quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Julian Rodrigues: ‘Uma cadeirada justa e necessária’

Nem carinhos, nem argumentos, nem flores. Nada disso foi capaz de deter o fascismo histórico. E não faz nem cócegas no neofascismo contemporâneo. A extrema direita se fortalece em todo o mundo, cavalgando a crise do modelo capitalista neoliberal que eles mesmos promovem e defendem. Donald Trump nos EUA ou Giorgia Meloni na Itália são duas caricaturas que sintetizam esse momento de retrocesso civilizatório no qual estamos mergulhados.

O fenômeno bolsonarista pôde ser derrotado eleitoralmente em virtude da enorme força da classe trabalhadora brasileira organizada (sobretudo no PT) e da liderança excepcional de Luis Inácio Lula da Silva. Mas foi apenas um breve respiro. Os neofascistas continuam fortes e na ofensiva, tanto nas redes sociais, como nas ruas e nos parlamentos.

Nas eleições municipais de 2024 assistimos variações, atualizações, adaptações e também a radicalização do movimento neofascista. O caso mais emblemático é a disputa na capital paulista.

Pablo Marçal representa o ápice das ideias de extrema direita, da cultura hiperneoliberal e do autoritarismo antidemocrático. Sem partido estruturado, sem apoio relevante no establishment político e empresarial, sem tempo de TV, sem experiência eleitoral prévia, o coach evangélico fundamentalista, que enriqueceu vendendo cursos para brancos urbanos falidos e intelectualmente limítrofes — tornou-se a peça principal do processo político-eleitoral brasileiro nesse momento.

Pablo Marçal é de extrema direita, mas não tem história orgânica nesse campo. Ninguém o conhece de fato e ninguém confia nele. Pablo Marçal é um noveau riche, um social climber, longe dos centros de poder tradicionais das classes dominantes. Além de não ser paulista, mineiro, gaúcho e nem ao menos carioca, tem a audácia dos imprudentes, a autoestima bizarra dos “social climbers”, a expertise dos estelionatários experientes e, sobretudo, a confiança dos que não tem origem nem destino.

São Paulo tem “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Cosmopolita, vanguardista é tão rica quanto desigual. Condensa o melhor e o pior do Brasil. São Paulo é berço de lutas centenárias, epicentro das jornadas democráticas e berço do PT. E é um dos lugares mais difíceis, caros, inóspitos, brutais para os de baixo. São Paulo elegeu Luiza Erundina em 1988. Marta Suplicy em 2000. Fernando Haddad em 2012. Aqui, Lula venceu Jair Bolsonaro no último pleito.

Mas São Paulo foi e também é Jânio, Maluf, Collor, Bolsonaro, Tarcísio. Foi Covas, FHC, Serra, Marta, Eduardo, Haddad e Lula. Tudo ao mesmo tempo: berço das manifestações de 2013, mas também do “Ele não”. São Paulo, capital, é muito menos conservadora e reacionária do que o interior do Estado.

São Paulo não elegeu Ricardo Nunes, mero vereador fisiológico, medíocre, ligado à extrema direita católica, o político mais sem carisma de todo o universo. Ricardo Nunes foi uma maldição maior, a maldade suprema que o PSDB e Bruno Covas nos fizeram a todos paulistanos, nascidos ou que aqui escolheram viver.

Bruno Covas tinha câncer terminal, mas disputou e venceu as eleições de 2020. Egoísta e mesquinho, sabia que não iria sobreviver ao primeiro ano de seu mandato. Fez questão, contudo, de disputar a eleição escolhendo como seu vice e nos empurrando goela abaixo esse traste obscuro que hoje nos governa.

Ricardo Nunes só não é tão mal avaliado porque ninguém o conhece. E muito menos sabe o que ele fez ou deixou de fazer nos últimos anos. Aliás, tal grau de mediocridade está até lhe sendo benéfica porque tem o permitido criar um personagem na propaganda eleitoral prefeito humilde que fez muita coisa e por alguma razão a gente não sabia ainda.

Considerando as CNTP (condições normais de temperatura e pressão) o pleito paulistano seria polarizado pelo intendente bolsonarista apoiado em busca da reeleição versus o desafiante de esquerda. O direitista com apoio de Jair Bolsonaro e do governador Tarcísio de Freitas, o progressista com apoio do presidente Lula e dos movimentos sociais.

Pablo Marçal chegou chutando tudo, bagunçando o cenário. Mais à direita que o próprio Jair Bolsonaro, radicalmente oportunista, sem vínculos orgânicos com a burguesia ou a grande mídia. Chegou chutando tudo, sem peias, sem nenhum compromisso com a própria estrutura do sistema eleitoral burguês. Tão arrogante, agressivo, pretensioso e disruptivo que causou e causa perplexidade generalizada.

