Luis Nassif: Minhas
histórias com Ives Gandra, o jurista do artigo 142
Conheci
Ives Gandra da Silva Martins no meu início de carreira de jornalismo econômico,
lá pelos idos dos anos 70. Na época ele se apresentava como advogado
tributarista, dando uns pitacos em temas constitucionais. Mas, quando ia
entrevistá-lo inevitavelmente o conteúdo saía de seus sócios, um advogado de
nome inglês, muito didático para explicar temas tributários, e Celso Bastos,
para temas constitucionais. Ives impressionava apenas pelos modos educados.
Tempos
depois fui para o Jornal da Tarde. Por lá, e pela casa dos Mesquita, Ives era o
pau para toda obra em temas jurídicos. E também na política da categoria, como
presidente do Instituto dos Advogados do Brasil. Era muito bem relacionado,
falava com Ministros das cortes superiores, mas não era um advogado vitorioso,
ou defensor de grandes causas.
Conheci-o
de perto quando resolvi denunciar o Plano Cruzado. Recebi a dica de Luiz Carlos
Mendonça de Barros, durante um almoço, de que o então Consultor Geral Saulo
Ramos havia preparado um decreto que reinstituía a indústria da liquidação
extrajudicial.
A
indústria consistia em um processo de liquidação de instituições financeiras
quebradas, pelo qual os recursos colocados pelo Estado eram congelados e os
ativos das companhias corrigidos. Foi criado pelo Ministro Mário Henrique
Simonsen ainda no governo Geisel e deu margem a muitos escândalos.
Mais
tarde, em 1985, o então senador Paulo Brossard deu um parecer para o BNH (Banco
Nacional da Habitação) – que acabou recebendo seu nome – acabando com a jogada.
O parecer de Saulo ajudou o BNH a revogar o entendimento do parecer Brossard e
beneficiava companhias quebradas, como o Independência Decred e a Delfim.
Saí
do almoço alvoroçado, fui até um coquetel onde estava o presidente do Banco
Central, Fernão Bracher, indaguei-lhe sobre o tema. Disse que nada sabia, mas
que o então Ministro Dilson Funaro dera ordens expressas para que fosse
retomada a correção sobre ativos e passivos das instituições em liquidação.
Cheguei
na Folha, onde já tinha a coluna Dinheiro Vivo, liguei para Fabio Konder
Comparato, para Samuel MacDowell Figueiredo e não os encontrei. Acabei ligando
para Ives, que concordou que o decreto anulava o parecer Brossard.
Até
então, não tinha a menor ideia sobre o que era o parecer Brossard. Mas o
importante é que ele concordava que o decreto de Saulo ressuscitava a indústria
da liquidação extrajudicial.
A
matéria saiu no sábado de manhã. Cheguei cedo ao jornal e o pampeiro estava
armado. Dilson Funaro estava no telefone, procurador Otávio Frias. Eu era o
responsável pelo fechamento da edição de domingo. Me passaram a ligação. Disse
que o governo estava em polvorosa. Até então, meu trabalho era visto como um
dos principais sustentáculos do Cruzado, a ponto de, certo dia, Saulo Ramos
ligar para minha casa em nome de Sarney, agradecendo o trabalho de
esclarecimento. Minha mãe estava na sala, ouviu a conversa e não gostou do meu
trabalho estar sendo elogiado pelo Sarney.
Agora,
me dizia Funaro, houve reunião de emergência no Palácio, com Funaro, a Casa
Civil, a Casa Militar, para saber o que fazer. Incumbiram Saulo Ramos de me
prestar as explicações.
Ele
tinha uma chácara em Cotia. Antes de sair, telefonei novamente a Ives para que
confirmasse todos os detalhes da explicação anterior. O repórter Pedro Salgado
estava me ajudando no trabalho.
Cheguei
na chácara, fui recebido por Saulo, extremamente simpático, que me deu suas
explicações. Anoteie para rechecar com Ives. Chegando na redação, Salgado veio
esbaforido falar comigo:
Ives
mijou para trás.
Como
assim?
Disse
que você não entendeu direito o que ele disse.
Curiosamente,
o mesmo argumento utilizado agora em relação às suas explicações sobre o artigo
142 da Constituição, que legitimaria uma intervenção militar.
Disse-lhe
que não era possível. Se fosse um tema econômico, eu poderia ter tirado
conclusões um tanto distintas da entrevista, nunca em relação ao parecer
Brossard, tema que até então eu ignorava.
Mas
não teve jeito. Se a principal fonte tirava o time de campo, só me restava
admitir a barriga. Escrevi eu próprio a manchete que praticamente liquidava com
minha carreira. No meio da empreitada, ainda me ligou Rubem Approbato Machado,
meu parceiro no histórico seminário que deflagrou a campanha dos mutuários
contra os reajustes do SFH. Percebi que não conhecia o assunto e queria, a
pedido do Ives, me dar uma saída honrosa.
Recusei.
Se errei, que pague.
