Transição
energética vai demandar uma política de educação planetária
A partir da posse da nova gestão federal, em 2023,
o Brasil passou a investir fortemente em uma agenda ambiental de destaque internacional, ao menos no discurso. No que tange à descarbonização, no âmbito
dos compromissos globais de combate às mudanças climáticas, o Ministério de Minas e Energia anunciou, somente nas últimas
semanas, diversos programas de estímulo aos biocombustíveis, notadamente
o RenovaBio e o incentivo ao etanol, além de projetos para colocar o
país na liderança da geração de energia renovável – com enfoque em fontes solar
e eólica. Com efeito, a fatia da oferta energética brasileira fornecida por
estas modalidades vem crescendo: pela primeira vez em 12 anos, o primeiro
trimestre deste ano registrou mais de 90% de energia produzida a partir de
fontes renováveis em um crescimento de 3,3 gigawatts até abril de 2023.
Em que pesem decisões importantes e celebradas, como
a negativa do Ibama para a exploração de petróleo e gás da foz do rio Amazonas e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato
Grosso para a construção de Pequenas Centrais
Hidrelétricas (PCHs) que impactariam as bacias do Pantanal, contudo,
o país tem em andamento projetos com alto potencial nocivo ao meio ambiente. Um
exemplo notório é a intenção de implantar uma usina nuclear às margens do
rio São Francisco, região conhecida pela escassez hídrica e já impactada
por barragens anteriores para a geração de energia hidrelétrica, além de
projetos de energia eólica offshore (em alto mar) que ainda
carecem de estudos mais aprofundados.
Conversamos com exclusividade com Célio Bermann, professor associado do Instituto de Energia e
Ambiente da Universidade de São Paulo e coordenador
do Grupo de Pesquisa em Governança Energética, que destacou a fragilidade
da transição energética brasileira — que ele chama de diversificação
energética, dadas as características da oferta de energia em países do sul
global, em geral menos dependentes dos combustíveis fósseis. “A gente precisa
tomar cuidado para não ir no sentido contrário do esforço internacional
apoiados nessa presunção de que, como nós temos uma contribuição das energias
renováveis na nossa oferta energética bastante acentuada em relação ao contexto
internacional, isso nos permitiria avançar na utilização dos combustíveis
fósseis ou da energia nuclear”, alerta Bermann.
O pesquisador salienta ainda que
o Brasil e o mundo apenas conquistarão a sustentabilidade energética
se investirem em educação para reduzir o consumo e em políticas de eficiência
energética, uma vez que não é possível atender a demanda, nos níveis atuais,
com fontes alternativas. Além disso, ele lembra: energia renovável, grande
estrela brasileira, não significa energia limpa, e casos de
significativo impacto ambiental, como a hidrelétrica de Belo Monte, podem se
repetir se não mudarmos os rumos da política energética. Há rumores, segundo ele,
da retomada da intenção de se construir usinas hidrelétricas no Rio
Tapajós, região ocupada pela etnia Munduruku, a ser financiada pelo capital chinês. “É uma
situação que eu espero que não aconteça. Mas se já houve um acordo de que o
capital chinês está aberto a construir usinas hidrelétricas no Brasil, vai
ter muita coisa ainda para a gente acompanhar.”
<<<< Eis a entrevista.
·
No artigo “Energy transition or energy diversification? Critical thoughts from Argentina and Brazil” o senhor e demais
pesquisadores fazem uma análise bastante crítica sobre a transição energética
brasileira e argentina, dizendo que ela deveria, em realidade, ser chamada de
diversificação energética. Por quê?
A percepção que hoje se tem da necessidade de uma
transição energética foi construída com base na extrema dependência de vários
países, principalmente do chamado norte global, considerados ou identificados
como desenvolvidos, em relação aos combustíveis fósseis e as emissões de gases de efeito estufa,
notadamente dióxido de carbono e metano. [Estes gases são]
identificados como um grande problema referente às mudanças climáticas, cujos
efeitos afetam, ainda que principalmente as economias de países menos
desenvolvidos, também nações como Itália, Alemanha, Estados
Unidos e Inglaterra, por exemplo. Para evitarmos os eventos extremos,
é preciso limitar as emissões derivadas dos combustíveis fósseis, e daí se
cunhou o termo transição energética, ou seja, a necessidade de uma transição
energética significa reduzir essa extrema dependência que hoje o mundo tem em
relação aos combustíveis fósseis, notadamente carvão e petróleo,
mas também gás natural, de forma que sejam evitadas as consequências do
seu ponto de vista ambiental.
Isso define a ideia da necessidade de que todo o
planeta assuma ou passe por um processo de transição energética no
sentido de uma descarbonização. Não vamos discutir aqui as queimadas e a perda
da cobertura florestal, que também é mais um ingrediente para o
desequilíbrio climático e que, no caso do Brasil, exerce uma
responsabilidade maior em função do desmatamento nos seus biomas florestados.