Enquanto isso vai avançando sobre um eleitorado sedento de novidades, cansado da direita tradicional, totalmente antipetista. Na prática, Pablo Marçal é um candidato mais bolsonarista do que o bolsonarismo veio a se tornar.

Enquanto isso, a candidatura de Guilherme Boulos fez um aggiornamento de imagem e programa tão significativo que chega a confundir sua base social, militante e eleitoral. A ponto de termos que assistir à insossa “Tabata liberal” protagonizar os ataques mais duros contra Pablo Marçal. Fica difícil entender e se identificar com esse Boulos que está sendo vendido na atual campanha. Há até mêmes comparando-o com personagens daquele desenho “ursinhos carinhosos”.

Todavia, há (ou havia) outro personagem que se queria outsider, o carismático apresentador de programas policialescos, José Luiz Datena. Ele, que em toda eleição brincava de ser candidato e depois recuava, resolveu se lançar de verdade justamente na disputa mais complicada para ele. Afinal, o completo espectro da direita está preenchido (Marçal, Nunes, Tabata, Maria Helena).

Todas as pesquisas têm indicado que Guilherme Boulos caminha para o segundo turno e, provavelmente seu adversário será o atual prefeito. José Luiz Datena e Tabata Amaral têm caído. Pablo Marçal estagnou (e pode vir a cair mais, intuo).

Pablo Marçal desde o início mostrou que não joga conforme nenhuma regra. Perto dele, Jair Bolsonaro parece um cara até razoável, um tiozão do churrasco que exagera quando em vez. Há, aliás, uma diferença que me parece estrutural entre o bolsonarismo e o marçalismo. A liderança do ex-capitão foi construída em mais de duas décadas de atuação parlamentar e por meio de uma relação orgânica com as Forças Armadas. A adesão de Jair Bolsonaro ao liberalismo tosco de um Paulo Guedes sempre pareceu tática, de ocasião.

Já Pablo Marçal é vinculado às ideologias mais radicalmente anti-Estado, pró-mercado, pró-individualismo. Um coach-pastor. Mix muito bem costurado. Teologia da prosperidade com auto-ajuda rudimentar para bobalhões brancos héteros das classes médias pouco instruídas — mas muito ambiciosas. E, sobretudo, ressentidas.

Pablo Marçal pode ir ao segundo turno. E, se for, tende a vencer Guilherme Boulos. Na dúvida, tentarão “passar um pano” e vendê-lo sem dentes, quase fofinho. Como já fizeram com Jair Bolsonaro, aliás. Deu no que deu.

Sim, existe um mal-estar no ar hipersseco desses dias na pauliceia desvairada. As elites preferem Ricardo Nunes, obviamente. Mas, antes de qualquer coisa, são pragmáticas e essencialmente anticomunistas, antipetistas, antipovo. Na dúvida, perfumam o Pablo e o chamam de bebê fofo. Tudo em nome de derrotar o invasor de casas barbudo e mal humorado e ainda por cima apoiado por Lula.

E a cadeirada, afinal? Antes disso, uma nota rápida sobre os debates. A cada nova disputa eleitoral se tornam menos úteis, mais monótonos e muito mais palco pra cortes em redes sociais e no velho e bom horário eleitoral gratuito.

Muito cedo ainda o é para qualquer avaliação peremptória sobre o “efeito cadeirada”. José Luiz Datena se permitiu esse ato extremo porque já era desde sábado um ex-candidato vivo, um zumbi. Parece que se arrependeu de não ter desistido dessa vez. Aliás, um cara com a idade, o salário e o prestígio dele não tem nada a ganhar se enfiando em disputas eleitorais acirradas. José Luiz Datena é o candidato do PSDB, o que torna tudo mais patético e trágico também. Triste e doloroso fim do partido de Montoro, Covas, Serra e Alckmin.

Isso tudo posto, a cadeirada foi, além de divertida, didática. Simboliza um chega, um gesto radical, mas imprescindível. Pode gerar algo como um “freio de arrumação”. Ou não. Mas, no mínimo gerou centenas de mêmes e muita diversão gratuita. E duvido que algum ser humano tenha tido peninha do Pablo Marçal. O imponderável nunca nos abandona, o que torna as coisas menos monótonas, afinal.

E que a campanha de Guilherme Boulos melhore, seja mais politizada, combativa e programática. Com muito mais PT, mais Lula, mais Marta, mais mobilização social. E, sobretudo, muito mais propostas objetivas para melhorar a vida das massas trabalhadoras de São Paulo.

