Energia
renovável para quem está no escuro na Amazônia
Após quatro anos de retrocessos socioambientais, o
primeiro semestre deste ano também tem sido marcado por discussões controversas
na área. Uma delas é a volta da pressão para a exploração de petróleo na Foz do
Rio Amazonas, área sensível ainda a ser investigada pela ciência. Essas
perfurações podem causar um impacto negativo para quem vive na região amazônica
e que ainda está à margem de serviços básicos do Estado. Ou seja, debate-se o
investimento para explorar petróleo, uma das matrizes energéticas, mas viram-se
as costas para o fato de ainda um milhão de moradores da região viverem
literalmente no escuro.
Quase um milhão de pessoas em terras indígenas,
territórios quilombolas, unidades de conservação ou assentamentos rurais estão
sem acesso ao serviço público de energia elétrica e de qualidade dentro da
Amazônia Legal. Enquanto se debate a extração de petróleo do mar, ação que
exige investimento e tecnologia, 220 mil residências, escolas ou postos de
saúde em terra seguem sem luz, segundo o Programa Nacional de Universalização
do Acesso e Uso da Energia Elétrica na Amazônia Legal – Mais Luz para a
Amazônia (MLA).
Em maio, o Instituto de Energia e Meio Ambiente
(Iema) divulgou um estudo avaliando o que seria necessário para cumprir a meta
de universalização do acesso público à energia elétrica proposta pelo MLA,
empregando energia renovável. Segundo os dados, mais de três milhões de
equipamentos – painéis, inversores e baterias – deveriam ser instalados para
atendimento de um consumo mensal de 45 kWh, com baterias de íon-lítio para
armazenamento da energia elétrica gerada. No cenário de consumo de 180 kWh/mês,
utilizando baterias de chumbo-ácido, deveriam ser instalados 12 milhões de
equipamentos.
Ao final da vida útil dos sistemas, o estudo estimou
que serão produzidas entre 71 mil e 237 mil toneladas de resíduos decorrentes
dos equipamentos a ser instalados. Apenas o consumo mensal de 180 kWh poderá
gerar o que equivale a quase que o dobro das mais de três mil toneladas de
resíduos eletrônicos coletados em todo o Brasil em 2021. Vale ressaltar que
essa geração de resíduos e a quantidade de equipamentos estão subestimadas,
pois o cálculo desconsidera alguns componentes, cabos elétricos e embalagens.
Somado a isso, a Política Nacional de Resíduos
Sólidos favorece pontos de recebimento em áreas urbanas com maior densidade
demográfica, infraestrutura de serviços e atividades econômicas desenvolvidas –
e não em áreas isoladas. Infelizmente, a logística reversa para esses
componentes é praticamente inexistente nos municípios da Amazônia Legal, onde
somente 58 dos 808 oferecem o serviço. O que evidencia a falta de estrutura
governamental e o baixo compromisso do setor privado para reduzir o impacto dos
resíduos ao meio ambiente e à saúde humana.
Esse recorte, em números, do interior do país
evidencia um problema histórico brasileiro: como se produz energia por aqui e a
quem se destina? Ou seja, enquanto debate-se o emprego de recursos para extrair
o petróleo do mar, as populações que vivem em harmonia com a preservação
ambiental seguem à margem dos seus direitos como cidadãos.
A universalização do acesso ao serviço público de
energia elétrica em regiões remotas da Amazônia é uma questão de
desenvolvimento e exige um programa robusto de políticas públicas envolvendo os
moradores, o Estado, a cadeia solar fotovoltaica e de armazenamento e
organizações da sociedade civil. É essencial promover a inovação contínua,
capacitação técnica e científica de profissionais locais. Também, estimular a
entrada de novos participantes na cadeia de implementação desses sistemas
remotos.
No II Encontro Energia e Comunidades, realizado em
maio na cidade de Belém (PA), lideranças da Amazônia brasileira, representantes
de governos, do terceiro setor, pesquisadores e empresas debateram a
universalização da energia elétrica para comunidades tradicionais. Como
resultado, as cerca de 250 lideranças escreveram um documento com demandas e
recomendações sobre como querem a energia elétrica em suas residências. “Nos
deixa indignados a energia estar disponível para os invasores dos nossos
territórios e não estar para nós que fazemos a proteção”, diz o documento.
