Um
ano sem Bruno Pereira: conheça o personagem por trás do ícone
“O Bruno era muito mais que o Vale do Javari”. É
dessa forma que Keit Pinheiro descreve o ex-companheiro com quem compartilhou a
vida de casal por oito anos. Um ano após a morte violenta do indigenista Bruno
da Cunha Araújo Pereira no Vale do Javari, o Correio reconstitui a
trajetória de vida dele. O jornal ouviu pessoas próximas, amigos e conhecidos
para descrever quem era o brasileiro que se tornou um ícone da causa indigenista.
Os relatos indicam uma vida marcada por amizades, descobertas e companheirismo
que ele despertava nas pessoas. O Correio procurou familiares de Bruno Pereira,
bem como a viúva dele, Beatriz Matos. Eles não quiseram dar entrevista.
Sonhador, destemido, brincalhão, alegre, humilde e
justo são algumas das qualidades lembradas por amigos que conviveram com Bruno
e compartilhar da alegria contagiante que ele transmitia por onde passava. Aos
22 anos, o jovem nascido no Recife desistiu da graduação em jornalismo na
Universidade Federal de Pernambuco. Já naquele ano, em 2002, Bruno manifestava
interesse em desvendar os mistérios da Floresta Amazônica e trabalhar com povos
indígenas.
Alto e corpulento, os amigos chamavam Bruno de
“Brunão” e “grandão”. Contam que ele tinha espírito aventureiro, com interesse
por experiências marcantes. Mas também gostava de momentos marcados pela
simplicidade, como pescar com os amigos, participar de uma boa roda de conversa
e apreciar um caldo de peixe. Bruno Pereira era tido como uma pessoa
encantadora. Por onde passava, fazia amizades. A presença dele era sempre
disputada nos almoços de domingo. “Aonde o Bruno chegava, era aquela festa. Ele
dava aquela gargalhada dele gostosa; todo mundo ficava encantado por ele. Ele
tinha muitas histórias apesar de ser tão novo na época,” relembra Keit
Pinheiro.
- Os anos em Balbina
Em janeiro de 2004, aos 24 anos, Bruno chegou à
cidade amazonense de Presidente Figueiredo, a 126 quilômetros de Manaus.
Pretendia trabalhar com reflorestamento nas áreas degradadas pela usina
hidrelétrica de Balbina, inaugurada em 1983 no rio Amazonas. O alagamento
provocado pela construção da usina provocou grave impacto socioambiental na
região.
O trabalho de reflorestar as áreas degradadas da
região aproximou ainda mais Bruno da natureza e dos povos da floresta. Ivan
Soler, funcionário da Funai, conheceu Bruno em 2006. Os dois fizeram um curso
sobre coleta e beneficiamento de sementes florestais nativas. Depois disso, a
sintonia e a amizade foram crescendo. Os dois se tornaram parceiros de trilhas,
escalavam árvores juntos e contemplavam a beleza da Amazônia. “Depois das
primeiras aventuras que vivemos juntos naquelas matas lindas do rio Uatumã, eu
passei a frequentar a casa dele, levando outros amigos para escalar árvores.
Ele era brincalhão, transmitia confiança, e uma contagiante alegria pela vida.
Isso é cativante numa pessoa”, lembra Ivan.
Assim que chegou a Balbina, Bruno não perdeu tempo.
Logo se aproximou dos moradores e criou relações de amizade. Extrovertido e
comunicativo, aprofundou laços a ponto de criar quase uma relação familiar com
a inspetora educacional Rosa Maria Xavier. “Ele amava esse lugar”, conta a
moradora de Balbina. e mesmo sendo jovem já tinha um espírito de liderança.
“A gente se deu muito bem depois que a gente passou
a se conhecer. Parecia que minha família estava conectada com ele. Os mesmos
pensamentos que ele tinha sobre a nossa Amazônia, sobre os índios nós tínhamos
também. Era uma pessoa fora de série. Ele era grandão, tinha uma risadona. Com
o pessoal daqui, ele se envolveu logo. Parece que ele não se encontrava mais em
outro lugar do mundo se não fosse aqui”, conta Rosa Maria, testemunhando o
espírito de liderança que marcava a personalidade do aprendiz de indigenista.
Os almoços de final de semana na casa da Rosa eram
servidos com peixe assado, caldo e cerveja gelada. O clima vinha repleto de
boas conversas, humor alegre e contagiante. Rosa Maria lembra das vezes em que
Bruno chegava perto dela e pedia para ela preparar um caldo de peixe do jeito
que só ela sabia fazer. “A gente tem uma casinha de fogão de lenha aqui atrás,
do lado e a gente chamava ele. Ele dormia aqui em casa, era uma coisa muito
bacana, e ele já trazia o peixe para eu fazer o caldo para ele, porque ele
gostava muito”, descreve a amiga.
