quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Era dos megainvestimentos da China no Brasil acabou?

Brasil, que por quase uma década liderou como principal destino dos investimentos chineses na América Latina, caiu para a quarta posição no acumulado dos últimos cinco anos, atrás de Chile, Peru e México, segundo um relatório recente.

O estudo Investimentos Chineses no Brasil 2023 — Novas Tendências em Energias Verdes e Parcerias Sustentáveis, do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), revelou também que, apesar de um crescimento de 33% no ano passado frente a 2022, com aportes de US$ 1,73 bilhão (cerca de R$ 10 bilhões, em valores atuais), esse foi o segundo menor valor registrado desde 2009.

Em comparação, o Peru, que liderou em 2023, atraiu US$ 3 bilhões.

Os dados indicam que essa queda no Brasil reflete uma tendência mais ampla: os investimentos da China na América Latina estão em declínio.

De acordo com um relatório do think tank americano Inter-American Dialogue, os aportes chineses na região caíram de uma média de US$ 14,2 bilhões entre 2010 e 2019 para US$ 6,4 bilhões em 2022, levantando preocupações sobre o futuro do capital chinês no continente.

Diante desse cenário, surge a pergunta: será que a era dos megainvestimentos da China no Brasil — e na América Latina — chegou ao fim?

·        'Mudanças estruturais'

Apesar da redução no valor total dos investimentos chineses na região, isso não indica desinteresse, mas "mudanças estruturais", afirmam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Segundo eles, as empresas chinesas estão se voltando para projetos menores em áreas como energias renováveis, veículos elétricos e infraestrutura urbana, alinhados com os planos de desenvolvimento de Pequim.

"O foco em projetos de menor escala financeira não significa o fim dos grandes investimentos chineses na região. Em alguns países, ainda estão surgindo empreendimentos significativos nas áreas de energia, mineração e infraestrutura tradicional", afirma à BBC News Brasil Tulio Cariello, autor do relatório do CEBC e diretor de conteúdo e pesquisa da entidade.

Ele atribui a queda nos valores financeiros dos investimentos chineses no Brasil à ausência de grandes projetos intensivos em capital, mas também ao fator cambial.

Em 2010, quando os aportes chineses atingiram um recorde de US$ 13 bilhões, o dólar estava cotado a uma média de R$ 1,76.

Entre 2020 e 2023, a moeda brasileira se depreciou significativamente, com a moeda americana alcançando uma média de R$ 5,18.

Segundo Cariello, prova do contínuo interesse chinês no Brasil foi que, no ano passado, o Brasil registrou 29 projetos chineses confirmados, uma queda de 9% em relação a 2022, mas ainda assim o terceiro maior número desde o início da série histórica em 2007.

Além disso, a concretização dos investimentos chineses no Brasil — o percentual de projetos anunciados que realmente foram realizados — aumentou de 27% para 88% entre 2022 e 2023.

"Desde 2017, o número de projetos chineses no Brasil tem se mantido relativamente alto, variando entre 24 e 32 por ano, com exceção de 2020, quando houve apenas oito empreendimentos devido à pandemia de covid-19", observa Cariello.

Cariello também destaca que, apesar da queda de 17% nos aportes estrangeiros no Brasil, os investimentos chineses aumentaram em 2023.

No entanto, o valor investido anualmente tem sido, de fato, menor, com uma média de US$ 2,71 bilhões entre 2020 e 2023, comparado à média de US$ 6,53 bilhões registrada entre 2016 e 2019.

Segundo Jorge Heine, ex-ministro de Ativos Nacionais do Chile e ex-embaixador chileno em Pequim, atualmente professor na Universidade de Boston, nos EUA, os investimentos chineses no Brasil e na América Latina estão entrando em uma "nova fase", focada em energias renováveis.

"Desde 2010, os investimentos chineses na América Latina passaram por três fases principais. Inicialmente, concentraram-se em commodities, como mineração e petróleo, com uma forte presença em países como Venezuela, Equador e Peru", explica.

"Em seguida, houve uma onda de investimentos em infraestrutura, com grandes projetos em portos e ferrovias, especialmente no Chile e na Argentina".

"Atualmente, a ênfase está em energias renováveis, com destaque para o lítio, fundamental para a mobilidade eletrificada da China", acrescenta Heine.

Ele acrescenta que "projetos significativos incluem a aquisição de fábricas de veículos elétricos no Brasil e investimentos em energia pela State Grid. Esses investimentos atendem às necessidades de desenvolvimento da região e representam uma colaboração positiva com a China".

·        Liderança ameaçada

Em termos de investimentos acumulados, o Brasil ainda é o principal destino para investimentos chineses na América Latina, representando 39% do total desde 2003, de acordo com o CEBC e o Inter-American Dialogue.

