Sociologia:
Como entender um mundo movediço
A Sociologia como afirmação, ou
como interrogação. Esses foram os motes das falas presidenciais de
1962 e 1987 em congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia, separadas por
um quarto de século de inatividade da SBS durante o período ditatorial. A
questão que se põe agora é se essa alternativa responde às atuais necessidades
e exigências intelectuais de nosso campo de estudos. Quando Florestan Fernandes
fez a sua exposição em 1962, ele estava realmente preocupado com a questão da
Sociologia como ciência, ou seja, da Sociologia como capaz de dizer à sociedade
coisas importantes e, sobretudo, bem fundadas a seu respeito, que ela não
percebe espontaneamente e que vão além do senso comum. Desde logo ele estava
preocupado com os fundamentos daquilo que a Sociologia tinha para dizer. E
nesse ponto básico sua posição era inequívoca. A Sociologia tem voz própria e
relevante na exata medida em que se firme e por extensão se afirme como
ciência, capaz de oferecer à sociedade algo que só ela seria capaz de fazer:
conhecimento metodicamente construído. Tendo em vista o quadro muito amplo em
que se movia, ele mostrou que já pressentia que os problemas que cercavam a
atividade científica rigorosa iriam se acentuar mais à frente. E fazia isso
movido por embates diretos nos quais se envolveu. Florestan participou
fortemente na campanha em defesa da escola pública, e com isso enfrentou muito
do que era o pensamento não só conservador como reacionário em meados do século
passado. E, no plano propriamente das Ciências Sociais, entrou em polêmica com
as posições em outro quadrante do espectro político, de teor
nacional-desenvolvimentista sustentadas pelo ISEB, em especial com o sociólogo
Guerreiro Ramos, um grande interlocutor que defendia uma posição que Florestan
não podia aceitar. Para Guerreiro, seria necessário amenizar um pouco as
exigências rigorosas do método em nome dos limites que o nível de
desenvolvimento da sociedade podia impor ao uso de instrumentos e de
organização da pesquisa dispendiosos e com exigências elevadas na formação.
Florestan não aceitava isso, e se empenhou numa defesa da ciência em seus
termos mais avançados, numa posição intransigente em nome do conhecimento
rigoroso, em aberto combate a qualquer concessão nessa área. De certo modo, ele
invertia a concepção de Guerreiro, que nas condições que via à sua volta se
preocupava mais com tornar o tratamento científico dos problemas sociais capaz
de produzir resultados de aplicação mais imediata na sociedade do que com os
padrões de método alcançados em centros de pesquisa mais avançados. Para ele
era o contrário. Quanto mais dificuldades as condições da sociedade impunham à
produção de conhecimento científico, maior teria que ser a prática rigorosa das
exigências do método, pois do contrário somente se abriria espaço para as mais
variadas formas de desqualificação da ciência em nome de modalidades
irracionalistas de explicação do mundo. Para Florestan a resposta era clara: a
Sociologia como afirmação, como firme posição favorável à ciência mais avançada
em contraste às tendências opostas que ele conhecera de perto. Havia um sentido
de urgência em sua fala, uma advertência da necessidade de mobilizar a ciência
na tarefa de consolidação e avanço na sociedade de perfil democrático que, em
1962, parecia receptiva. A despeito disso, ele percebia os sinais de
vulnerabilidade e ameaças na sociedade, como aquelas que se materializariam em
1964.
Entretanto, há uma nítida inversão nas
circunstâncias que exigiam atenção em 1962 e 1987. Em 1962 o Brasil, no auge do
processo desenvolvimentista na presidência Juscelino Kubitschek, vivia o ponto
alto do período democrático pós-Vargas, para em seguida entrar na
contracorrente que levaria ao golpe de 1964 e ao fechamento autoritário em
1968. Em contraste, 25 anos depois entrava-se em novo período de abertura
política pós-ditatorial e caminhava-se rumo à Constituinte de 1988, sem as
nuvens no horizonte anteriormente perceptíveis para Florestan. Parecia
possível, de certo modo, considerar cumprida a tarefa da afirmação da
Sociologia, que soube aproveitar os traços paradoxais do regime, quando ele
associava a repressão política e cultural ao apoio a mecanismos de fomento. Tal
política se voltava para as pesquisa em todas as áreas mediante a expansão da
pós-graduação e a consolidação de áreas da pesquisa em ciência e tecnologia,
sem no entanto fechar o terreno das ciências sociais. E estas revelaram
insuspeitada capacidade de organização e de atuação em suas entidades
representativas, culminando na criação da ANPOCS em 1977. Isso permitia chegar
a 1987 com a atenção voltada para a definição das exigências e condições para o
avanço da pesquisa numa ciência social que se via como digna desse nome.
