domingo, 4 de junho de 2023

Energia renovável para quem está no escuro na Amazônia

Após quatro anos de retrocessos socioambientais, o primeiro semestre deste ano também tem sido marcado por discussões controversas na área. Uma delas é a volta da pressão para a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, área sensível ainda a ser investigada pela ciência. Essas perfurações podem causar um impacto negativo para quem vive na região amazônica e que ainda está à margem de serviços básicos do Estado. Ou seja, debate-se o investimento para explorar petróleo, uma das matrizes energéticas, mas viram-se as costas para o fato de ainda um milhão de moradores da região viverem literalmente no escuro.

Quase um milhão de pessoas em terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação ou assentamentos rurais estão sem acesso ao serviço público de energia elétrica e de qualidade dentro da Amazônia Legal. Enquanto se debate a extração de petróleo do mar, ação que exige investimento e tecnologia, 220 mil residências, escolas ou postos de saúde em terra seguem sem luz, segundo o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica na Amazônia Legal – Mais Luz para a Amazônia (MLA).

Em maio, o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) divulgou um estudo avaliando o que seria necessário para cumprir a meta de universalização do acesso público à energia elétrica proposta pelo MLA, empregando energia renovável. Segundo os dados, mais de três milhões de equipamentos – painéis, inversores e baterias – deveriam ser instalados para atendimento de um consumo mensal de 45 kWh, com baterias de íon-lítio para armazenamento da energia elétrica gerada. No cenário de consumo de 180 kWh/mês, utilizando baterias de chumbo-ácido, deveriam ser instalados 12 milhões de equipamentos.

Ao final da vida útil dos sistemas, o estudo estimou que serão produzidas entre 71 mil e 237 mil toneladas de resíduos decorrentes dos equipamentos a ser instalados. Apenas o consumo mensal de 180 kWh poderá gerar o que equivale a quase que o dobro das mais de três mil toneladas de resíduos eletrônicos coletados em todo o Brasil em 2021. Vale ressaltar que essa geração de resíduos e a quantidade de equipamentos estão subestimadas, pois o cálculo desconsidera alguns componentes, cabos elétricos e embalagens.

Somado a isso, a Política Nacional de Resíduos Sólidos favorece pontos de recebimento em áreas urbanas com maior densidade demográfica, infraestrutura de serviços e atividades econômicas desenvolvidas – e não em áreas isoladas. Infelizmente, a logística reversa para esses componentes é praticamente inexistente nos municípios da Amazônia Legal, onde somente 58 dos 808 oferecem o serviço. O que evidencia a falta de estrutura governamental e o baixo compromisso do setor privado para reduzir o impacto dos resíduos ao meio ambiente e à saúde humana.

Esse recorte, em números, do interior do país evidencia um problema histórico brasileiro: como se produz energia por aqui e a quem se destina? Ou seja, enquanto debate-se o emprego de recursos para extrair o petróleo do mar, as populações que vivem em harmonia com a preservação ambiental seguem à margem dos seus direitos como cidadãos.

A universalização do acesso ao serviço público de energia elétrica em regiões remotas da Amazônia é uma questão de desenvolvimento e exige um programa robusto de políticas públicas envolvendo os moradores, o Estado, a cadeia solar fotovoltaica e de armazenamento e organizações da sociedade civil. É essencial promover a inovação contínua, capacitação técnica e científica de profissionais locais. Também, estimular a entrada de novos participantes na cadeia de implementação desses sistemas remotos. 

No II Encontro Energia e Comunidades, realizado em maio na cidade de Belém (PA), lideranças da Amazônia brasileira, representantes de governos, do terceiro setor, pesquisadores e empresas debateram a universalização da energia elétrica para comunidades tradicionais. Como resultado, as cerca de 250 lideranças escreveram um documento com demandas e recomendações sobre como querem a energia elétrica em suas residências. “Nos deixa indignados a energia estar disponível para os invasores dos nossos territórios e não estar para nós que fazemos a proteção”, diz o documento.