 

¨      O estilo Marçal de ser. Por Miguel Paiva

A elite se escandaliza, a bela imprensa reage ofendida, os bem-pensantes se horrorizam, e nós ficamos indignados, mas o pessoal da turma do Marçal, do Ramagem e de tantos outros continua. O nível em São Paulo é assustador. Pobre do Boulos, que tenta se manter na superfície programática, sem tanto sucesso. Quase se afoga por conta dos ataques que sofre.

Essa linguagem truculenta característica do Marçal já vimos antes começar a se desenvolver na turma do Bolsonaro. Deputados eleitos, assessores, vereadores, prefeitos e ministros, além do próprio presidente, baixaram o nível da discussão. Como o projeto era demonizar a política, tudo foi colocado no mesmo cesto e ateado fogo. Aliás, melhor não falar de fogo porque é a ilustração destruidora dessa linguagem. Vamos destruir tudo, queimar tudo, derrotar todos em nome de Deus.

Foi assim e continua sendo assim. A linguagem da violência pegou de tal modo que você ouve e sente esses reflexos nas ruas, no trânsito, nos serviços e na população em geral. Para que ter gentileza no trato se sou tratado como um animal? Pior. Animais, às vezes, são tratados de modo mais civilizado. Não adianta mais reclamar na cidade para que regras sejam cumpridas. Vale tudo. Vale tudo no trânsito na hora da transgressão, do avanço de sinal, do desrespeito generalizado. Vale tudo na convivência cívica, no respeito ao outro cidadão, que também deve te respeitar. Vale tudo no jeito de falar e se comportar das pessoas.

Viver numa cidade como Rio ou São Paulo hoje é um risco muito maior do que já foi. Além da violência social, da criminalidade, dos assaltos e da luta desesperada pela sobrevivência, temos a intolerância, a impaciência em relação ao outro, que logo se torna seu inimigo, ao invés de seu aliado. É um individualismo sem bases individuais para se sustentar. É um indivíduo desprovido de tudo, sobretudo de cidadania, educação e presença do Estado. Se privatizarmos esse pouco Estado que resta, aí sim, vamos viver no total abandono. Empresas privadas não têm princípios sociais. Querem o lucro. E tem gente lutando por isso. A extrema direita opta pelo neoliberalismo, pela economia de mercado e pelo Estado mínimo, quase inexistente, porque quer distância de qualquer compromisso social. Este é o grande problema que vivemos. Viramos uma selva privatizada, sem fiscalização e sem regras. "Salve-se quem puder" não é um lema construtivo. É um grito de desespero. Apesar de tudo que vem sendo feito, estamos quase lá.

 

•        Vítimas relatam fraudes bancárias envolvendo Pablo Marçal: "Pegaram quase todo o meu salário"

Em 2005, uma professora universitária do Rio Grande do Norte teve quase todo o seu salário retirado de sua conta bancária por uma quadrilha especializada em fraudes bancárias, que operava em várias partes do Brasil. Entre os envolvidos no esquema estava Pablo Marçal, que hoje é candidato à prefeitura de São Paulo. A professora, identificada apenas como A.C.F., relatou que notou a retirada de mais de R$ 4.650 de sua conta e, ao procurar a agência da Caixa Econômica, foi orientada a escrever uma carta para contestar as transações. A Polícia Federal descobriu que a operação fazia parte de um golpe sofisticado que envolvia o roubo de dados bancários e transferências fraudulentas.

“Foi muito complicado. Eu precisava pagar contas e não tinha como pagar. Pegaram quase todo meu salário”, lembrou.

Marçal, que na época tinha 18 anos, foi preso temporariamente em agosto de 2005, acusado de envolvimento com o grupo criminoso. A investigação revelou que ele participava do esquema manipulando sistemas e-mails e computadores usados para acessar contas bancárias de vítimas em diversos estados. Apesar da confissão de um dos comparsas, que admitiu ter colaborado com Marçal, o candidato afirma que apenas prestava serviços de informática e não tinha envolvimento direto nas fraudes. Ele foi condenado a quatro anos e cinco meses de prisão em 2010, mas a pena foi extinta em 2018 devido à demora no processo.

O esquema afetou várias pessoas e pequenas empresas em todo o Brasil, incluindo clientes de bancos como Caixa, Banco do Brasil e Bradesco. As vítimas variavam de empresários a pessoas de baixa renda. A Polícia Federal utilizou escutas telefônicas e apreensões de materiais para identificar os membros da quadrilha e rastrear o destino dos fundos roubados, que passavam por várias contas antes de serem sacados em diferentes localidades.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Brasil 247

 

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