É necessária uma política energética integrada,
tanto para discutir a exploração de petróleo em uma área extremamente sensível,
quanto para levar energia para quem está sem e já considerando reduzir os
possíveis impactos dessa ação. Antes da chegada de qualquer empreendimento, as
populações locais precisam e querem ser consultadas sobre o uso do território,
visto que estão cansadas da exploração e destruição do meio onde vivem. Não se
pode olhar para o mar de costas para o que há de mais rico no Brasil.
Capitalismo
extrativo. Por Henri Acselrad
As pressões exercidas pelas forças dominantes no
Congresso brasileiro com vistas a esvaziar os campos de ação do Ministério dos
Povos Indígenas e do Ministério do Meio Ambiente, pela aprovação do marco
temporal e outras medidas favoráveis à apropriação de terras do país por
grandes corporações, nos conduz a uma discussão mais detida sobre as
implicações políticas do capitalismo extrativo implantado no Brasil.
A estratégia de inserção internacional subordinada
de economias nacionais da periferia do capitalismo global tem se baseado na
especialização produtiva em bens intensivos em recursos naturais, na
apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativas e
financeiras, mas também na submissão ecológica de sociedades periféricas ao
capitalismo global. Um tal modelo de desenvolvimento capitalista vem se
diferenciando do tradicional modelo da economia primário-exportadora por
implicar uma subordinação não somente político-econômica, mas também financeira
e ecológica aos centros decisórios do capitalismo global. Que tipo de
implicações este tipo de capitalismo apresentaria para as formas de apropriação
dos territórios nas economias periféricas?
A entrada de capitais rentistas na especulação com
commodities amplia, por certo, os grupos de interesse envolvidos, ao menos
indiretamente, na ocupação de espaços territoriais pelas atividades de produção
de bens primários exportáveis. Além da demanda proveniente dos setores
importadores, o ganho com a produção de commodities passou a motivar também
detentores de novas e maiores massas de dinheiro. Podemos supor que essas
massas não provoquem um aumento proporcional da demanda por commodities, mas,
sim, que submetem esses mercados aos efeitos indiretos da ação especulativa via
preços – que se descolam da simples relação oferta e demanda – e da
transferência de parte dos processos decisórios sobre atividades de extração
para as bolsas de mercadorias e futuros.[i]
Este novo formato da inserção internacional da economia
latinoamericana é acompanhado, por outro lado, por movimentos de transferência
das atividades produtivas com elevados impactos socioambientais para economias
periféricas. O critério ecológico, que passou a ser admitido, em meados dos
anos 1980 – vide Relatório Brundtland – como parte das condições de legitimação
na concorrência intercapitalista, veio, por caminhos transversos, atualizar o
valor estratégico da América Latina para o capitalismo mundial[ii]. A inserção
na economia mundial apresentou, a partir de então, “a novidade de uma submissão
ecológica que implica a oferta de zonas de sacrifício, assim como de capacidade
de suporte e serviços ambientais”[iii] dos territórios do Sul aos interesses
das corporações transnacionais, configurando o que seria uma
“ecodependência”[iv].
A operacionalização das atividades extrativas e a
hierarquização das áreas a serem exploradas deixaram, assim, de ser definidas
apenas pela localização das fontes de matérias primas e da disponibilidades de
infraestruturas, mas passaram a considerar também as possibilidades políticas
da imposição de impactos sociais e ambientais aos grupos sociais mais
despossuídos dos países periféricos, pela obtenção de baixos custos
regulatórios, de possibilidades de captura regulatória e de minimização dos
custos dos conflitos fundiários, territoriais e ambientais. A desigualdade
ambiental foi, assim, internacionalizada: o uso intensivo de uma ampla
variedade de agrotóxicos, por exemplo, foi sendo progressivamente transferido
para países do Sul, o que não impede, por outro lado, que as áreas florestadas
destes mesmo países sejam “ambientalizadas” como meio de compensar emissões de
gases-estufa e dar continuidade ao capitalismo fóssil.
Foi em paralelo às reformas neoliberais que a
exportação dos processos ambientalmente predatórios de países do Norte para o
Sul passou a fazer parte das estratégias de acumulação das corporações
mundializadas em resposta às pressões por transição ecológica nas economias
centrais. As periferias passaram, a partir de então, a ser não só provedoras de
matérias primas e bases para a acumulação primitiva continuada, tal como no
papel por elas desempenhado no período colonial e protoindustrial, mas
tornaram-se também fornecedoras de espaços para a relocalização de atividades
ambientalmente predatórias e de de áreas destinadas à absorção compensatória de
carbono.