É necessária uma política energética integrada, tanto para discutir a exploração de petróleo em uma área extremamente sensível, quanto para levar energia para quem está sem e já considerando reduzir os possíveis impactos dessa ação. Antes da chegada de qualquer empreendimento, as populações locais precisam e querem ser consultadas sobre o uso do território, visto que estão cansadas da exploração e destruição do meio onde vivem. Não se pode olhar para o mar de costas para o que há de mais rico no Brasil.

 

       Capitalismo extrativo. Por Henri Acselrad

 

As pressões exercidas pelas forças dominantes no Congresso brasileiro com vistas a esvaziar os campos de ação do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério do Meio Ambiente, pela aprovação do marco temporal e outras medidas favoráveis à apropriação de terras do país por grandes corporações, nos conduz a uma discussão mais detida sobre as implicações políticas do capitalismo extrativo implantado no Brasil.

A estratégia de inserção internacional subordinada de economias nacionais da periferia do capitalismo global tem se baseado na especialização produtiva em bens intensivos em recursos naturais, na apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativas e financeiras, mas também na submissão ecológica de sociedades periféricas ao capitalismo global. Um tal modelo de desenvolvimento capitalista vem se diferenciando do tradicional modelo da economia primário-exportadora por implicar uma subordinação não somente político-econômica, mas também financeira e ecológica aos centros decisórios do capitalismo global. Que tipo de implicações este tipo de capitalismo apresentaria para as formas de apropriação dos territórios nas economias periféricas?

A entrada de capitais rentistas na especulação com commodities amplia, por certo, os grupos de interesse envolvidos, ao menos indiretamente, na ocupação de espaços territoriais pelas atividades de produção de bens primários exportáveis. Além da demanda proveniente dos setores importadores, o ganho com a produção de commodities passou a motivar também detentores de novas e maiores massas de dinheiro. Podemos supor que essas massas não provoquem um aumento proporcional da demanda por commodities, mas, sim, que submetem esses mercados aos efeitos indiretos da ação especulativa via preços – que se descolam da simples relação oferta e demanda – e da transferência de parte dos processos decisórios sobre atividades de extração para as bolsas de mercadorias e futuros.[i]

Este novo formato da inserção internacional da economia latinoamericana é acompanhado, por outro lado, por movimentos de transferência das atividades produtivas com elevados impactos socioambientais para economias periféricas. O critério ecológico, que passou a ser admitido, em meados dos anos 1980 – vide Relatório Brundtland – como parte das condições de legitimação na concorrência intercapitalista, veio, por caminhos transversos, atualizar o valor estratégico da América Latina para o capitalismo mundial[ii]. A inserção na economia mundial apresentou, a partir de então, “a novidade de uma submissão ecológica que implica a oferta de zonas de sacrifício, assim como de capacidade de suporte e serviços ambientais”[iii] dos territórios do Sul aos interesses das corporações transnacionais, configurando o que seria uma “ecodependência”[iv].

A operacionalização das atividades extrativas e a hierarquização das áreas a serem exploradas deixaram, assim, de ser definidas apenas pela localização das fontes de matérias primas e da disponibilidades de infraestruturas, mas passaram a considerar também as possibilidades políticas da imposição de impactos sociais e ambientais aos grupos sociais mais despossuídos dos países periféricos, pela obtenção de baixos custos regulatórios, de possibilidades de captura regulatória e de minimização dos custos dos conflitos fundiários, territoriais e ambientais. A desigualdade ambiental foi, assim, internacionalizada: o uso intensivo de uma ampla variedade de agrotóxicos, por exemplo, foi sendo progressivamente transferido para países do Sul, o que não impede, por outro lado, que as áreas florestadas destes mesmo países sejam “ambientalizadas” como meio de compensar emissões de gases-estufa e dar continuidade ao capitalismo fóssil.

Foi em paralelo às reformas neoliberais que a exportação dos processos ambientalmente predatórios de países do Norte para o Sul passou a fazer parte das estratégias de acumulação das corporações mundializadas em resposta às pressões por transição ecológica nas economias centrais. As periferias passaram, a partir de então, a ser não só provedoras de matérias primas e bases para a acumulação primitiva continuada, tal como no papel por elas desempenhado no período colonial e protoindustrial, mas tornaram-se também fornecedoras de espaços para a relocalização de atividades ambientalmente predatórias e de de áreas destinadas à absorção compensatória de carbono.