Mas a dependência dos combustíveis fósseis, embora seja generalizada, tem
níveis diferentes entre os países do norte e do sul global. Então esse estudo
que foi publicado na revista Energy Policy faz uma referência
a duas economias latino-americanas, Brasil e Argentina,
mostrando que nesses países – e aí sim a possibilidade de se generalizar para
todo o continente latino-americano e para o chamado sul global,
envolvendo Índia e África – a inserção das chamadas fontes
renováveis não é um processo de transição no sentido cunhado pelos países do
norte global, mas de diversificação energética, na medida em que passam a
participar de forma mais efetiva fontes energéticas que até então eram
marginais, como a energia solar e a energia eólica, além das biomassas.
·
Até porque a participação de energia renovável já é
muito maior na América Latina em relação aos países do norte global, certo?
Nós já temos uma oferta de energia em que,
diferentemente do contexto internacional, a presença das energias renováveis é
bastante significativa. Mas a gente tem percebido, ao longo do tempo, que a
presença das chamadas energias não renováveis, como os combustíveis
fósseis e a energia nuclear, têm aparecido nos últimos anos com uma presença
mais significativa do que ela já teve em épocas passadas. A gente precisa tomar
cuidado para não ir no sentido contrário do esforço internacional apoiados nessa
presunção de que, como nós temos uma contribuição das energias renováveis na
nossa oferta energética bastante acentuada em relação ao contexto
internacional, isso nos permitiria avançar na utilização dos combustíveis
fósseis ou da energia nuclear.
Eu desconheço formalmente qual é a posição do atual
governo, mas o governo anterior falava que até 2040 seriam instalados 10
gigawatts de energia nuclear no país, com a perspectiva de incluir Angra 3 e uma usina que já tem o projeto, em
princípio, definido de 6,6 gigawatts no médio São Francisco. Esta região
na beira do Rio São Francisco é ocupada por uma população que tinha
sido anteriormente expulsa das suas terras para dar lugar ao reservatório
da usina
hidrelétrica Luiz Gonzaga. Essa usina deslocou uma
população e foi ocupar uma área que agora é objeto de um projeto dessa
envergadura numa região de restrição hídrica – a produção de energia nuclear
demanda água para refrigerar o reator e depois lança essa água de volta para o
mar ou para o rio cinco graus mais aquecida, o que altera toda a biota. Além
disso, a água deixa de estar disponível para a agricultura, irrigação e
abastecimento. Também não há um programa de destino dos resíduos, do
chamado lixo nuclear. Então, o que é energia dita limpa em relação à
energia nuclear? E qual é a posição do atual governo em relação a esses
projetos?
Outro ponto de atenção é a hidroeletricidade.
Acompanhamos o problema de Belo Monte, no Rio Xingu, e o que
aconteceu com as comunidades ribeirinhas e com a população indígena. Uma das
coisas que eu soube que o Lula foi fazer na China, dentro dos
projetos que foram ativados, foi a usina de São Luís do Tapajós, que é uma
usina no Rio Tapajós, uma região ocupada pela
etnia Munduruku [projeto iniciado em 2009, arquivado pelo Ibama,
cujos estudos foram retomados já no governo Bolsonaro]. É uma
situação que eu espero que não aconteça. Mas se já houve um acordo de que o
capital chinês está aberto a construir usinas hidrelétricas no Brasil, vai
ter muita coisa ainda para a gente acompanhar.
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A Petrobras vem anunciando novos investimentos de
longo prazo em energias renováveis como a eólica offshore, mas também existe um
indicativo do governo em ampliar o investimento em novas refinarias, por
exemplo. Este movimento é condizente com uma política energética sustentável?
O último plano decenal de energia, por exemplo,
prevê que até 2031 a gente pode ter um aumento na produção diária de petróleo
no Brasil, principalmente em função do pré-sal, dos atuais 3,4 milhões de
barris por dia para 5,2 milhões de barris. Naturalmente isso não quer dizer que
esses 5,2 milhões de barris por dia seriam queimados em território
nacional, mas a perspectiva de aumento acentuado na produção de
petróleo e também de gás natural indica uma definição de política
energética que encontra na exportação de petróleo e de gás
natural um expediente para alavancar recursos.
Esse esforço de aumento da produção de petróleo e de
gás está presente em todas as grandes empresas petrolíferas. Todas elas falam
da preocupação em diminuir as emissões de gases de efeito estufa na
sua operação, algumas falam em investir no hidrogênio ou em energias
renováveis de uma forma geral, mas todas elas preveem aumento
da produção de petróleo, busca por novas reservas e aproveitamento de
hidrocarbonetos não convencionais.
