Editar DNA é ético? O debate sobre
tecnologia que promete revolucionar vidas
Não há nada de novo na
engenharia genética. Com o cruzamento de plantas e animais, nossos ancestrais
perceberam que poderiam aumentar a quantidade de alimentos que produziam.
A genética moderna
permitiu que os cientistas fizessem muito mais: realizar alterações precisas e
direcionadas no DNA de organismos em laboratório. E isso, segundo eles, vai
levar a novos animais e culturas mais produtivas e resistentes a doenças.
A ciência ainda está
em seus primórdios, mas alimentos geneticamente editados já estão nas
prateleiras do Japão: tomates ricos em uma substância química que supostamente
promove a calma ou peixes com crescimento mais rápido e carne mais saborosa.
Nos Estados Unidos,
empresas estão desenvolvendo rebanhos resistentes ao calor, cerejas sem caroço
e amoras sem sementes.
Os defensores da
tecnologia afirmam que ela poderia reduzir as doenças e o sofrimento dos
animais, além de levar ao uso de menos antibióticos.
Eles também acreditam
que ela poderia combater as mudanças climáticas ao diminuir as emissões do gás
metano, que contribui para o efeito estufa e é produzido por animais como
vacas, cabras e cervos quando seus estômagos estão decompondo fibras duras, como
a grama, para digestão.
Mas os críticos dizem
que a edição de genes ainda não é comprovadamente segura — e que continuam
preocupados com as implicações para o bem-estar dos animais.
Agora, uma lei que
permite a venda de alimentos com edição genética no Reino Unido está suspensa,
e alguns cientistas britânicos alertam que eles podem ficar para trás em
relação a outros países.
O novo governo
britânico trabalhista prometeu uma maior aproximação com a União Europeia (UE),
principalmente em relação às regulamentações que possam afetar o comércio.
E, atualmente, o bloco
europeu tem regras muito mais rígidas sobre a venda comercial de culturas
geneticamente editadas e geneticamente modificadas.
A UE estabeleceu
regulamentações rigorosas sobre culturas geneticamente modificadas décadas
atrás, devido a preocupações com a segurança e à oposição da opinião pública à
tecnologia.
As plantações
geneticamente editadas estão sujeitas às mesmas regulamentações.
Mas, para os
cientistas, os termos "geneticamente editados" e "geneticamente
modificados" se referem a coisas diferentes.
A modificação
genética, uma tecnologia muito mais antiga, envolve o acréscimo de novos genes
a plantas e animais para torná-los mais produtivos ou resistentes a doenças.
Às vezes, estes novos
genes são de espécies totalmente diferentes — por exemplo, uma planta de
algodão com um gene de escorpião para tornar seu sabor desagradável para os
insetos.
Em contrapartida, a
edição de genes envolve fazer alterações mais precisas no DNA da planta ou do
animal.
Estas mudanças
geralmente são bem pequenas — e envolvem editar seções do DNA para chegar a uma
forma que, segundo seus defensores, poderia ser produzida por meios naturais,
como o cruzamento tradicional, só que muito mais rápido.
• Esperança frustrada
Ao lado dos EUA e da
China, o Reino Unido está entre os países que lideram a tecnologia de edição de
genes no mundo.
No ano passado, o
governo anterior aprovou a chamada lei de reprodução com precisão, que abriu
caminho para a venda comercial de alimentos geneticamente editados na
Inglaterra.
Na época, muitos
cientistas que trabalhavam na área ficaram radiantes.
"Pensei: 'Ótimo,
isso vai abrir toda uma área de atividade nos setores público e privado', e
poderíamos criar uma comunidade empresarial para edição de genes no Reino
Unido", relembra Jonathan Napier, da Rothamsted Research, um instituto de
pesquisa agrícola do governo em Harpenden, na Inglaterra.
Mas ele diz que suas
esperanças logo foram frustradas.
Para que a lei
entrasse em vigor, era necessária uma legislação secundária, que deveria ter
sido aprovada pelo Parlamento em julho deste ano.
Porém, como as
eleições ocorreram mais cedo do que o esperado, o projeto não foi votado pelos
parlamentares, e a lei está atualmente no limbo.
Napier estava entre os
50 cientistas de renome que escreveram para os ministros recém-nomeados do
Departamento de Meio Ambiente, Alimentos e Assuntos Rurais (Defrat, na sigla em
inglês) no fim de julho, pedindo que eles agissem "de forma rápida e decisiva"
para aprovar a legislação secundária.
O ministro à frente do
Defra, Daniel Zeichner, respondeu ao apelo feito pelos cientistas na semana
passada, declarando que o governo estava "agora considerando como levar
adiante a estrutura regulatória descrita na lei, e vamos compartilhar nossos planos
com as principais partes interessadas em breve".