“Quando chegava, aqui falava: ‘Comadre, faz um caldo
para mim’. E eu fazia”, conta Rosa, sorrindo. Emocionada e saudosa de Bruno,
ela relata que ela e o amigo gostavam de conversar sobre comida. “Eu sou daqui
dessa região e gosto muito de cozinhar, e ele gostava muito de peixe. Ele
gostava de sardinha assada, e caldo, ele amava. Tudo pra ele tinha que ter
peixe no meio”, detalha. “Ele sempre comprava tucunaré e trazia para eu fazer.
O tempo que a gente conviveu com ele foi muito bom”, diz.
- A chegada de Maria Luísa
Foi em Balbina, em 2004, que Bruno conheceu a
primeira companheira, Keit. Aos 24 anos, ele já compartilhava o desejo de ser
um porta-voz dos indígenas. Após um ano da união do casal, Bruno recebeu a
notícia de que seria pai de Maria Luísa. Antes de a criança vir ao mundo, ele
começou a nutrir um amor profundo pela filha. Escreveu uma carta sobre as
emoções que estava sentido e as expectativas da paternidade. “Bruno chorou
muito quando descobriu que ia ser pai. Ele fez uma carta para o filho, quando
ele escreveu a gente não sabia o sexo do bebê. Ele ficou muito emocionado”,
conta Keit.
A admiração que tinha pela natureza e pela Amazônia
foi desde cedo passada para a filha. “O Bruno pegava a Maria e saía com ela na
rua. Quando ela tinha dois anos de idade levava ela para o mato e já mostrava
as árvores para ela, que fruto que ela dava. Ele sempre ensinou para ela esse
amor pela natureza pelo meio ambiente e ela é muito consciente disso. Eles eram
apaixonados um pelo outro”, conta a mãe de Maria Luísa.
Reconhecido como pai carinhoso e amoroso, Bruno se
preocupava, segundo os amigos, com o futuro da filha. Mas desejava que ela
também se aventurasse na vida. Ivan Soler lembra a vez que flagrou o amigo
mostrando os equipamentos de escalagem para a pequena. “Era um pai fora da
curva, protetor, mas incentivava a filha a experimentar a vida. Nas nossas
conversas, fazia planos para incentivá-la a se aventurar também”, conta.
“Para ele [a filha] era a vida dele, ele dava muito
amor para ela, tinha muito cuidado e se preocupava demais com o futuro dela”,
conta Rosa.
Nos dias livres Bruno gostava de pescar e passar o
tempo com a família e com os amigos na prainha de Balbina. Keit relembra os
momentos. “A gente ia para lá no final de semana com amigos ou só nós dois com
a Maria. Às vezes a gente recebia os amigos em casa, a gente fazia uma galinha
caipira que ele gostava, gostava de peixe. Ele pescava com os amigos, era
espetacular”, descreve.
Ø O nascimento de um indigenista
No primeiro encontro com o gerente da hidrelétrica
de Balbina, Roland Céspedes, Bruno falou de seus anseios de trabalhar com os
indígenas Waimiri-Atroari da região. Céspedes explicou a Bruno que a
Eletronorte apenas financiava o programa que era coordenado pela Funai. “Ele
quis saber de que forma poderia contribuir na área ambiental e aceitou a vaga
para trabalhar com reflorestamento nas áreas degradadas pela construção da
Usina”, relata Céspedes.
O antigo colega de trabalho conta que Bruno se
animou ao saber que iria comandar o reflorestamento da região. “Ele falou:
‘Essa área me interessa mais, trabalhar nessa área de reflorestamento’”. “Ele
preferiu ir para a área de reflorestamento onde ele ia basicamente comandar. Eu
já tinha feito um plano de ação, mostrei tudo que tínhamos que fazer e levei
ele para conhecer a área e a equipe contratada”, descreve Céspedes.
Bruno propôs que a comunidade participasse do
processo de reflorestamento. Fez questão de conversar com a população e
explicar como ela poderia cooperar. “Ele fez o trabalho de ir até as
comunidades ribeirinhas. Passou a conversar com a comunidade, conseguiu
negociar. Nós começamos a comprar as sementes dos ribeirinhos. Foi uma forma de
ajudá-los. Bruno se tornou um dos meus braços direitos no reflorestamento”,
comenta Céspedes.
Reconhecido pelos amigos por ser inteligente e
autodidata, Bruno sempre buscou ampliar seus conhecimentos sobre os povos
indígenas. Aprendia a língua deles, lia publicações que abordassem a vida dos
povos da floresta, como artigos da National Geographic e os
trabalhos de indigenistas notáveis como Sydney Possuelo. “Era uma pessoa
incansável na sua busca por conhecimentos que pudessem respaldar sua atuação em
campo”, conta o amigo Ivan.
