quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Crise climática: Brasil queima e Congresso deixa crise para Lula

Desde o início do inverno, o Brasil enfrenta um problema de proporções catastróficas: a onda de incêndios que se espalha por praticamente todo o território do país. A destruição do meio ambiente provocada pelas queimadas levou parte dos Poderes da República a se mobilizar. O ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino emitiu seguidas decisões com pedidos de explicações e de providências. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, disponibiliza recursos, crédito, equipamentos e homens para ajudar estados e municípios no combate às chamas. E o Congresso Nacional?

Mesmo entre os próprios parlamentares, há muitos questionamentos sobre a contribuição do Legislativo no enfrentamento da "pandemia de incêndios", como definiu Flávio Dino.

Não há registro, por exemplo, da presença de autoridades da Câmara dos Deputados e do Senado onde a crise climática está mais aguda. Diferentemente da tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, quando o presidente Lula visitou o estado acompanhado do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), os incêndios que provocam terror na população atingida e deixa perplexos os moradores das cidades afetadas pela extensa nuvem de fumaça não sensibilizaram as autoridades do Legislativo. O noticiário referente ao Congresso — incluindo o esforço concentrado da semana passada — está restrito às articulações para a sucessão de Lira, na Câmara.

O distanciamento do Congresso em relação à crise climática se traduz em números. O Brasil teve 68,3 mil focos de queimadas em agosto deste ano, um crescimento de 144% em relação ao mesmo período de 2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É a seca mais severa já registrada. Parlamentares, no entanto, destinaram apenas R$ 236 mil dos R$ 21 bilhões empenhados em demandas individuais, neste ano, para "Ações de Prevenção e Controle de Incêndios Florestais nas Áreas Federais prioritárias". O dado é do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop).

O deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM) foi o único que enviou algum dinheiro para o combate aos incêndios: R$ 191,4 mil em emendas do parlamentar foram para a conta o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo), programa de combate a incêndios do Ibama.

"Há uma culpa de todos, porque esse tipo de assunto só se torna pauta nacional e toma conta dos noticiários quando chega no Sudeste ou quando é realmente uma calamidade pública", disse Mandel ao Correio.

Os deputados federais José Guimarães (PT-CE) e Leo Prates (PDT-BA) também apresentaram emendas parlamentares, mas os valores não foram usados para combate direto do fogo. Os R$ 45 mil empenhados por Guimarães, que é líder do governo na Câmara, foram para a reforma de um prédio do Ibama em Quixeramobim (CE). Prates, que pretendia usar o dinheiro para a compra de carros de combate a incêndios, não teve recursos empenhados.

O descuido com as queimadas não vem de agora. Dados enviados pelo Ministério do Meio Ambiente à reportagem mostram que o governo federal havia previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2024 (Ploa) R$ 398 milhões para combate a incêndios. O Congresso, no entanto, aprovou uma redução de R$ 40 milhões. Com o incremento de créditos extraordinários, o Orçamento chegou a R$ 501,6 milhões neste ano, contra R$ 459 milhões em 2023.

<><> ICMBio e Ibama

Os cortes atingiram principalmente o Instituto Chico Mendes (ICMBio), que deixou de receber R$ 36 milhões após os rearranjos do Congresso. "Na época, eu lutei para que isso não ocorresse, justamente porque todos os especialistas e o próprio Ibama já sabiam que os eventos climáticos seriam piores neste ano. O que estamos vendo, hoje, é algo anunciado, mas as pessoas ainda não entenderam que a questão climática é uma emergência, não tem como ignorar. O que acontece no Congresso é a recorrente negligência com o tema", queixou-se Mandel.

A professora do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB) Isabel Schmidt apontou que cabe à Câmara e ao Senado criar e aprovar leis com sanções mais pesadas a quem provoca desmatamento ilegal e incendeia a mata. "Mas isso tem que vir associado ao aumento de dotação orçamentária para os órgãos ambientais e de fiscalização, senão são medidas inócuas", ressalvou a acadêmica.

"O Congresso vem, há anos, intensificando ataques às leis ambientais, como se elas fossem um entrave ao desenvolvimento socioeconômico do país. A crise ambiental que estamos vivendo demonstra que, sem cuidar do meio ambiente, a vida e a produção no campo e nas cidades brasileiras ficarão cada vez mais insustentáveis", afirmou.

"Obviamente, a prevenção e organização do combate aos incendios deve ser pautada com destinação orçamentária e orientação para implantação de brigadas em todas as áreas possíveis", declarou a deputada Talíria Petrone (PSol-RJ), coordenadora do grupo de trabalho do clima, da Frente Ambientalista na Câmara.

<><> PL da destruição

Desde o início de 2024, já foram registrados quase de 180 mil focos de incêndio em todo o país, um aumento superior a 110% em relação ao ano passado, segundo o Inpe. O secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, aponta o Congresso como um dos responsáveis pela tendência de "abrandar a legislação para todo e qualquer crime ambiental". Para ele, "a impunidade tem muito a ver com a legislação aprovada". "O Congresso brasileiro é uma máquina de destruir o meio ambiente", disse o especialista.

Em 14 de agosto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o Projeto de Lei 2168/2021, que altera o Código Florestal Brasileiro e permite obras em áreas de preservação permanente (APP). O texto autoriza o desmatamento nas APP para instalação de infraestrutura de irrigação. Além de abrir caminho para o desmate da vegetação nativa, o PL cria um cenário propício para agravar a escassez hídrica em várias regiões.

O projeto foi apresentado pelo ex-deputado José Mário Schreiner. Sem conseguir se reeleger em 2022, ele se descreve como produtor rural, e ocupa os cargos de presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), vice-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e presidente do Conselho Deliberativo do Sebrae-GO.