Uma das principais
responsáveis pela carta dos cientistas, a especialista Tina Barsby, descreveu a
resposta do ministro como "encorajadora", mas disse que sua promessa
de esclarecer "em breve" tinha que significar realmente em breve.
Segundo ela, outros
países estavam avançando rapidamente com seus planos para culturas com edição
genética.
A Tailândia
recentemente se juntou ao Canadá, Austrália, Japão, Brasil, Argentina e Estados
Unidos na adoção de regulamentações sobre edição de genes.
Até mesmo a Nova
Zelândia, que, segundo Barsby, "tem adotado historicamente uma abordagem
regulatória mais cautelosa em relação às tecnologias genéticas", anunciou
que também vai introduzir uma nova legislação.
"Com nossa base
científica líder mundial em pesquisa genética, não podemos nos dar ao luxo de
ser deixados para trás", ela acrescentou.
Mas os membros do
Defra também precisam levar em consideração as opiniões de ativistas
ambientais, como Helen Wallace, da Genewatch UK, que está preocupada com as
"consequências indesejadas" da lei de reprodução com precisão.
"Se você retirar
essas plantas e animais das regulamentações sobre modificação genética, não
haverá o mesmo grau de avaliação de risco, não haverá rotulagem e haverá risco
para os mercados, porque muitos deles os regulamentam como geneticamente modificados",
diz ela.
Peter Stevenson,
consultor-chefe de políticas da organização Compassion in World Farming (CIWF),
com sede no Reino Unido, também teme que a tecnologia contribua ainda mais para
intensificar a criação de animais, com consequências negativas.
"O uso da
reprodução seletiva nos últimos 50 anos trouxe um grande número de problemas de
bem-estar animal", ele observou.
"As galinhas
foram criadas para crescer tão rápido que suas pernas e coração não conseguem
sustentar adequadamente o corpo em rápido desenvolvimento e, como resultado,
milhões de animais estão sofrendo de distúrbios dolorosos nas pernas, enquanto
outros sucumbem a doenças cardíacas."
"Será que
realmente queremos acelerar esse processo com a edição de genes?",
questionou.
O maior receio da CIWF
é que a edição genética de animais para torná-los mais resistentes a doenças
faça com que o setor não se sinta motivado a lidar com as condições que levam
os animais a adoecer em primeiro lugar — como condições de superlotação e insalubridade.
A intensidade da
produção de leite, carne e ovos atualmente deixa muitos animais "exaustos
e doentes", afirmou Stevenson à BBC News.
Qualquer alteração
genética em um animal pode ter efeitos negativos. Mas os defensores dizem que,
para qualquer aplicação comercial, as empresas precisam demonstrar ao órgão
regulador que suas mudanças não prejudicam o animal e comprovar isso com dados.
Na verdade, muitos dos
que defendem o uso da tecnologia de edição de genes fazem isso, em parte, com
base no bem-estar animal — porque ela poderia tornar os animais de criação mais
resistentes a doenças e, como menos animais morreriam como resultado, menos
animais seriam necessários.
Outra signatária da
carta é a professora Helen Sang, que lançou as bases para o uso da edição
genética para desenvolver resistência à gripe aviária em frangos.
"Com uma cepa
virulenta da PRRS (sigla em inglês para "síndrome reprodutiva e
respiratória dos suínos") dizimando rebanhos de porcos na Espanha, a peste
suína africana avançando pelo norte da Europa, e o vírus da gripe aviária
detectado tanto nas vacas leiteiras e no leite nos EUA, a importância de
viabilizar todas as soluções possíveis, incluindo a reprodução com precisão,
não pode ser exagero", disse ela em resposta a Zeichner.
Algumas das soluções
para os problemas mencionados por Sang já estão sendo estudadas. Ela trabalha
no Instituto Roslin, onde a ovelha Dolly foi clonada há quase 30 anos.
Atualmente, o instituto é líder mundial no desenvolvimento de animais
geneticamente editados.
Os colegas de Sang no
Instituto Roslin desenvolveram porcos resistentes à doença PRRS há seis anos.
Eles ainda não podem
ser vendidos comercialmente aos criadores de suínos do Reino Unido, mas a
Genus, empresa britânica que comercializa os suínos resistentes à PRRS, recebeu
aprovação regulatória para seu uso na Colômbia.
A empresa também
solicitou uma licença para introduzir os porcos no mercado dos EUA que, se
receber sinal verde, pode ser aprovada já no próximo ano. A Genus também está
planejando solicitar aprovação para o uso comercial de seus porcos
geneticamente editados no Canadá, México e Japão.
Apesar das fortes
opiniões de ambos os lados, parece haver espaço para consenso em relação a
algumas aplicações da tecnologia.