Os sete anos que passou em Balbina foram
fundamentais para o desenvolvimento profissional e pessoal de Bruno. Mas ele
queria mais. Sonhava trabalhar com os povos da floresta.
Em 2010, o curso do rio da vida de Bruno tomou outro
rumo. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) estava com um concurso
aberto para técnico indigenista. O aficcionado pernambucano não poderia perder
a oportunidade. Dedicou-se com afinco para passar no exame. “Ele meteu a cara.
Acordava 3, 4 horas da manhã para estudar. Eu ajudava porque o sonho dele
acabou sendo o meu também”, conta Keith Pinheiro.
Bruno escolheu ir para Atalaia do Norte, a mais de
1.100 quilômetros de Manaus, e atuar na Terra Indígena do Vale do Javari.
Depois de passar na prova escrita, ele participou de uma seleção final. Foi
nesse momento que conheceu Beto Marubo, líder indígena do Vale do Javari e
representante do povo Marubo.
Com 8,5 milhões de hectares, o Javari é a segunda
maior terra indígena demarcada do Brasil. Nesse local, do tamanho de Santa
Catarina, além dos parentes de Beto, vivem povos kanamari, korubos, matis, matsés
e tsohom-djapás. Há ainda grupos de línguas e costumes desconhecidos mesmo
pelos indígenas em contato com a sociedade nacional.
Beto trabalhava na Funai e tinha a função de
selecionar os candidatos que iriam atuar em campo. Bruno conseguiu o inesperado.
Pelos critérios cobrados na seleção, ele não tinha o perfil para atuar no mato.
“Eu tinha uma função na Funai com atribuição de fazer essa seleção dos técnicos
indigenistas que atuariam em campo. Eu coordenava esse setor de fiscalização da
Funai e a maioria dos candidatos foram reprovados”, recorda Marubo. “Ele foi o
primeiro a estar fora dos nossos planos porque ele era grandão, gordo e alto,
não tinha o menor perfil para atuar no mato”, acrescenta.
A vocação de Bruno para ser escudeiro dos povos da
floresta foi logo percebida pelo pai de Beto Marubo. O chefe do clã dos marubos
viu que o candidato seria um líder. “Meu pai chegou em mim e falou: ‘Olha, nem
um desses candidatos têm perfil para atuar no mato’. Eu perguntei como ele
sabia, e ele me respondeu que estava conversando com eles”, descreve Beto
Marubo. “Mas meu pai nem sequer falava português. Falou que viu o Bruno e que
ele tinha uma alma bonita e que valia a pena escolher ele”, conta o amigo do
indigenista.
Não houve arrependimentos na escolha. Beto entregou
para todos os candidatos relatórios técnicos e materiais que abordavam detalhes
sobre os povos indígenas do Vale do Javari. “Na metade da segunda semana, o
Bruno já estava me fazendo questionamentos técnicos. Aquilo me chamou atenção.
Ele leu mesmo, estudava dia e noite o material. Depois de 15 dias, ele já tinha
lido tudo, feito anotações”, relata o integrante do povo marubo.
- A trajetória na Funai
Com a entrada para a Funai, Bruno passou a ter uma
nova dimensão da floresta Amazônica. Começou a traçar um caminho com os povos
originários. “Foi ali que a gente se aproximou. Não tem como passar 15 dias no
mato e não ter uma aproximação com a pessoa. Você vai entendendo o sonho dela,
do que ela gosta. Você vê a alma da pessoa porque a floresta é um lugar
inóspito, onde você está vulnerável. Você está numa exigência física e
psicológica extrema”, afirma Marubo.
Os 10 anos que Bruno trabalhou na Funai foram
marcados por muito trabalho, mas também conflitos. Houve problemas
administrativos, tensões, desafios institucionais e obstáculos governamentais.
Com sua obstinação peculiar, Bruno entendia os desafios como missões a serem
cumpridas. Dentro da Funai, os colegas mais próximos consideravam-no
estratégico, informado, aberto ao diálogo, democrático, competente, articulado
e companheiro de lutas.
Iltercley Chagas, servidor da Funai, começou a
trabalhar com Bruno em 2014 e lembrou da atuação do indigenista em campo. “Era
exigente e de fato um indigenista nato. Tinha mais obrigações como indigenista,
eu sentia isso, do que como servidor público. A tal ponto de pedir licença e
perceber que a questão indígena estava, de certa forma, muito sucateada pelo
Estado”, analisa. “Bruno tinha contato com delegados da polícia, Ibama,
Ministério Público. Conseguia dialogar, articular, era muito articulado”, diz.