O que passou a vigorar, a partir de então, foi uma divisão internacional ecológica do trabalho na qual não importa, para os centros de cálculo do capital, apenas a transformação de matéria e energia em mercadoria exportável, como no caso das tradicionais economias primário-exportadoras dos países do Sul, mas também a transformação, nestes mesmos países, dos espaços não-mercantis das águas, da atmosfera e dos sistemas vivos em local de destino dos resíduos invendáveis da extração intensiva de matéria e energia. Segundo esta mesma lógica de submissão ecológica, a reprimarização destas economias passou a atender aos fins de sua especialização no fornecimento, para os países importadores de commodities, de componentes materiais gratuitos – bens comuns como água e biodiversidade – não computados nos custos monetários dos materiais exportados.

Este novo papel dos territórios do Sul na economia-mundo foi configurado através de progressivas medidas governamentais de desregulação social e ambiental à medida em que, com as reformas neoliberais, as localidades passaram a competir entre si oferecendo vantagens fundiárias, fiscais e regulatórias, flexibilizando leis e normas urbanísticas e ambientais. Com a configuração de uma competição interlocal por investimentos, desencadeou-se uma corrida desregulatória no âmbito das economias periféricas, levando a um processo de deslocalização e relocalização da “pegada ecológica” dos negócios ambientalmente danosos em direção aos países do Sul. Esta competição passou a incluir, por consequência, entre seus atributos, a oferta de espaços a poluir, de novas áreas de fronteira ocupadas por povos tradicionais e comunidades indígenas e camponesas submetidos a práticas violentas e expropriatórias, bem como de áreas urbanas passíveis de gentrificação pela remoção de moradores de baixa renda e valorização do solo urbano. A desigualdade ambiental daí resultante tornou-se, assim, parte constitutiva da espacialidade do capitalismo liberalizado.

Por via de consequência, a operação de um dumping regulatório instaurou, para os mais despossuídos, um estado de exceção permanente, posto que o avanço das diferentes frentes de despossessão provocou uma superposição entre a divisão social e espacial dos riscos ambientais, que tem por consequência a concentração das condições de vulnerabilidade sobre grupos sociais situados nas periferias internas às economias periféricas. A partir das reformas neoliberais, passou a operar, portanto, não apenas uma competição internacional baseada em baixos salários, mas também aquela movida pelos baixos custos decorrentes de regulações ambientais flexibilizadas e restringidas no interior dos espaços nacionais dos países periféricos.

A divisão internacional ecológica do trabalho, própria à era neoliberal, conjuga, ao mesmo tempo, complementariedade ecológica – pela especialização das economias periféricas em atividades poluentes e degradantes – e competitividade normativa – pelo papel do dumping socioecológico que acompanha a tendência à diferenciação das arquiteturas institucionais de regulação de salários e normas ambientais entre economias centrais e periféricas. Tal divergência tendencial entre os quadros normativos reflete, assim, a vigência de uma coordenação internacional informal entre compromissos institucionais nacionalmente diferenciados que culmina por aprofundar a desigualdade ambiental no plano internacional.

Um estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia cifrou a responsabilidade da União Europeia no desmatamento no mundo, mostrando que os países europeus são responsáveis por mais de um terço do desmatamento ligado ao comércio internacional de produtos agrícolas no mundo[v]. E a grande responsável designada é a soja, oleaginosa que representa 60 % das importações europeias com risco de desmatamento, seguida do óleo de palma (12 %) e do cacau (8 %).

Ao nomear a articulação entre reprimarização da economia e rentismo, Leda Paulani refere-se a uma dupla subordinação – econômica e financeira – ao capitalismo mundializado[vi]. Se levarmos em consideração também a submissão ecológica, poderíamos dizer, ser esta tripla. Pois, se como escreveu Marx, a produção material é “um mal necessário” ao processo de produção de dinheiro[vii], a degradação ambiental é, por sua vez, “um mal necessário” à produção material do capital. E se, como sustentou Engels, “a burguesia só tem uma solução para a poluição – movê-la para outro lugar”, as periferias da economia-mundo foram designadas para, com o apoio das forças políticas da grande propriedade rural e minerária, ocupar esse lugar.

 

Fonte: Le Monde/A Terra é Redonda

 

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