no cenário internacional, acorde com suas novas
dimensões demográficas e econômicas, e com a previsão de que, até 2050, será o
segundo país mais rico do mundo.
Somando todos esses
fatos e fatores, parece claro que a Índia já tomou uma posição de longo prazo,
ao lado de seus vizinhos asiáticos, contrários ao projeto QUAD, e mais ainda, à
ideia de criação de uma OTAN na região do Indo-Pacífico. E ainda, a Índia vem
sinalizando seu desejo de afastar-se progressivamente do sistema
monetário-financeiro apoiado no dólar, sobretudo depois do congelamento das
reservas russas depositadas nos bancos americanos e europeus. Uma posição que
vem angariando número cada vez maior de apoiadores dentro e fora da Ásia,
sobretudo na região que se alimenta do efeito expansivo das economias chinesa e
indiana.
Esse verdadeiro turning
point da política externa indiana explica, em parte, a iniciativa
absolutamente inusitada e o movimento surpreendente do primeiro-ministro
Narendra, que depois de ir a Moscou no mês de julho, visitou, em agosto, a
Ucrânia e a Polônia, propondo-se a intermediar uma negociação de paz fora da
Ásia, em plena Europa, envolvendo, como uma de suas partes fundamentais, a
Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial.
Assim, a Índia vai
assumindo uma posição dentro do Sul Global análoga a que ocupou na Conferencia
de Bandung de 1955, e na formação do Movimento dos Países Não Alinhados que
durante o período da Guerra Fria se opôs ao que consideravam como novas formas
colonialismo e neocolonialismo das Grandes Potências daquele período.
Mas este novo/velho
caminho da política externa da Índia não será fácil, como se pôde ver pela
retaliação quase imediata que sofreu com o golpe de Estado que derrubou sua
aliada, a Primeira-Ministra de Bangladesh, Shikh Hasina, no dia 4 de agosto
recém passado, e que contou com o apoio/intervenção dos Estados Unidos. Uma
mudança forçada de governo, que seguiu o novo figurino das intervenções
norte-americanas, desde o Golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, e que pode
transformar Bangladesh, em qualquer momento, num novo foco de atrito militar
entre a Índia e a China.
De qualquer forma,
haverá que acompanhar os próximos desdobramento para avaliar o comportamento
desta nova Índia que está se propondo entrar no “jogo das Grandes Potências”.
¨ A plutocracia norte-americana. Por Pedro Miguel Cardoso
Os Estados Unidos da
América (EUA) têm defendido ao longo da sua história a liberdade e a
democracia? Este texto não tem espaço para analisar os muitos exemplos de
políticas internas e externas deste país, mas tem espaço para argumentar que as
ideias proclamadas de defesa da liberdade e da democracia sempre foram mentiras
ou mistificações subordinadas ao interesse material e ao poder das suas classes
dominantes.
Podíamos começar por
recordar simbolicamente que o comandante militar e protagonista político da
revolta pela independência: George Washington, o autor principal da declaração
de independência em 1776: Thomas Jefferson, e o aclamado “Pai” da Constituição
Federal de 1787: James Madison, foram os três proprietários de pessoas
escravizadas e assim se mantiveram ao longo da vida.
A questão é que a
escravatura não foi algo que persistiu apesar da independência e da revolução
liberal, experienciou o seu máximo desenvolvimento depois delas. De 1783 no
final da Revolução Americana, até 1861, o número de pessoas escravizadas nos
EUA multiplicou-se várias vezes e essa expansão transformaram os Estados do sul
numa força dominante no mercado global do algodão.
No tempo de uma vida,
o Sul dos EUA cresceu de zonas costeiras de plantações para um espaço de
dimensão continental. Os empreendedores escravocratas moveram pela força mais
de um milhão de pessoas escravizadas para vastos territórios também apropriados
pela força aos habitantes nativos.
A expansão da
escravatura formatou todos os aspetos da economia e da política da nova nação,
não apenas aumentando o seu poder e território, mas também diferenciando
identidades regionais e interesses. A defesa da liberdade, a justificação da
escravatura e a destruição dos povos indígenas estiveram intimamente ligados.
Sempre foi a liberdade para alguns em detrimento de outros.
Depois da guerra civil
e da abolição formal da escravatura foram implementados novos mecanismos de
discriminação e opressão. A segregação racial e o trabalho forçado foram uma
duradoura realidade e a violência de viés racial manteve-se e mantém-se. Na atualidade,
os EUA contabilizam a maior população prisional do mundo em termos absolutos,
contando com uma alta percentagem das populações historicamente discriminadas e
oprimidas.
Em relação à
democracia podíamos abordar as exclusões históricas de significativos setores
sociais, tal como em outros países de referência do liberalismo. Os
afro-americanos, as populações indígenas e as mulheres foram durante muito
tempo afastadas da participação política.
Além disso, o sistema
político com o colégio eleitoral, constituído por representantes dos Estados,
para a eleição do presidente dos EUA estabeleceu desde o início distorções que
se prolongam na atualidade. Há também mecanismos de manipulação, como o “gerrymandering”
que é um método de definir os distritos eleitorais de um território para obter
vantagens no número de representantes políticos eleitos, utilizado para
favorecer ou prejudicar um determinado grupo social ou político.
Mas sobretudo, importa
destacar como o grande capital representado em Wall Street e
os doadores financeiros dominam completamente os processos económicos,
políticos, mediáticos e eleitorais nos EUA e todas as estruturas estatais. Os
candidatos ao congresso, senado e presidência dos EUA, são em regra cidadãos
ricos e ricamente financiados por interesses privados. Por isso, há académicos
que consideram o termo plutocracia (o governo dos ricos para os ricos) mais
adequado para descrever o sistema vigente no país.
No plano externo,
ainda mais evidentes são as políticas contra a democracia e a liberdade: golpes
de Estado para remover presidentes e governos democraticamente eleitos, guerras
e invasões para garantir controlo de recursos naturais noutros países, combate
ao socialismo e ao comunismo e promoção do terrorismo a nível mundial.
Em resumo, se
analisarmos para além da propaganda e da ideologia promovida, o essencial das
políticas dos EUA não tem sido a defesa da democracia e da liberdade, mas sim a
defesa dos interesses das suas classes dominantes e do seu imperialismo a nível
mundial.
Fonte: A Terra é
Redonda
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