Foz
do Amazonas. O negacionismo e o desejo de viabilização da exploração de
petróleo
A recente negativa do Ibama para a emissão de
licenças de exploração de petróleo pela Petrobras na Foz do Rio Amazonas, fatia
oceânica da região, causou furor dentro do próprio governo Lula. Tanto nas
salas do Palácio do Planalto quanto nos corredores do Congresso, os próprios
aliados se insurgiram contra a medida. “Uma parte da base aliada, incluindo a
liderança do governo, enxerga o meio ambiente como moeda de troca com o
Congresso para avançar em outras pautas. Essa é uma visão ultrapassada e um
erro estratégico grave”, identifica o professor e pesquisador Ronaldo
Francini-Filho, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas
Unisinos – IHU.
A fala do pesquisador resume aquilo que pode ser o
grande desafio do governo Lula 3: equalizar a balança do desenvolvimento
econômico e social com o meio ambiente. O problema é que, ao que parece, o peso
maior sempre vai para o lado desenvolvimentista. A prova é que a exploração na
Foz do Amazonas está há tempos no radar dos que ainda têm sede de combustíveis
fósseis. “Das 95 tentativas anteriores de perfuração na região pela Petrobras,
em águas mais rasas da Foz do Amazonas, 27 foram abandonadas por acidente
mecânico, incluindo a perda de um navio sonda. O restante não encontrou óleo ou
apenas quantidades subcomerciais”, observa Ronaldo.
Este dado mostra que perfurar a região não é nada
fácil, mais difícil inclusive do que a exploração na região do pré-sal. Isso
requer cuidados extras com o meio ambiente, dada a dimensão da interferência
que esse empreendimento pode causar. “É importante ressaltar que a modelagem
apresentada pela Petrobras foi feita em uma escala espacial muito grosseira e
não permite uma avaliação adequada da área de abrangência de um potencial
vazamento. Isso inviabiliza qualquer avaliação confiável dos impactos
socioambientais do empreendimento”, dispara o pesquisador, que ainda lembra de
experiências passadas em que substâncias usadas na tentativa de contenção de
vazamentos de óleo causaram ainda mais danos ambientais.
Além disso, o negacionismo científico também age
sobre o tema, e o Grande Sistema Recifal Amazônico, um riquíssimo berço ainda
pouco estudado em termos de fauna e flora marinha, chega a ter sua existência
questionada. “O negacionismo está claramente relacionado com o desejo de
viabilização da exploração de petróleo. A existência ou não dos recifes não
está em discussão. É como não acreditar em vacinas. Até as empresas reconhecem
a existência dos recifes em seus estudos de impacto ambiental”, pontua Ronaldo.
Por fim, o professor analisa a necessidade de
efetivamente se tratar da conversão energética, concepção de fontes de energias
renováveis e de menor impacto ambiental. “Nosso cartão de crédito com o clima
já passou do limite. O que está em jogo é a segurança alimentar, o extermínio
de ecossistemas que fornecem serviços ecossistêmicos-chave, como os recifes de
corais, e nossa sobrevivência frente à intensificação das tempestades e da
elevação do nível dos mares”, sintetiza.
<<<<< Confira a entrevista.
• No que
consiste o projeto de exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas?
Ronaldo Francini-Filho – Existem 439 blocos em
diferentes fases (sob concessão, em oferta ou em estudo) na Margem Equatorial
como um todo, do Amapá ao Rio Grande do Norte. Só na Bacia Sedimentar do
Amazonas, popularmente chamada de “Foz do Amazonas”, são 271 blocos.
A Petrobras possui 12 blocos na Margem Equatorial,
quatro deles na Foz do Amazonas. O processo de licenciamento que recebeu a negativa
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis –
Ibama e gerou a polêmica recente é o FZA-M-59, no extremo oeste da Margem
Equatorial. Pretende-se extrair óleo de mais de 3.000 m de profundidade.
• Quais
os riscos da exploração de petróleo na região?