Em 2019 o Brasil sob Bolsonaro vivia um contexto de
completa destruição ambiental e de desmonte das instituições indígenas e
ambientais — Funai, Ibama, ICMBio. O acirramento entre o aparelho estatal e as
comunidades indígenas tornava-se crescente. “Era a Funai contra os índios.
Bruno se posicionava muito veemente com relação ao Estado. Como dizia um colega
meu, o chefe dele eram os índios. Não era o governo. No nosso trabalho, a gente
incorpora isso”, explica Iltercley.
Na época Bruno era responsável pela Coordenação
Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. Ele foi
exonerado do cargo em outubro de 2019, 15 dias depois de comandar uma série de
ações de combate ao garimpo ilegal em terras ianomâmis. A exoneração foi
assinada pelo então secretário-executivo de Sergio Moro no Ministério da
Justiça, Luiz Pontel, e pelo presidente da Funai, o delegado Marcelo Augusto
Xavier. Foi o estopim para Bruno pedir licença do órgão.
“Ele estava como chefe de índios isolados, estava
muito empolgado. Fazia parte da vida dele, ele queria acompanhar as ações em
campo. Bruno coordenou uma das maiores ações de combate ao garimpo no Vale do
Javari junto com as forças especiais da Polícia Federal e o Ibama, destruíram
umas 40 dragas. Ele estava coordenando duas operações ao mesmo tempo, uma nos
ianomâmis e outra no Vale do Javari. Mas quando ele estava voltando da
operação, disse que o governo Bolsonaro ia tirá-lo da Funai”, conta Beto
Marubo.
Ø Como era a vida de Bruno na floresta com indígenas isolados
Bruno Pereira se especializou nas técnicas de
contato com indígenas usadas durante as incursões na mata. Passou uma temporada
em Rondônia, com o indigenista Rieli Franciscato, considerado um dos principais
especialistas na área. Franciscato morreu em setembro de 2020, atingido por uma
flecha de indígenas isolados no estado.
“A Funai parou as expedições em 2000. O Bruno fez
mais de 10 expedições quando ele saiu de Rondônia. Aprendeu muita coisa com o
Rieli. É complexo montar uma expedição: exige meses de estudo, topografia, a
parte dos rios, a logística. Tem que ter um comando. E ele coordenou sem nenhum
problema”, relata Beto Marubo.
Depois de pedir licença da Funai, Bruno buscou
outras formas de dar continuidade à defesa dos povos isolados. Foi convidado a
trabalhar com a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari),
organização que atua na defesa dos direitos coletivos dos povos indígenas do
Vale do Javari. O ex-servidor da Funai criou a Equipe de Vigilância da Univaja
(EVU). “Ele passou a ser ligado à Univaja e fez parte da equipe técnica. A EVU
foi criada em um contexto em que o Estado era negacionista. Inclusive o nome da
unidade foi ideia do Bruno”, explica Marubo.
- Há um ano, o crime que calou uma voz indigenista
Em de junho de 2022, no Dia Mundial do Meio
Ambiente, a missão do indigenista Bruno na defesa dos povos indígenas e na luta
contra o garimpo ilegal foi interrompida. Ele foi brutalmente assassinado junto
com o jornalista inglês Dom Phillips no trajeto entre a comunidade ribeirinha
São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte, no extremo oeste do Amazonas. Bruno
viajaria até a Terra Indígena Araribóia no Maranhão para promover um
intercâmbio entre os defensores dos dois territórios. A ideia era de que os
Guardiões da Floresta Guajajara treinassem os parentes amazonenses do Javari.
Os índios daquela região, além de ameaçados pela invasão do território, ainda
enfrentam a pesca ilegal e o narcotráfico na tríplice fronteira com Peru e
Colômbia.
Bruno vinha recebendo ameaças de morte por conta do
trabalho que realizava junto às comunidades nativas do Vale do Javari. “O Bruno
foi muito forte. A palavra que o define é Justiça. Bruno era muito justo. Ele
dizia para a gente que a missão dele não tinha acabado, que ele precisava
concluir a missão dele, que era pelos índios. Ele falava que os índios
precisavam dele”, conta Keit, emocionada.
“A gente se sentiu abandonado pelo Estado, sempre
faltaram recursos lá na ponta. O Bruno resolveu meter a cara e seguir em frente
assim mesmo. Foi uma atitude louvável, mas temerária. Nunca nos sentimos
seguros exercendo nossas funções. Quem pagou o pato foi o Bruno, mas poderia
ter sido qualquer um de nós. Passamos tantas e tantas vezes pilotando nossas
embarcações, de dia ou de noite, por esse mesmo local onde ele foi morto com o
Dom”, lamenta o servidor da Funai e amigo de Bruno, Ivan Soler.
Fonte: Correio Braziliense

Nenhum comentário:
Postar um comentário