Por exemplo,
Stevenson, da CIWF, acha que é pelo menos possível que a edição de genes possa
ser aplicada de forma ética.
Para isso, segundo
ele, seria necessário atender a três critérios: que qualquer mudança provocada
seja improvável de causar problemas de bem-estar animal; que seus objetivos não
possam ser alcançados por meios menos intensivos; e que não tenha o efeito de
consolidar a produção pecuária industrializada.
Os porcos resistentes
à PRRS podem preencher todos os três requisitos em circunstâncias específicas,
de acordo com Stevenson, assim como as iniciativas para usar a edição de genes
para permitir que a indústria de produção de ovos gere somente pintinhos fêmeas
para evitar a necessidade de matar bilhões de pintinhos machos todos os anos,
quando eles têm apenas um dia de vida.
Da mesma forma, Mizeck
Chagunda, diretor do Centro de Genética e Saúde para Pecuária Tropical, também
sediado no Instituto Roslin, acredita no potencial positivo da edição genética
— e que ela precisa ser cuidadosamente supervisionada.
Ele afirma que a
tecnologia poderia melhorar a vida dos agricultores mais pobres do mundo:
"70% a 80% dos agricultores são de pequenas propriedades com dois a três
animais". Uma doença devastadora pode deixar um agricultor e sua família
sem nada.
"Portanto, dar a
eles animais que foram preparados com essas tecnologias ajudaria a protegê-los
desse enorme risco para seus meios de subsistência", explica Chagunda.
No entanto, ele
adverte que é necessário que haja regulamentações sólidas e adequadas em vigor
para que essa tecnologia seja aceita pelo público.
"Algumas mudanças
podem ser experimentais demais, e não deveríamos fazer", diz ele.
"Os cientistas
devem trabalhar com as autoridades reguladoras para obter os bons produtos que
os agricultores e consumidores estão procurando. Devemos fazer ciência que seja
ética e que, ao mesmo tempo, ajude a humanidade."
O trabalho de edição
genética no Instituto Roslin é liderado por seu diretor, Bruce Whitelaw, que
era cientista do instituto quando a ovelha Dolly foi clonada.
No passado, ele passou
pelo processo de explicar os possíveis benefícios de desenvolvimentos
tecnológicos aparentemente alarmantes — e acredita que há uma necessidade
urgente de fazer isso novamente agora.
"Somos líderes
mundiais em tecnologia, e somos referência em termos de desenvolvimento",
ele afirma.
"Se não tivermos
a legislação necessária para fazer isso, nossas credenciais como referência vão
desaparecer lentamente, e vamos perder investimentos, talentos científicos e o
avanço da nossa economia para outros países.”
• Mudanças climáticas
Há lições aqui do
passado. A modificação genética foi rejeitada por muitos consumidores no Reino
Unido, na União Europeia e em outros países há 30 anos devido à percepção de
que não era natural.
As plantações
geneticamente modificadas foram pisoteadas publicamente por manifestantes, que
a viam como uma tecnologia que eles não precisavam, não queriam e não
consideravam segura.
Ao mesmo tempo, os
cientistas ficaram irritados e aborrecidos com o fato de que o que eles
acreditavam ser sua tecnologia para salvar o mundo estava sendo destruída, na
opinião deles, por uma onda de histeria anticientífica alimentada pela mídia.
A edição de genes
parece ser uma versão mais palatável da modificação genética para alguns,
chegando em um momento em que o debate está menos polarizado, a necessidade de
soluções ambientais é ainda mais urgente e parece haver uma maior disposição
por parte de alguns cientistas e ativistas para analisar as perspectivas uns
dos outros.
Stevenson, da CIWF,
acredita que, a longo prazo, deve haver "enormes reduções" na
produção pecuária global para lidar com as mudanças climáticas — mas
pragmaticamente, diante do fato de que as mudanças climáticas já estão
destruindo tantas vidas, o uso da edição genética pode ser
"legítimo". Mas ele está cauteloso.
"É difícil para
mim confiar naquela parte do mundo científico que diz: 'Ei, agora temos uma
nova maneira de alterar animais'."
"O perigo é que
os animais sejam pensados como coisas, unidades de produção, mais do que são
agora, porque podemos modificá-los para torná-los mais favoráveis aos nossos
usos e nos afastar da noção de animais como seres sencientes", completa.
O que vai acontecer a
seguir, não apenas no Reino Unido, mas no resto do mundo, depende se os
defensores da edição genética são capazes de convencer aqueles que têm a mente
aberta, mas são cautelosos, como Stevenson, de que eles podem agir com
segurança, eticamente e de uma maneira que melhore, e não piore, a vida — tanto
para as pessoas quanto para os animais.
Fonte: BBC News
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