Ronaldo Francini-Filho – Existem diversos riscos
operacionais/logísticos, sociais e ambientais. Do ponto de vista ambiental, o
bloco FZA-M-59, em particular, está a menos de 40 km do Grande Sistema Recifal
Amazônico, que abarca diversas espécies ameaçadas de extinção e de interesse
econômico.
Além disso, toda a região da Bacia Amazônica é
margeada por extensos manguezais, onde são encontradas diversas Reservas
Extrativistas. Ironicamente, não existem Unidades de Conservação na parte
marinha, incluindo os recifes, os quais permanecem desprotegidos em sua
totalidade.
As Reservas Extrativistas na costa amazônica abrigam
populações tradicionais que dependem diretamente do uso de recursos marinhos e
costeiros para sua sobrevivência. A pesca regional é importante não apenas para
a subsistência, mas também em termos econômicos. Por exemplo, a cadeia
produtiva da pesca do pargo gerou mais de R$ 100 milhões apenas para Bragança
em 2019.
<<< Modelagem grosseira
É importante ressaltar que a modelagem apresentada
pela Petrobras foi feita em uma escala espacial muito grosseira e não permite
uma avaliação adequada da área de abrangência de um potencial vazamento. Isso
inviabiliza qualquer avaliação confiável dos impactos socioambientais do empreendimento.
Não está claro como ecossistemas sensíveis (recifes e manguezais), a pesca e as
comunidades extrativistas seriam afetadas.
As ferramentas de mitigação em caso de vazamento já
se mostraram inefetivas em outros casos no mundo. Os dispersantes de óleo
utilizados no acidente no Golfo do México, por exemplo, são tão tóxicos ou até
mais tóxicos do que o próprio óleo, causando danos severos a biota e problemas
de saúde humana. Eles fazem com que o óleo afunde, evitando que chegue até a
costa e recubra praias e manguezais. No entanto, ele acaba recobrindo os
ecossistemas que estão no fundo do mar, como os recifes.
As boias de contenção, outro tipo de ferramenta de
mitigação, já se mostraram ineficientes no passado, como no misterioso
vazamento de petróleo no Norte/Nordeste do Brasil em 2019. Isso em condições de
mar muito mais amenas do que as encontradas na Foz do Amazonas.
• O
senhor tem apontado que a região da foz do Amazonas é uma região de correntes
marinhas mais hostis do que nas regiões do pré-sal. Gostaria que detalhasse
esse apontamento, explicando o ecossistema da região.
Ronaldo Francini-Filho – A região da Foz do Amazonas
tem correntes superficiais extremamente fortes, de até quatro nós, e variação
de maré de até sete metros. Essa situação é bem mais hostil do que nas bacias
do pré-sal e apresenta desafios operacionais únicos. Das 95 tentativas
anteriores de perfuração na região pela Petrobras, em águas mais rasas da Foz
do Amazonas, 27 foram abandonadas por acidente mecânico, incluindo a perda de
um navio sonda. O restante não encontrou óleo ou apenas quantidades
subcomerciais.
O mesmo ocorreu na vizinha Guiana, onde a promessa
de jazidas enormes de petróleo não se confirmou e os projetos foram abandonados
pelas petroleiras. A exploração de petróleo está proibida na Guiana Francesa
até 2040.
Precisamos de alguma garantia de que as operações na
Margem Equatorial teriam capacidade de evitar acidentes e vazamentos,
considerando essa condição ambiental hostil. A liberação de uma licença para o
bloco FZA-M-59 será certamente sucedida por diversos outros pedidos de
exploração nos demais blocos ao longo da região.
• O que
é o Grande Sistema Recifal Amazônico e qual sua importância para a
biodiversidade local?
Ronaldo Francini-Filho – O Grande Sistema Recifal
Amazônico é um recife profundo típico (entre 50-220 metros de profundidade),
parecido com os recifes profundos em outras regiões do Brasil e do mundo. Estes
ambientes ainda são pouco explorados e contêm uma enorme quantidade de espécies
ainda desconhecidas pela ciência.