No entanto, desde 2018, sua liderança tem sido desafiada por investimentos significativos em outros países, como Peru, Chile e México.

Nessas nações, empresas chinesas têm investido em grandes projetos de infraestrutura, manufatura de alto padrão e mineração, com ênfase na extração de lítio e outros minerais críticos.

"Esses investimentos visam, entre outros aspectos, manter a China na vanguarda da transição energética global, avançar com projetos da Iniciativa Cinturão e Rota [Belt and Road Initiative, projeto desenvolvimentista chinês] na região e garantir acesso a mercados importantes, como os Estados Unidos, por meio da exportação de produtos chineses manufaturados localmente em países vizinhos", explica Cariello.

O Chile, que emergiu como o principal destino para investimentos chineses na região após 2016, recebeu grandes aportes na exploração de lítio, incluindo a compra de 25% da SQM pela Tianqi Lithium.

No Peru, os investimentos aumentaram com projetos no setor de mineração, como um projeto de US$ 3 bilhões no Porto de Chankay, previsto para 2024.

No México, os investimentos estão concentrados em Tecnologia da Informação e manufatura de alto padrão.

Peru e Chile se uniram à Iniciativa Cinturão e Rota em 2015 e 2018, respectivamente, enquanto México e Brasil não participam do projeto desenvolvimentista chinês.

Embora os investimentos chineses ainda estejam predominantemente concentrados nos Estados Unidos, há uma presença crescente de países em desenvolvimento entre os principais destinos desses aportes, lembra Cariello.

"Em 2017, apenas três dos 10 principais receptores de investimentos chineses eram países em desenvolvimento. Em 2023, a situação mudou completamente, com os países emergentes ocupando 9 das 10 posições, sendo a Indonésia a líder e o Brasil na nona posição", diz.

·        Oportunidade

Os especialistas acreditam que o crescimento dos investimentos chineses em "novas infraestruturas" representa uma grande oportunidade para o Brasil, especialmente nos setores vinculados à transição energética.

Um exemplo notável, dizem eles, é o setor de veículos elétricos.

"A BYD está assumindo a antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, enquanto a Great Wall está ocupando uma antiga fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis, São Paulo. Ambas as empresas irão produzir veículos elétricos, um avanço significativo que poderá agregar mais valor às commodities da América Latina", destaca Heine.

Cariello aponta que, em 2023, 72% dos projetos chineses no Brasil foram direcionados a energias renováveis e segmentos relacionados, o maior percentual já registrado.

Ele observa que o compromisso da China com a luta contra as mudanças climáticas, aliado aos desafios geopolíticos atuais, tem levado o país a buscar parcerias e negócios que promovam uma nova integração na economia global.

Nesse contexto, acrescenta ele, o Brasil pode se destacar como "um parceiro importante da China", devido às suas diversas vantagens comparativas, "como uma matriz energética mais limpa entre os países do G20, a maior disponibilidade de água doce do mundo, reservas de minerais críticos para a transição energética e sua distância dos grandes temas geopolíticos contemporâneos".

Heine complementa que a China possui um volume significativo de capital em busca de boas oportunidades de retorno.

"Com uma taxa de poupança de cerca de 40% do PIB (Produto Interno Bruto, ou soma de riquezas de um país), a China tem uma quantidade considerável de capital disponível para investimento. À medida que a taxa de retorno diminui dentro da China, esse capital está se deslocando para o exterior", explica.

Ele também observa que, com os Estados Unidos e a Europa impondo restrições aos investimentos chineses — como tarifas de 100% sobre carros elétricos chineses e pressão para que a Europa faça o mesmo —, esse capital "está buscando oportunidades no Sul Global, beneficiando países da região".

"Estou muito otimista com esses investimentos, pois eles atendem às necessidades da região. A transição para a energia verde é um aspecto crucial dos desafios de desenvolvimento que a América Latina enfrenta. Se conseguirmos colaborar com a China nesse sentido, isso será extremamente positivo", conclui Heine.

 

¨      Especialistas falam sobre as perspectivas de uma moeda comum do BRICS, o dólar e as sanções

A Sputnik realizou uma videoconferência internacional sobre questões econômicas de grande atualidade com o tema "Maioria global no século XXI: resistindo às sanções e buscando uma alternativa ao dólar".

O evento reuniu destacados especialistas em temas vinculados às relações financeiras internacionais que falaram sobre as perspectivas de adoção de um sistema de pagamentos em moedas nacionais entre os países do grupo BRICS, o futuro do dólar, a criação de uma moeda do BRICS, bem como sobre o impacto das sanções na economia russa.