Quando essa nova situação se apresentou, uma questão
parecia muito forte. Foi ela que se apresentou como lema do Congresso
Brasileiro de Sociologia naquele momento. A questão era a seguinte: admitamos
que a Sociologia demonstra, sim, capacidade de afirmar-se como ciência. Dados
os desafios que ela enfrenta no momento presente, como definir seu perfil? Uma
Sociologia ou muitas? São várias ou é uma só? Naquela oportunidade, um discípulo
de Florestan torceu o lema da “Sociologia como afirmação” para convertê-lo em
“Sociologia como interrogação” nos novos tempos que se abriam, com todas as
suas incógnitas. Este último termo, por sinal, permite caracterizar bem a
diferença de visões envolvida, quando lança incerteza na posição
apaixonadamente (iluminista, nos termos da fala de 1987) comprometida com a
razão e o método. Agora, passados mais 35 anos, a referência aos novos tempos
que se abriam adquire um certo travo amargo. Contudo, a correta mescla de
intransigência afirmativa e cautela interrogativa permite ir além disso, que,
bem feitas as contas, é mais propriamente um problema sociológico. Nenhuma
ironia nisso: trata-se de assinalar que a referência é uma situação que exige
interpretação e acompanhamento em seu percurso.
Naquela ocasião, havia um forte impulso no sentido
de mostrar que caberia à Sociologia fazer frente a uma multiplicidade de
questões que exigia uma certa diversificação. E por isso mesmo caberia a ela
especializar-se internamente e tratar de maneira apropriada questões relativas
a dimensões diferentes da sociedade. Foi mesmo oportuno propor dessa maneira a
questão, pois, como foi bem lembrado por Elide em sua fala, isso ajudou um
pouco a esclarecer aspectos da sociedade que seriam relevantes para os debates
constituintes um ano depois. Importante era que se estava entrando em um
período iluminado por algo como uma euforia democrática, uma grande energia
dirigida para tarefas de reconstrução nacional que se desenhavam à frente. A
palavra de ordem não era, como anteriormente, assegurar o rigor científico para
bem executar tarefas de índole democrática, mas de dar diretamente primazia ao
conteúdo democrático. Novamente temos uma inversão. Se em 1962 o conteúdo
democrático do trabalho científico era pressuposto e o que importava era
assegurar qualidade de ciência rigorosa na pesquisa, no ocaso do regime
autoritário desenhava-se uma tendência no sentido de sobrepor as exigências do
momento, definidas como democráticas, ao cuidado com os fundamentos da
pesquisa. Na sua formulação extrema, embora frequente, a questão dominante era
a de “ir ao concreto”. Vamos dar a voz ao povo, aos de alguma maneira sufocados
pelas formas de dominação. Esse “dar a voz” soava como suficiente para
caracterizar um problema a partir do senso comum, como que dispensando a
ciência de usar seus recursos próprios para melhor formulá-lo.
Esse movimento acabou perdendo fôlego e outras
questões viriam a instalar-se no debate, diretamente centradas no problema do
melhor enfoque teórico na Sociologia. E nesse período o que acabou prevalecendo
não foi tanto a questão de se se tratava de uma Sociologia em bloco ou de
várias, mas sim os modos diferentes pelos quais se podia equacionar a sua
questão fundamental. Havia no ar uma espécie de busca de diferenciação de
perspectivas e um pouco também de luta pela hegemonia teórica no campo
sociológico. Quem produziu o melhor modelo? E é por isso que durante alguns
anos se buscou constantemente novas “viradas” sociológicas, ou seja, novos
enfoques metodológicos e teóricos que concentrassem a atenção naqueles aspectos
que se revelassem relevantes, como ocorrera na “virada linguística”. Não é o
caso de discutir agora essa variedade de enfoques; a ideia não era tanto de várias
sociologias, mas sim de várias formas de adesão da Sociologia como um todo a
determinados modos de compreender o mundo.