Os recifes amazônicos são particularmente
importantes pois servem de abrigo para espécies ameaçadas de extinção, como o
cherne-verdadeiro, e servem como um corredor de migração entre o Brasil e o
Caribe. Eles moldam os padrões de distribuição e evolução no Atlântico
ocidental.
Algumas espécies, como o pargo e o
cherne-verdadeiro, utilizam habitats costeiros, como manguezais e estuários,
como berçário e migram até os recifes profundos e afastados da costa para se
reproduzir. Portanto, existe uma interdependência entre estes ecossistemas, e
impactos nos recifes poderiam comprometer o ciclo de vida de espécies que
ocorrem também na costa. Além de sua importância ecológica, os recifes são
claramente importantes para as pescarias regionais.
• Há
alguns anos, chegou a circular a informação de que a existência de recifes
amazônicos era fake news. Gostaria que o senhor recuperasse esse episódio e
refletisse por que ainda ouvimos falar tão pouco dos recifes e da
biodiversidade marinha da região amazônica?
Ronaldo Francini-Filho – O negacionismo sobre os
recifes está enraizado em políticos e empresários diretamente interessados na
exploração de petróleo e conta com o apoio de alguns poucos cientistas que
sustentam os projetos de exploração. Os argumentos são primários e ignoram o
conhecimento científico básico. Chegaram a dizer que as imagens dos recifes,
obtidas por nosso grupo de cientistas, não eram verdadeiras (risos).
Com o avanço das discussões sobre o licenciamento da
exploração de petróleo, o negacionismo se intensificou e resolvemos publicar o
trabalho “O Grande Sistema Recifal Amazônico: um fato”. Temos evidências da
existência dos recifes desde a década de 1970.
O negacionismo está claramente relacionado com o
desejo de viabilização da exploração de petróleo. A existência ou não dos
recifes não está em discussão. É como não acreditar em vacinas. Até as empresas
reconhecem a existência dos recifes em seus estudos de impacto ambiental.
Além de um resumo publicado em anais de congresso,
não existem trabalhos científicos que contrariem a existência dos recifes,
apenas especulações na mídia e falas em eventos. Precisamos definitivamente de
ciência independente e de qualidade para a região. Conhecemos menos de 5% dos
recifes amazônicos, por exemplo.
Tragicamente, parte do pouco conhecimento disponível
vem dos estudos de impacto ambiental, os quais são cheios de falhas graves.
Estes estudos são financiados e encomendados pelas próprias empresas
responsáveis e interessadas nos empreendimentos potencialmente impactantes, o
que demonstra a necessidade urgente de estudos independentes.
• Em que
medida o desequilíbrio da ecologia marinha da Amazônia pode impactar a vida na
floresta (e vice-versa)?
Ronaldo Francini-Filho – Eu diria que a Floresta
Amazônica em si não sofreria impactos diretos da exploração deste bloco em
particular. No entanto, não podemos ignorar a importância dos manguezais e dos
recifes. Os recifes profundos são conhecidos como “Florestas Animais Marinhas”
(do inglês Marine Animal Forests). Portanto nossa maior preocupação neste caso
não é com a floresta terrestre, mas a marinha.
• Em que
medida essa insistência na exploração de petróleo na Foz do Amazonas pode ser
comparada com toda a excitação que causou a descoberta do pré-sal em 2007?
Passados 15 anos, como avalia a exploração feita no pré-sal?
Ronaldo Francini-Filho – O licenciamento do pré-sal
foi feito em um momento em que a legislação ambiental era muito mais
permissiva. Ele foi muito importante para o Brasil no aspecto econômico, mas
ainda temos contradições com relação ao uso dos recursos provenientes dos
royalties.
Por exemplo, Campos dos Goytacazes, no Rio de
Janeiro, recebeu mais de R$ 50 milhões em abril, mas tem 1/3 da população em
estado de miséria. Passados 15 anos, a transição energética e o combate às
mudanças climáticas são urgentes. Precisamos de planos mais concretos de
descomissionamento da energia baseada em combustíveis fósseis e do avanço das
matrizes de energia renovável.