O que passou a vigorar, a partir de então, foi uma
divisão internacional ecológica do trabalho na qual não importa, para os
centros de cálculo do capital, apenas a transformação de matéria e energia em
mercadoria exportável, como no caso das tradicionais economias
primário-exportadoras dos países do Sul, mas também a transformação, nestes
mesmos países, dos espaços não-mercantis das águas, da atmosfera e dos sistemas
vivos em local de destino dos resíduos invendáveis da extração intensiva de
matéria e energia. Segundo esta mesma lógica de submissão ecológica, a
reprimarização destas economias passou a atender aos fins de sua especialização
no fornecimento, para os países importadores de commodities, de componentes
materiais gratuitos – bens comuns como água e biodiversidade – não computados
nos custos monetários dos materiais exportados.
Este novo papel dos territórios do Sul na
economia-mundo foi configurado através de progressivas medidas governamentais
de desregulação social e ambiental à medida em que, com as reformas
neoliberais, as localidades passaram a competir entre si oferecendo vantagens
fundiárias, fiscais e regulatórias, flexibilizando leis e normas urbanísticas e
ambientais. Com a configuração de uma competição interlocal por investimentos,
desencadeou-se uma corrida desregulatória no âmbito das economias periféricas,
levando a um processo de deslocalização e relocalização da “pegada ecológica”
dos negócios ambientalmente danosos em direção aos países do Sul. Esta
competição passou a incluir, por consequência, entre seus atributos, a oferta
de espaços a poluir, de novas áreas de fronteira ocupadas por povos
tradicionais e comunidades indígenas e camponesas submetidos a práticas
violentas e expropriatórias, bem como de áreas urbanas passíveis de
gentrificação pela remoção de moradores de baixa renda e valorização do solo
urbano. A desigualdade ambiental daí resultante tornou-se, assim, parte
constitutiva da espacialidade do capitalismo liberalizado.
Por via de consequência, a operação de um dumping
regulatório instaurou, para os mais despossuídos, um estado de exceção
permanente, posto que o avanço das diferentes frentes de despossessão provocou
uma superposição entre a divisão social e espacial dos riscos ambientais, que
tem por consequência a concentração das condições de vulnerabilidade sobre
grupos sociais situados nas periferias internas às economias periféricas. A
partir das reformas neoliberais, passou a operar, portanto, não apenas uma
competição internacional baseada em baixos salários, mas também aquela movida
pelos baixos custos decorrentes de regulações ambientais flexibilizadas e
restringidas no interior dos espaços nacionais dos países periféricos.
A divisão internacional ecológica do trabalho,
própria à era neoliberal, conjuga, ao mesmo tempo, complementariedade ecológica
– pela especialização das economias periféricas em atividades poluentes e
degradantes – e competitividade normativa – pelo papel do dumping
socioecológico que acompanha a tendência à diferenciação das arquiteturas
institucionais de regulação de salários e normas ambientais entre economias
centrais e periféricas. Tal divergência tendencial entre os quadros normativos
reflete, assim, a vigência de uma coordenação internacional informal entre
compromissos institucionais nacionalmente diferenciados que culmina por
aprofundar a desigualdade ambiental no plano internacional.
Um estudo de impacto encomendado pela Comissão
Europeia cifrou a responsabilidade da União Europeia no desmatamento no mundo,
mostrando que os países europeus são responsáveis por mais de um terço do
desmatamento ligado ao comércio internacional de produtos agrícolas no
mundo[v]. E a grande responsável designada é a soja, oleaginosa que representa
60 % das importações europeias com risco de desmatamento, seguida do óleo de
palma (12 %) e do cacau (8 %).
Ao nomear a articulação entre reprimarização da
economia e rentismo, Leda Paulani refere-se a uma dupla subordinação –
econômica e financeira – ao capitalismo mundializado[vi]. Se levarmos em
consideração também a submissão ecológica, poderíamos dizer, ser esta tripla.
Pois, se como escreveu Marx, a produção material é “um mal necessário” ao
processo de produção de dinheiro[vii], a degradação ambiental é, por sua vez,
“um mal necessário” à produção material do capital. E se, como sustentou
Engels, “a burguesia só tem uma solução para a poluição – movê-la para outro
lugar”, as periferias da economia-mundo foram designadas para, com o apoio das
forças políticas da grande propriedade rural e minerária, ocupar esse lugar.
Fonte: Le Monde/A Terra é Redonda

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