Falaram no evento: Marcos Caramuru, o ex-diretor-executivo do Banco Mundial e membro do Conselho Internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI); Sergei Afontsev, o membro correspondente da Academia de Ciências da Rússia e diretor do Departamento de Economia Mundial da Faculdade de Economia da Universidade Lomonosov de Moscou; Ekaterina Arapova, a diretora do Centro de Análise de Políticas de Sanções do Instituto de Estudos Internacionais; Abdulaziz Shabani, o pesquisador do Centro de Estudos Políticos e Estratégicos de Riad; Mostafa Ahmed, o especialista em segurança regional do Centro de Pesquisa Al Habtoor; e Xu Wenhong, o subsecretário-geral do Centro Uma Faixa, Uma Rota da Academia de Ciências Sociais da China.

Marcos Caramuru, o ex-diretor-executivo do Banco Mundial e o membro do Conselho Internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), ao se referir às perspectivas de criação de uma moeda comum do BRICS, disse que, para incentivar o uso de moedas nacionais no comércio, é necessário pensar em criar um ativo semelhante aos DES (Direitos Especiais de Saque).

Para o palestrante, a "ideia de transformar essa moeda em uma moeda do BRICS é mais complicada. Serão necessárias muito mais pesquisas, mas não há nada de impossível em tratar, pelo menos em caráter experimental, da ideia de um acordo que crie ativos semelhantes aos DES que possam ser usados como referência no comércio entre os países do BRICS".

Sergei Afontsev, o membro correspondente da Academia de Ciências da Rússia e o diretor do Departamento de Economia Mundial da Faculdade de Economia da Universidade Lomonosov de Moscou, falou sobre a resiliência da economia russa: "Apesar dos percalços muito significativos decorrentes das sanções e dos benefícios perdidos com as mesmas, a economia russa está funcionando muito bem sob sanções."

"No ano passado, pela primeira vez em muitos anos, a economia russa cresceu mais rápido do que a economia global. Essa tendência continuará este ano. Isso não só vai contra as expectativas dos promotores das sanções como também inverte a lógica de suas ações em 180 graus".

Para o especialista, a escolha de parceiros para a cooperação econômica internacional é um direito soberano dos Estados soberanos.

Ekaterina Arapova, a diretora do Centro de Análise de Políticas de Sanções do Instituto de Estudos Internacionais, salientou que as condições geopolíticas atuais contribuem para a formação na Rússia de recursos para a resiliência e desenvolvimento da economia nacional sob sanções externas.

Segundo Ekaterina Arapova, a integração dos sistemas de pagamento nacionais entre os países membros do BRICS é uma das ferramentas de adaptação aos riscos de sanções e um fator importante de estabilização da situação, apesar de certas limitações. Ela enfatizou ser importante que bancos russos tenham filiais em jurisdições amigas, citando, a esse respeito, a experiência do VTB Bank em Xangai.

Abdulaziz Shabani, o pesquisador do Centro de Estudos Políticos e Estratégicos de Riad, disse que o "BRICS está desafiando o domínio tradicional das instituições ocidentais" ao criar uma plataforma para expressar seus interesses em voz alta.

Entre as principais realizações da aliança, o especialista destacou a criação do Banco de Desenvolvimento do BRICS, que torna possível a concretização de projetos em economias emergentes e representa uma alternativa às instituições ocidentais tradicionais.

Ainda conforme com o especialista, a adesão da Arábia Saudita ao BRICS põe em evidência as mudanças ocorridas na situação geopolítica no mercado de energia e mostra que as economias emergentes estão começando a desempenhar um papel cada vez mais importante no mundo.

Mostafa Ahmed, o especialista em segurança regional do Centro de Pesquisa Al Habtoor, disse, por seu turno, que os países de todo o mundo devem buscar uma maior flexibilidade nas relações comerciais para acabar com sua dependência excessiva do dólar.

"Até agora, o dólar americano tem sido a moeda dominante nas transações internacionais, mas hoje estamos avançando passo a passo para fazer com que os governos, inclusive os do Oriente Médio, optem por criar mecanismos bilaterais que nos permitam encontrar soluções alternativas no comércio internacional. É bem possível que, no futuro, esses acordos bilaterais venham a se tornar uma base para a criação de uma nova moeda comum, inclusive no formato do BRICS".

Xu Wenhong, o subsecretário-geral do Centro Uma Faixa, Uma Rota da Academia de Ciências Sociais da China, falou sobre a situação atual do sistema financeiro internacional.

Segundo o responsável, a atual infraestrutura financeira, em especial o sistema de pagamentos SWIFT, não atende, há muito tempo, aos interesses da maioria dos países do mundo e se transformou em um instrumento de pressão política e econômica.

"Nas últimas décadas, os países ocidentais, com os EUA à frente, têm promovido seu próprio sistema de liquidação financeira no seu próprio interesse. Agora, com o envolvimento ativo dos fatores políticos no comércio internacional, as instituições financeiras internacionais começaram a ser usadas também como arma de luta política", assinalou.

 

Fonte: BBC News Brasil/Sputnik Brasil

 

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