A Petrobras prevê um investimento no plano
estratégico de 2023-2027 de 4,4 bilhões de dólares para o que ela chama de
iniciativas de baixo carbono. Mas o volume total de investimento previsto pela
empresa é de 78 bilhões de dólares, ou seja, estamos falando de apenas 6% da
previsão de investimento que iria para iniciativas de baixo carbono. Isso dá
uma boa ideia da lógica petrolífera que ainda preside o mundo: há
muito mais a intenção de um greenwashing do que efetivamente
contribuir de forma célere para a transição energética ou para a diversificação energética, como é o nosso
caso.
·
O Brasil historicamente vem investindo em energia
hidrelétrica, com impactos ambientais importantes, como a já citada Usina de
Belo Monte. Paralelamente, temos projetos de energia nuclear preocupantes,
afora a sensibilidade envolvida em grandes projetos de energia eólica onshore e
offshore. Neste sentido, podemos entender que energia renovável não é
necessariamente sustentável. Como o senhor avalia o atual caminho trilhado pelo
Brasil em termos de políticas energéticas?
O termo “energia limpa”, usado inclusive
pela ONU (Organização das Nações Unidas) no Objetivo do Desenvolvimento Sustentável número 7, não existe sob o ponto de vista do rigor acadêmico. Toda energia é
produto do processo de conversão físico-química, com consequências ambientais.
Energias renováveis, ao contrário
dos combustíveis fósseis, podem ser obtidas no curto prazo e não no tempo
geológico que os combustíveis fósseis exigem. E aí a energia hidráulica é considerada
uma energia renovável porque faz parte do ciclo da água, bem
como outras fontes, entre as quais a solar, a energia dos ventos, das biomassas, a geotérmica e, mais recentemente no debate internacional,
o hidrogênio verde. Mas nem toda a energia
renovável pode ser considerada sustentável. Essa é uma denominação
que, às vezes, aparece misturada nas referências bibliográficas ou nos
documentos oficiais.
No caso brasileiro, quando a Empresa de
Pesquisa Energética ou o Ministério de Minas e
Energia apresentam seus dados em relação ao que se considera energia
renovável, aparece lá lenha e carvão vegetal como biomassas renováveis, como se
toda lenha consumida e todo carvão vegetal produzido no Brasil fossem
originários de florestas plantadas, produção de pinus e eucalipto. Isso não é
verdade. Nós temos ainda de forma considerável a lenha e carvão
vegetal originários de mata primária, da floresta amazônica. E
isso, em função das carvoarias que existem na região amazônica hoje,
mostra que há uma dificuldade de a gente ter essa referência do quanto que é
originário de reflorestamento e o quanto que é mata nativa, muitas vezes
derrubada de forma ilegal. Então, essa questão da renovabilidade da nossa
oferta de energia também tem esses problemas na forma como os dados são
apresentados.
Então, não existe energia limpa. A
única energia limpa é aquela que não é consumida. Aquela que é
resultante de uma mudança cultural de hábitos, tanto em países do norte como do
sul global, para reduzir a necessidade de utilização de energia para a
satisfação das necessidades. Também as políticas de eficiência energética,
com equipamentos mais eficientes ou com formas de utilização que não envolvam a
[mesma] quantidade necessária de energia.
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O governo brasileiro também vem anunciando o
fortalecimento de programas de incentivo ao etanol, por exemplo, e aos
biocombustíveis. Como o senhor avalia este movimento em prol de combustíveis
automotores menos poluentes?
Apesar dos esforços de transição energética, a
dependência de combustíveis fósseis no mundo vai passar do limiar que
hoje está definido em vários países de descarbonização até o ano
2050. É impossível descarbonizar a economia internacional até 2050. Além disso, a possibilidade de substituição, na escala
internacional, da gasolina automotiva pelo etanol, seja
de cana de açúcar, milho, beterraba ou de outras fontes, é
extremamente difícil, porque, segundo um estudo que eu e meu grupo de pesquisa
elaboramos com dados que estavam disponíveis em 2018, o percentual de
substituição a partir da produção de etanol, das mais variadas origens,
não chegava a 5% do total de gasolina consumida. Ainda, uma área
ocupada na plantação de monoculturas de cana-de-açúcar,
de milho ou de beterraba levantavam a questão do conflito
“terra para alimento ou para energia”, “terra para satisfazer 2 bilhões de
pessoas que passam fome no mundo ou para em torno de 1,4 bilhão de veículos que
hoje rodam em todo o planeta”. Este é um debate energético importante de ser
levado em consideração também.