De certo modo, essa busca de novas âncoras
conceituais e temáticas evoca ao seu modo as questões propostas pela
alternativa entre uma posição decididamente afirmativa da capacidade da
Sociologia para produzir com bases sólidas conhecimento relevante e a posição
que se pergunta sobre a capacidade da Sociologia de se manter íntegra diante de
novos desafios. Tratava-se da combinação entre a crescente complexidade do
mundo e o desenvolvimento das outras áreas das ciências sociais, que não se
limitam a serem parceiras, mas tendem a se expandir vigorosamente e, no limite,
colocar a Sociologia na condição de mero participante na tarefa de prover a
sociedade de conhecimento. A interrogação tinha, portanto, um alvo preciso.
Estava em jogo a especificidade do conhecimento que cabia a ela produzir por
seus meios. Nem a atenção às exigências do método científico, que podia
produzir rigor enquanto reduzia a capacidade de resposta a questões emergentes,
nem a multiplicação de sociologias com contornos diferenciados sujeita ao risco
de fragmentação tinham como fazer frente aos novos desafios. Ciência unitária e
compacta ou ciência múltipla, uma Sociologia ou várias, como interrogava o tema
do congresso de 1987. As duas coisas se combinam e demandam novas formulações
do problema central.
A Sociologia não enfrentou adequadamente essa
questão até o momento. Mas o que ela tem que enfrentar? Para início de conversa,
o que quero dizer é que a Sociologia se encontra agora diante de uma ordem de
desafios que ela não tem como enfrentar pensando em si própria, pensando na sua
organização interna em busca de alguma forma de aperfeiçoamento intrínseco.
Claro que ela tem que se aperfeiçoar o tempo todo, mas não é esse o grande
tema. É que o desafio da nova situação do mundo é forte demais para a
Sociologia sozinha conseguir dar alguma resposta.
Ela tem que urgentemente conformar e realizar algo
que ela não tem feito de maneira satisfatória, que é a interlocução. E não
estou falando somente da interlocução com a própria sociedade, com as questões
que ela oferece (isso, na realidade, sempre se tentou fazer); mas interlocução
com outras áreas de conhecimento. Sozinha, a Sociologia não dará conta disso.
Ela tem que se articular no interior das ciências sociais e para além delas,
nas diversas modalidades de busca de conhecimento nas Humanidades e, por que
não, fora delas. Sem se converter em interlocutora capaz de outras áreas de
conhecimento, ela ficará inerme, se não for simplesmente naufragar. A palavra
de ordem, então, é impor-se com interlocutor qualificado no cenário científico.
E interlocução significa mais do que buscar respostas em outro campo. É ser
capaz de criar uma situação que mova o parceiro a ir além das meras respostas
previsíveis e leve ele mesmo a formular novas questões em busca do essencial,
que é conceber novos problemas. Em suma: interlocução não é mera conversa ou
consulta, é um confronto no qual os dois lados devem revelar-se capazes de
promover mutuamente avanços no conhecimento. Nessas circunstâncias, ela tem que
fazer uma coisa fundamental: ser ela própria – quer dizer, reforçar-se
internamente – e ao mesmo tempo ser mais do que ela, abrir-se para fora, não de
modo subalterno e também não como tentativa de hegemonia, mas como parceiro
qualificado.
Eu diria que depois da Sociologia como afirmação e
como interrogação, o momento presente é o da Sociologia como interlocução.