Cheguei
em casa arrasado. A família tinha viajado para Bragança e eu estava sozinho. O
telefone toca e era Ives. Me explicou que Saulo ligou para ele e que, se eu não
fosse convencido, queria um parecer do IAB e da OAB endossando suas posições.
Dormi com a pulga atrás da orelha.
Acordo
de manhã com o jornalista José Carlos de Assis me telefonando.
Porque
você mudou a manchete? Sua primeira reportagem estava correta.
José
Carlos tinha sido autor da série de reportagens sobre o escândalo da Capemi –
que foi a pá de cal no regime militar por acabar com as lendas sobre a
honestidade da corporação. A Capemi – Caixa de Pecúlio da Família Militar – era
um plano de previdência montado e tocado por militares. Depois, tornou-se um
especialista em denunciar jogadas das liquidações extrajudiciais.
Contei
sobre o recuo de Ives e o telefonema dele. Nos meses seguintes entrei na maior
guerra da minha vida. Saulo era muito influente. Trabalhara com Frias na
extinta Excelsior e, depois, na transferência dos equipamentos para a Fundação
Casper Líbero. Tinha nas mãos os advogados da União, que podiam perder prazos
nas grandes ações do INSS. Tinha influência total sobre o governo Sarney, na
condição de pessoa central na condução de Sarney à presidência, depois da morte
de Tancredo Neves. Havia um grupo propugnando por Ulisses, mas Saulo foi mais
rápido.
Já
contei alguns detalhes dessa minha batalha contra ele e das inúmeras manobras
que deu posteriormente, com a legislação do Cruzado. Processou-me, ameaçou-me,
desistiu no final. Fui alvo de escutas de Romeu Tuma.
O
tempo passou, o governo Sarney desmanchou e Saulo desistiu da ação.
Tempos
depois eu tinha a Agência Dinheiro Vivo e publicávamos o Guia Jurídico, uma
newsletter semanal com temas jurídicos. Aí recebo um telefonema de Ives me
propondo um almoço de conciliação com Saulo para a semana seguinte. Disse que
aceitava.
Na
última página do Guia Jurídico havia sempre a narrativa de um caso jurídico.
Recebemos uma história saborosa. Saulo entrou em processo de divórcio e indicou
um advogado para sua ex-esposa. E o advogado atuou como advogado de Saulo.
O
Guia saiu publicado na 3a. O almoço seria na 4a. Na 3a mesmo Ives ligou-me
dizendo que Saulo estava indisposto e não poderia mais almoçar.
Sua
vida daria um livro, especialmente seu envolvimento com a herança de Baby
Pignatari, suas contas no exterior, em um período em que era proibido tirar
dinheiro do país. E, especialmente, sua reação virulenta quando o então
Ministro Mailson da Nóbrega pretendeu corrigir pela ORTN o valor de imóveis
adquiridos durante o exercício.
Por
coincidência, uma tia minha namorava seu contador. E meus primos contaram que
ele havia adquirido um imóvel caro e fixado seu valor pelo começo do ano, de
tal maneira que, no fim do ano, por efeito da inflação, ele poderia justificar
acréscimos de patrimônio.
Quando
veio o bloqueio de cruzados, no governo Collor, Ives Gandra deu um parecer para
a Folha, dizendo que ela poderia sacar os cruzados bloqueados. Eu já estava
fora do jornal, mas telefonei para Frias:
Seu
Frias, a lei é claríssima: não pode desbloquear.
O
Ives se baseou no material publicitário divulgado pela Fazenda.
A
sorte da Folha é que foi alvo da investida de um delegado valentão, o que
motivou um editorial corajoso do Otavinho, que acabou fortalecendo
substancialmente o jornal.
Mas
Saulo tinha seu lado humano. Como na lei que aprovou dando igualdade de
condições a filhos adotados em relação aos biológicos. De volta à Folha,
elogiei-o, mas ressalvando seus malfeitos. E recebi um recado emburrado dele:
até para me elogiar tem que me criticar.
Depois,
soube que na tragédia de um desembargador em Sâo Paulo, punido pela ditadura
pelo envolvimento de sua esposa com a guerrilha, ele continuou pagando as
prestações do BNH, para que não perdesse a casa.
Muitos
anos depois, minhas duas filhas caçulas foram estudar no Colégio Rio Branco. Um
dia chegam em casa com um recado de um coleguinha:
Ele
mandou falar que nosso pai fala mal do avô dele!
O
avô era o Ives. “Nosso pai” concordou.
Irmão de procurador de Curitiba é
denunciado por advocacia ilegal na Lava Jato
Os
conflitos de interesses envolvendo a indústria da delação premiada na Lava Jato
já é de conhecimento público. A novidade é que um dos réus da operação decidiu
denunciar o advogado Rodrigo Castor de Mattos, irmão do procurador de Curitiba
Diogo Castor de Mattos, por ter assumido sua defesa ao mesmo tempo em que o
familiar trabalhava do outro lado do balcão, na acusação.