• Em sua
opinião, qual deve ser o papel da Petrobras no movimento de abandono dos usos
das fontes de energia fóssil e na transição para usos de energias limpas?
Ronaldo Francini-Filho – A Petrobras é uma empresa
muito importante para a manutenção da soberania energética nacional e deve
demonstrar claramente a liderança no planejamento e implementação dos processos
de transição de nossa matriz energética. O Brasil e a Petrobras têm todas as
condições para inspirar e servir de modelo a todo o mundo neste quesito.
Por exemplo, as energias renováveis dependem de
diversos insumos minerais, como cobre, lítio, cobalto e terras raras. De onde
vamos obter estes elementos? Continuaremos com uma economia linear ou teremos
um incremento da reciclagem? Quais as regulamentações necessárias para a
expansão do mercado de energias renováveis no Brasil? Em minha opinião,
empresas como a Petrobras têm todas as condições de liderar estas discussões.
• Que
leitura o senhor faz dos últimos acontecimentos em que o Congresso tenta
desvertebrar a gestão ambiental do governo, especialmente no esvaziamento dos
ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas?
Ronaldo Francini-Filho – O Congresso está sabotando
o país e tendo uma visão imediatista e egoísta. Não existe futuro possível sem
respeito ao meio ambiente e os povos originários. Não é possível governar na
base da barganha com um Congresso conservador e que defende exclusivamente os
interesses do setor produtivo. Precisamos avançar com pautas importantes para o
país sem ser reféns dos interesses deste Congresso.
• E se há
resistências ao protagonismo da pauta ambiental no Congresso, há também dentro
do governo e na base aliada. Como analisa esse “fogo amigo”? O que revela sobre
os desafios do governo Lula 3?
Ronaldo Francini-Filho – O grande desafio do governo
Lula 3 é aprovar sua estrutura e planos de governo junto ao Congresso. Uma
parte da base aliada, incluindo a liderança do governo, enxerga o meio ambiente
como moeda de troca com o Congresso para avançar em outras pautas. Essa é uma
visão ultrapassada e um erro estratégico grave.
Precisamos mostrar para o mundo nossa preocupação
com o meio ambiente e os povos tradicionais/indígenas e nossa capacidade de
liderança no combate à urgência climática. Precisamos mobilizar a população
para pressionarmos o Congresso e avançarmos em todas as frentes prioritárias
para nosso povo, sem precisarmos escolher entre um fígado e um rim.
• Que
modelo de desenvolvimento econômico e social, efetivamente, está em jogo nesse
governo?
Ronaldo Francini-Filho – O avanço econômico e social
em um mundo que está à beira do colapso climático é o desafio de toda a
humanidade. Nosso cartão de crédito com o clima já passou do limite. O que está
em jogo é a segurança alimentar, o extermínio de ecossistemas que fornecem
serviços ecossistêmicos-chave, como os recifes de corais, e nossa sobrevivência
frente à intensificação das tempestades e da elevação do nível dos mares.
Precisamos definitivamente consolidar um modelo de desenvolvimento
socioeconômico que priorize a sustentabilidade e não o imediatismo.
• Belém,
no Pará, deve sediar a COP30. O que isso representa?
Ronaldo Francini-Filho – Isso representa o
reconhecimento internacional do Brasil como liderança no desenvolvimento
sustentável, direitos de povos tradicionais e indígenas e no combate à urgência
climática. Precisamos fazer a lição de casa e demonstrar nossa liderança, como
prometido pelo presidente Lula durante a campanha presidencial.
• Deseja
acrescentar algo?
Ronaldo Francini-Filho – Torço para que sejamos
inteligentes como país para encontrarmos os melhores caminhos políticos para o
crescimento econômico com sustentabilidade e justiça social.
Fonte: Entrevista
com Ronaldo Francini-Filho, para IHU

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