"A sensação que a gente tem é que o Congresso olha para as queimadas e para as enchentes no Rio Grande do Sul e diz: 'eu acho que é pouco, tem que queimar mais, inundar mais, tem que morrer mais gente e mais animais'", argumenta Astrini. Segundo ele, a Casa "deveria estar votando projetos para aumentar a punição de quem destrói o meio ambiente", mas "está dando anistia para essa gente".

Outro PL que altera o Código Florestal é o de nº 3334. Se aprovado, a Amazônia poderá perder uma área maior que o território do Uruguai, que tem 17,6 milhões de hectares. A proposta reduz o tamanho da reserva legal das fazendas, ampliando a área em que é permitido desmatar para abrir pastos e lavouras.

O projeto, apresentado pelo senador Jaime Bagattoli (PL-RO), reduz de 80% para 50% a área de reserva legal na Amazônia, o que pode aumentar as emissões de carbono na atmosfera. O texto é alvo de muitas críticas de ambientalistas e organizações que atuam na área.

"O Congresso tem as digitais em todos esses absurdos ambientais que acontecem no Brasil e continua acelerando esse processo de destruição. Aprova leis que sinalizam para os criminosos que eles têm espaço ali dentro, que basta esperar pelo momento certo que a impunidade prevalecerá", comentou Márcio Astrini.

Os projetos propostos contrariam os objetivos do governo em colocar o Brasil na posição de liderança frente às mudanças climáticas. Pela primeira vez, o país sediará uma reunião de cúpula do G20, em novembro deste ano, no Rio de Janeiro, e o tema será a principal pauta. No ano que vem, vai ser a vez de Belém receber a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 — COP30.

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), defende uma investigação rigorosa das causas dos incêndios, por considerar a ação criminosa coordenada como uma das principais suspeitas.

•        Queimadas: governo precisa 'sair do discurso e começar a agir', diz especialista

Em meio à crise climática e o avanço das queimadas pelo Brasil, o secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, afirmou, em entrevista à Rádio Eldorado, que é preciso que medidas mais agressivas e urgentes sejam tomadas para evitar que as consequências da destruição do meio ambiente se tornem ainda mais intensas e severas.

Para Astrini, apesar dos avanços, os esforços ainda são pequenos e atrasados. O especialista diz que os governantes precisam "sair do discurso e começar a agir".

A principal forma de combate citada por Astrini é o endurecimento das penas contra crimes ambientais, principalmente aqueles ligados aos incêndios. Especialistas dizem que a maioria das queimadas que se alastram pelo Brasil são criminosas - e não por descarga elétrica, como acontece em outros países.

"Hoje a pessoa não é pega. E, se é pega, toma uma multa, e não paga. Ela dá uma cesta básica e sai pela porta da frente. Então, esse crime fica totalmente impune", diz Astrini.

 

•        Jeferson Miola: Brasil em chamas cobra do STF que declare inconstitucional o Marco Temporal

A Lei 14.701/2023, do Marco Temporal, é inconstitucional.

No Recurso Extraordinário nº 1.017.365, de repercussão geral, o STF decidiu que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.

Para o ministro Edson Fachin, “a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado [brasileiro]”.

Fachin entende que “o procedimento demarcatório realizado pelo Estado não cria as terras indígenas – ele apenas as reconhece, já que a demarcação é um ato meramente declaratório”.

A definição da data de 5 de outubro como marco para a demarcação das Terras Indígenas, além de inconstitucional, agrava os conflitos nos territórios indígenas e coloca em risco a sobrevivência dos povos originários e, em consequência, das florestas e do ambiente natural.

Os indígenas são guardiões da floresta e da natureza. A ameaça à vida dos povos indígenas com o Marco Temporal significa, portanto, também uma ameaça à preservação das florestas, que ficarão sujeitas à devastação.

O processo conciliatório proposto pelo ministro Gilmar Mendes com o objetivo de encontrar uma solução intermediária sobre a Lei do Marco Temporal não é considerado legítimo pelas organizações indígenas, que se retiraram da Comissão Especial porque entendem que a Suprema Corte não pode “propor transação de direitos indisponíveis”.

O Brasil está asfixiado por cinzas e fumaças. O país arde no braseiro dos biomas naturais destruídos por queimadas em sua imensa maioria de origem criminosa e orquestradas por extremistas de direita.

O climatologista Carlos Nobre, respeitado cientista, se diz “apavorado” com a aceleração da crise climática no planeta, cuja realidade de emergência foi antecipada em pelo menos 10 anos, e cujos efeitos têm sido dramaticamente sentidos no Brasil com os eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul e a seca severa na Amazônia e no Pantanal.

Nobre estima que a antecipação do estado de emergência climática é sinal de que a destruição do Pantanal, da Amazônia, Caatinga e do Cerrado fica mais perto do ponto de não-retorno – limite crítico de mudança da natureza que impossibilita sua regeneração posterior e compromete, assim, a existência de todas as formas de vida, inclusive a humana.

Governos e sociedades nacionais estão desafiados a implementarem já, de modo imediato e urgente, medidas para deter o avanço da hecatombe climática, aumentar a resiliência e a capacidade de adaptação.

Trata-se de uma corrida contra o relógio catastrófico, de uma circunstância histórica de risco existencial para seres humanos e para toda a natureza.

Cada dia que passa é vital. Com o agravamento da crise climática e com o Brasil ardendo em chamas, o STF ganha ainda mais autoridade para retardar o relógio catastrófico enterrando definitivamente o Marco Temporal.

 

Fonte: Correio Braziliense/O Dia/Viomundo

 

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