O
GGN teve acesso à denúncia feita réu da Lava Jato à Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) do Paraná, colocando a credencial do advogado Rodrigo Castor de
Mattos em xeque. Seu irmão, Diogo Castor, recebeu pena de demissão do Conselho
Nacional do Ministério Público em outro caso.
Declarando-se
vítima de uma prisão ilegal e desnecessária na Lava Jato, o empresário Eduardo
Aparecido de Meira – usado pela força-tarefa para tentar atingir José Dirceu –
alegou que só percebeu que “não teve defesa” depois de mais de 288 dias de
prisão a mando de Sergio Moro.
Meira
foi preso na 30ª fase da Lava Jato, denominada Vício. Um dos alvos era a sua
empresa, a Construtora Credencial, que prestava consultoria a fornecedoras de
tubos à Petrobras. Segundo as investigações, a organização servia de fachada e
intermediava pagamento de propina em dois contratos com a estatal, beneficiando
José Dirceu.
Quando
foi preso e levado para Curitiba, Meira dispunha de advogados em São Paulo,
local onde residia. Segundo o relato exclusivo de Meira ao GGN, estes
defensores trouxeram para a defesa o advogado Rodrigo Castor de Mattos e sua
irmã, Analice Castor de Mattos, sob a justificava que “eram especialistas em
Sergio Moro“, ou seja, em acordos de delação.
Meira
afirmou que só descobriu que Rodrigo Castor de Mattos era irmão do procurador
Diogo Castor de Mattos, da Lava Jato, quando saiu da cadeia e teve acesso a
reportagens e documentos revelados na série de reportagens batizadas de Vaza
Jato. Ali, Meira sentiu que, na prática, “não teve defesa“.
• O contato com Castor de Mattos
Em
entrevista ao GGN, Meira contou como foi o primeiro encontro com Rodrigo Castor
de Mattos, ainda na prisão em Curitiba, e como sentiu-se pressionado a fazer um
acordo de delação premiada.
“Em
2016, um advogado chegou acompanhado do sócio no parlatório da Polícia Federal.
O nome desse advogado é Rodrigo Castor de Mattos. O sócio dele, Juliano Campelo
Prestes. Eles vieram me propor delação, se não, eu não sairia de lá. Essa era a
pressão, total psicológica, uma tortura configurada (…) porque preso
preventivamente não sabe quando vai sair“, relatou Meira.
Mesmo
sem concordar com a delação, Meira continuou sendo representado por Rodrigo
Castor de Mattos e outros advogados paulistas, em recursos levados aos
tribunais superiores, segundo apurou o GGN.
Só
após sair da prisão, Meira recolheu evidências de que o procurador Diogo Castor
de Mattos fora destacado pelo então chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol,
para cuidar da denúncia envolvendo a sua empresa, a Credencial.
“Quando
eu saí da cadeia, fiquei lendo tudo o que aconteceu na Lava Jato. Em uma noite,
encontrei um texto. Deltan Dallagnol estava designando as funções para os
procuradores. No final deste parágrafo, lá embaixo, escrito em meia linha que
foi cortada, está: Diogo assumiu Credencial – que era minha empresa. Tinham
dois irmãos: um me defendendo, e outro me atacando“, apontou.
• Representação na OAB-PR
Em
abril de 2022, Meira, por meio do advogado Túlio Denig Bandeira, apresentou uma
representação à Comissão de Fiscalização do Tribunal de Ética e Disciplina da
OAB do Paraná contra Rodrigo Castor de Mattos, “em razão do exercício ilegal da
profissão”.
No
documento, Meira argumenta que “além da infração ética, poderia, em regra, o
Dr. Rodrigo, incorrer também em crime de patrocínio infiel”, uma vez que, de
acordo com o artigo 133 da Carta Magna, “o advogado é indispensável à
administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, nos limites da lei”.
Um
ano depois, em abril de 2023, a defesa de Meira fez uma emenda à representação.
O GGN apurou que a ação na OAB-PR tramitam em sigilo. Procurada, a instituição
não ofereceu informações sobre o andamento processual.
• O futuro de Castor de Mattos
Pelas
regras, as turmas de Ética da OAB ficam encarregadas pelo processo, julgamentos
e sanções impostas. Cabem recursos até o limite do Conselho Federal.
Segundo
o jurista Arnobio Rocha, que foi vice-presidente da Comissão de Direitos
Humanos da OAB de São Paulo, “o tempo médio de tramitação destes processo é de
três anos, podendo variar para mais ou para menos”.
Rocha
explicou à reportagem que, em geral, a suspensão da inscrição de advogado só
acontece após três condenações pelo Tribunal de Ética. Contudo, a depender da
gravidade do caso, a credencial pode ser suspensa já na primeira condenação.
• Outro lado
Rodrigo
Castor de Mattos foi procurado pela reportagem para se manifestar sobre o caso,
mas não respondeu as solicitações.
Os
advogados paulistas que compartilharam a defesa de Eduardo Meira com o advogado
curitibano Rodrigo Castor de Mattos, irmão de um procurador da Lava Jato, não
quiseram comentar o assunto.
Fonte:
Jornal GGN
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