O biodiesel que hoje é utilizado para
mobilidade, produzido não só no Brasil, mas também
na Argentina e nos Estados Unidos, por exemplo, usando
matérias-primas como óleo de dendê, óleos de
girassol ou banha animal, não chega a substituir 2% do consumo
de óleo diesel no mundo. Em termos de combustíveis para veículos, nós
estamos muito aquém da possibilidade física de alcançar de forma mais
significativa a transição energética. Durante o evento Rio+20, em 2012, eu publiquei um trabalho em que
demonstrava que a perspectiva de substituir o óleo diesel, na época, pelo
biodiesel, demandaria a ocupação de uma terra que superaria a terra
arável disponível para agricultura, da forma como a FAO (Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura) entende. Então, a gente está numa escala em que
dificilmente a transição ou a diversificação energética no Brasil vai
ser alcançada, senão com a redução significativa da demanda de energia. Não
vamos simplesmente substituir por fontes renováveis, não vai ser possível
fisicamente fazer isso. E isso exige uma política que não é apenas energética,
não é apenas industrial, mas é uma política que envolve educação planetária.
·
O que isso significa, na prática?
A gente está hoje muito preocupado com a
inteligência artificial e com a submissão tecnológica que os habitantes do
planeta Terra têm em relação aos aparelhos, como os celulares… A
preocupação maior deve ser hoje também com a mudança de costumes, de hábitos,
de forma a se aprender a reduzir a necessidade de ter energia. Eu não estou
querendo dizer com isso que a gente vai voltar à Idade das Pedras e
que a eletricidade não vai ser mais necessária, não é isso. Mas há sim a
necessidade de se reduzir de forma substancial o comércio internacional de
alimentos, por exemplo, e que a satisfação alimentar seja encontrada localmente
e não mais a partir da vinda de produtos de outras regiões ou de outros países
para satisfazer esta demanda.
Eu vou dar o exemplo do Brasil, também de uma
pesquisa que foi feita pelo meu Grupo de Pesquisa em Governança Energética. O que foi apurado? A melancia encontrada num supermercado
no Recife, em Pernambuco, tinha vindo de caminhão do Ceagesp,
em São Paulo, tendo sido produzida no meio do [rio] São Francisco.
Essa lógica se estende aos grãos, à carne, ao frango e toda a comercialização
de alimentos, via de regra por combustíveis fósseis. Então, se queremos reduzir
as emissões, uma das pré-condições é reduzir ou extinguir essa lógica que
transforma o alimento em alimento mais combustível e mais emissões.
E isso passa por políticas públicas, não é,
professor? Porque senão você passa essa responsabilidade para o consumidor que,
afinal de contas, está apenas indo ao supermercado comprar seu alimento.
Sim, o consumidor quer consumir a melancia e fica
exasperado pelo preço, porque, afinal de contas, não é só o preço de produção
da melancia, que era o preço de venda do agricultor lá no médio São
Francisco, mas precisou agregar todo o custo do transporte, que envolve não só
o consumo de energia, mas toda a manutenção dos caminhões, os pedágios que são
cobrados para poder chegar até São Paulo e depois despachar para o Recife.
·
Voltando ao artigo “Energy transition or energy
diversification? Critical thoughts from Argentina and Brazil“, o grupo defende
a necessidade de uma distribuição justa de energia e também da participação das
comunidades na definição das políticas energéticas. De que forma uma política
energética mais participativa e não tão verticalizada como é hoje poderia
contribuir para um cenário mais adequado às nossas necessidades?
Essa é uma questão absolutamente importante: a
chamada descentralização energética. No Brasil, a Constituição
Federal define que é a União que tem a atribuição de legislar
sobre energia, uma pré-condição que impede a desejável descentralização, uma
vez que é na legislação que você define as possibilidades de iniciativas
de Estados e municípios em termos de produção, gestão e
descentralização energética. Apesar desta restrição, que precisaria ser
alterada via Proposta de Emenda Constitucional (PEC), um quadro mais
recente abriu a possibilidade de irmos nessa direção. Por exemplo, a Resolução Normativa da ANEEL número 482
de 2012 [hoje atualizada pela ANEEL a partir de novas resoluções]
normatizou a micro e minigeração distribuída de energia elétrica no nosso país
e instituiu o sistema de compensação de energia elétrica que hoje alimenta o
aumento da micro e da minigeração, o que faz com que a potência hoje de usinas
fotovoltaicas no Brasil seja da ordem de 8,6 gigawatts e as eólicas
de 25,7 gigawatts — a eólica representando quase 14% da oferta de energia e a
solar fotovoltaica 4,5% da oferta, segundo os dados mais recentes
do SIGA (Sistema de Informações de Geração da ANEEL). Então, a
possibilidade de se investir no telhado e produzir a sua própria energia ganhou
força e possibilitou esse aumento da participação da geração distribuída na
oferta de energia, com todas as consequências benéficas que ela traz para o
país.
Fonte: Entrevista com Célio Bermann, em ((o))eco

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