Estudo da
microbiota intestinal pode ajudar a desvendar doenças como depressão e
obesidade
É
um número quase impossível de imaginar: 100 trilhões. Muito mais que as
estrelas da Via Láctea ou a quantidade estimada de espécies de insetos no
mundo. Nesse universo de bactérias, pode estar a peça que falta para a
compreensão de doenças ainda desafiadoras, de depressão a fadiga crônica. Cada
vez mais estudos indicam que a microbiota intestinal, uma das mais populosas do
organismo humano, desempenha um papel em condições difíceis de tratar e também
tem potencial de, entre outras coisas, aumentar a longevidade.
A
importância dos micro-organismos que habitam o trato gastrointestinal é
reconhecida há muito tempo, mas só recentemente cientistas começaram a
desvendar a associação entre a composição da microbiota com um vasto rol de
enfermidades, incluindo obesidade, asma, alergia alimentar, doenças atópicas e
autoimunes. No ano passado, pesquisadores sugeriram, pela primeira vez, que
alguns sintomas do transtorno do espectro autista (TEA) têm relação com o
aumento de determinadas espécies e a redução de outras no intestino, o que desencadearia
inflamações no cérebro.
"Foi
apenas nos últimos 10 anos que se tornou possível para os ecologistas
microbianos contemplar uma descrição da microbiota em qualquer habitat. Agora,
novas tecnologias, como máquinas de sequenciamento genético, podem descrever
rapidamente as comunidades microbianas em termos de marcadores genéticos",
destaca a ecologista microbiana Carly Rosewarne, do órgão científico
australiano Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation.
"Um estudo recente, por exemplo, usou análise computacional para verificar
quantos e quais tipos de micróbios existem no intestino e descobriu que as
espécies bacterianas são ainda mais diversas do que se pensava
anteriormente", relata a especialista.
Distúrbios
nesse mundo diverso poderiam contribuir para a depressão, sugerem dois estudos
publicados, recentemente, na revista Nature Communications. Segundo os autores,
da Universidade de Amsterdã, na Holanda, trata-se "das evidências mais
extensas, até o momento, de uma relação entre a composição do microbioma e os
casos da doença". O conjunto de diferentes bactérias, vírus e leveduras
que habitam o organismo chega a desempenhar um papel nas diferentes taxas do
transtorno mental em grupos étnicos distintos, afirmam.
Na
pesquisa, foram avaliados dados de 3.211 participantes de um estudo ainda em
andamento, o Helius. Os sintomas depressivos dos pacientes foram associados a
um microbioma com bactérias menos diversas, no qual algumas espécies estão
sub-representadas. Esse fator de risco, inclusive, foi tão forte quanto outros
já conhecidos, como consumo de álcool e excesso de peso. Os resultados foram
validados em um estudo do centro de pesquisas Erasmo MC, também na Holanda.
Dessa vez, os pesquisadores utilizaram outro levantamento de base populacional,
com informações de mais de 23 mil indivíduos.
O
resultado confirmou a descoberta anterior e acrescentou a associação entre 12
grupos bacterianos e depressão. Segundo os autores, essas bactérias produzem
substâncias como glutamato, butirato, serotonina e ácido gama amino butírico
com função de neurotransmissores, os mensageiros químicos do cérebro
diretamente associados a transtornos mentais quando em desequilíbrio.
"Esses neurotransmissores são de grande relevância na depressão", diz
Edward Villeta, psiquiatra e professor da Universidade de Barcelona, na
Espanha.
• Dietas
O
médico ressalta que os estudos não estabeleceram uma relação de causa e efeito.
"Supõe-se que o estresse crônico produz inflamação, e que é isso que
altera a microbiota, mas também não sabemos se algumas das alterações são
compensatórias", explica. "Ainda é muito cedo para falar em
tratamentos. Por um lado, há indícios de que uma dieta balanceada — por
exemplo, a mediterrânea — pode melhorar a saúde mental, embora não seja um
tratamento adequado por si só para a depressão maior. Por outro lado, seria
prematuro e fantasioso considerar, hoje, o transplante fecal como alternativa
terapêutica."
Em
seu laboratório, John Cryan, vice-presidente de pesquisa e inovação da
Universidade de Cork, na Irlanda, estuda o impacto das dietas na saúde mental,
uma associação que seria explicada pelo efeito de determinados alimentos na
composição da microbiota. "Nosso estudo mais recente mostrou que comer
mais alimentos fermentados e fibras diariamente, por apenas quatro semanas,
teve um efeito significativo na redução do estresse percebido pelos
participantes", conta.
Segundo
o especialista em microbiota, uma explicação seria a relação entre o cérebro e
a flora intestinal, conhecida como eixo intestino-cérebro. "Ele faz com
que os dois órgãos estejam em constante comunicação, permitindo que funções
essenciais do corpo, como digestão e apetite, aconteçam. Isso também significa
que os centros emocionais e cognitivos do nosso cérebro estão intimamente
ligados ao nosso intestino."
Um
tratamento, seja de depressão ou de outra doença, com foco na microbiota não é
tão simples quanto parece, contudo. Se fosse assim, os probióticos seriam o
santo graal da medicina. Cryan diz que pensar nas pílulas ou pozinhos vendidos
nos mercados como solução para equilíbrio da flora intestinal é absurdo. Ele
ressalta que a ciência precisa se atualizar nesse campo e pesquisar as melhores
cepas indicadas para cada distúrbio específico. "Estamos agrupando-os como
se fossem o mesmo", alerta.
Fonte:
Correio Braziliense
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