Interlocução não só com o mundo, mas com as diversas áreas do conhecimento e da
criação, sem exceção e sempre respeitando a exigência básica do rigor. Sem
isso, nós falaremos trivialidades. Agora, o que se pode esperar dessa
Sociologia? E o que lhe é próprio? Para poder ser interlocutora, ela tem que
saber muito bem o que lhe é próprio, qual o seu campo de conhecimento. E em que
consiste ele? Quero sugerir aqui que existe uma formulação muito precisa
daquilo que vem a ser propriamente a Sociologia, da perspectiva do seu objeto
e, por extensão, dos seus problemas específicos. Afirma o mestre Octavio Ianni
que a Sociologia trata das formas de sociabilidade e do jogo das forças
sociais. Isso é a Sociologia. Isso só ela sabe fazer articuladamente. É uma
formulação de clareza e concisão inigualáveis.
As formas e o jogo, o cenário e a dinâmica da coisa.
Captar isso representa um avanço enorme, que demanda atenção literalmente
redobrada. Por um lado, temos as grandes formas de organização, naquilo que
fornece a amarração do conjunto. Pelo outro, encontramos o movimento fino,
aquilo que ocorre nas entrelinhas da sociedade, o aparentemente insignificante
que, no entanto, dá o tom do conjunto. Não se trata de ressuscitar o desgastado
tema do macro e do micro. Não está em causa diretamente o objeto e sim o modo
de seu conhecimento, que não se resume nas (indispensáveis) questões de método,
e requer a formação e exercício de todo um modo de pensar, atento e ágil,
sempre pronto a ver o mundo e reconhecer os possíveis parceiros no esforço de
conhecê-lo. Ao lado da visão em escala panorâmica das estruturas comparece a
sensibilidade para aquilo que, emprestando termos consagrados em obras
clássicas, seriam as “formas elementares da sociabilidade”, sem as quais o
grande arcabouço das instituições fica vazio, assim como a efervescência (outra
inspiração clássica) criativa no interior da sociedade também não pode
dissipar-se sem mais.
Para avançar nesse caminho, temos uma primeira
exigência de método: escapar do meramente linear, da ânsia do acesso direto às
coisas, que é a contrapartida de buscar resolver tudo por suas próprias forças,
ao invés de cultivar suas próprias forças para melhor conectar-se a outras.
Entidades incansavelmente movediças como a sociedade exigem antes de mais nada
mobilidade intelectual para captar padrões finos e fugidios e, num segundo e
decisivo passo, decifrar o modo como essa presença vibrante revela mais do que
esconde aquilo que confere sentido ao conjunto maior, ele próprio com contornos
fugidios. Para enfrentar tarefa dessa ordem não há como mover-se sozinho. É
preciso ganhar certeza de sua própria integridade e força interna para falar
com clareza e fazer o interlocutor responder de modo que sustente o diálogo.
Não é a complementaridade na margem própria ao estilo interdisciplinar que está
em jogo e nem mesmo a criação de híbridos como já foi o caso da Sociobiologia,
senão o diálogo em termos iguais entre parceiros situados em campos diferentes.
Isso só é possível mediante a formulação de questões de interesse para ambas as
partes. Talvez um modelo atenuado desse intercâmbio, mais tênue porque os
parceiros são muito próximos, seja dado pela corrente de forças representada
pelo intercâmbio entre conhecimento social e conhecimento político efetuado na
constituição, ainda em curso, de uma Sociologia Política, que, consolidada,
representará notável avanço no conhecimento da sociedade.
Conclui-se que está na hora de aproximar a afirmação
e a interrogação mediante o esforço para associar as duas na arte da
interlocução. Do contrário não se realiza o passo mais importante, que é
escolha do interlocutor. Claro que isso envolve uma mudança de enfoque,
passa-se da rígida objetividade à plástica intersubjetividade no tratamento dos
fatos. Esse intercâmbio pode ser fecundo, mas não facilita em nada o trabalho
em cada campo. Pelo contrário, aumenta muito as exigências de método, além de
envolver novas demandas na formação e na prática profissional dos
pesquisadores. Como se vê, defender a condição de interlocutor científico para
a Sociologia não é coisa simples, é de alto risco. Mas é coisa a ser seriamente
considerada.
Fonte: Por Gabriel Cohn, na coluna da BVPS
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