É preciso uma ética
católica que veja a sexualidade como um dom, não como uma maldição
Uma
Igreja que está tentando se corrigir à luz de seu histórico em torno dos abusos
sexuais precisa olhar não apenas para o que fez e o que não fez, mas também
para seus ensinamentos que a guiaram em seus julgamentos.
<<<< Eis o texto.
Nas
recentes discussões levantadas pelo cardeal de San Diego, Robert McElroy,
sobre a “inclusão radical” para pessoas LGBTQ
e outras na Igreja Católica, um obstáculo
levantado é o consistente magistério da Igreja sobre ética sexual.
Como
teólogo moral, acredito que vale a pena saber como e por que esses ensinamentos
se formaram, em primeiro lugar. A história nos ajuda a ver que, subjacente a
essa “consistência”, há uma série de questões que transmitem uma avaliação
predominantemente negativa sobre a sexualidade humana.
Os
ensinamentos morais cristãos sobre a sexualidade evoluíram muito por
acaso ao longo dos séculos, em que gerações sucessivas se apropriavam de
posicionamentos anteriores que, muitas vezes, se baseavam em premissas muito
diferentes.
Em
geral, uma série de acréscimos bastante negativos foram adicionados um após o
outro, até que, no século XVII, havia basicamente uma avaliação absolutamente
negativa dos desejos sexuais.
Assim,
com razão, o historiador James
Brundage, em seu livro “Law,
Sex, and Christian Society in Medieval Europe”, afirma: “O horror
cristão ao sexo colocou durante séculos uma enorme pressão sobre as
consciências e a autoestima individuais no mundo ocidental”.
Em
sua maior parte, os ensinamentos derivam das preocupações de homens celibatários, que, ao
buscarem uma vida de santidade, descobriram que os desejos sexuais eram mais
obstáculos do que auxílios nessa busca. Esses desejos sexuais não eram entendidos como pertencentes a uma
compreensão mais ampla de qualquer dimensão particular da personalidade humana,
nem se achava necessário incluí-los em tal dimensão.
Ao
contrário, eles eram tão aleatórios e precipitados quanto para qualquer pessoa
que não tenha um conceito integrador como “sexualidade”.
Como sentimentos arbitrários e poderosos, havia pouco em sua natureza que
permitisse que eles fossem conceitualmente incorporados a uma realidade
abrangente e integrada. A ideia desses desejos venéreos era tão instável quanto
o próprio sentimento desses desejos.
·
Questão de linguagem
A
linguagem também impedia qualquer tendência a entender esses desejos como
pertencentes a algo mais integrado ou holístico. Em seu livro “The
Bridling of Desire: Views of Sex in the Later Middle Ages”, o
filósofo Pierre Payer nos
lembra:
“Um
escritor contemporâneo que lida com ideias medievais sobre o sexo enfrenta um
problema peculiar de linguagem. Tratados intitulados ‘Sobre o sexo’ não são
encontrados em lugar nenhum, nem se fala sobre ‘sexualidade’, porque o latim
medieval não tinha termos para as palavras ‘sexo’ e ‘sexualidade’. Em um
sentido mais estrito, não há nenhuma discussão sobre sexo na Idade Média. (...) O conceito de sexo
ou de sexualidade como uma dimensão integral da pessoa humana, como um objeto
de preocupação, discurso, verdade e conhecimento, só surgiu bem depois da Idade
Média.”
É
claro, o desenvolvimento desses ensinamentos é tão diferente da linguagem
positiva do corpo que ajudou os primeiros teólogos a articularem continuamente
os ensinamentos sobre a ressurreição do corpo, a Encarnação e a Eucaristia.
Como eu argumento em “A History
of Catholic Theological Ethics”, a nossa tradição sobre o corpo
humano expandiu a profundidade e o alcance da vocação cristã. Com efeito, quer
falássemos sobre o corpo, a família ou as virtudes, considerávamos cada um
deles como dons. A nossa tradição nessas áreas é, sim, complexa, mas também
rica, afirmativa e convincente.
O
mesmo não pode ser dito sobre os ensinamentos da Igreja sobre sexo.
A
tradição da ética sexual não
nos levou à grandeza, mas sim à negatividade e às minúcias. Qualquer coisa que
acrescentássemos à tradição apenas tornaria a sexualidade humana cada vez mais
negativa.
·
Casamento e prazer
Por
exemplo, a simples injunção de Paulo de
que aqueles que não podiam permanecer celibatários deveriam
se casar (1Coríntios 7,8-9) levou mais tarde à reivindicação dos estoicos de
que a intimidade conjugal
precisava ser validada não pelo casamento, como Paulo sugeria, mas pelo propósito
a direcionar a intimidade para a procriação.
Isso
levou mais tarde à afirmação de Clemente
de Alexandria de que o sexo
por prazer, mesmo no casamento, era pecaminoso. Por que problematizamos
o amor conjugal ao passarmos de Paulo para Clemente? Por que precisamos validar o
amor conjugal, quando Paulo não precisou disso?
Mesmo
assim, um olhar sobre o período patrístico não é tão problemático quanto os
períodos posteriores. De fato, a teologia
de Agostinho é menos
negativa em questões de sexo e casamento do que a de seus contemporâneos ou,
pior ainda, a de seus sucessores nos séculos XVI a XIX. A negatividade surge
muito depois de Agostinho.
Por
exemplo, poderíamos examinar o assim chamado ensinamento consistente sobre a
masturbação, que, com exceção de Clemente,
nunca foi considerado pecado até que João Cassiano (360-435) e Cesário de Arles (470-542) tornaram-no pecado, mas apenas
para monges e freiras, que violavam seus votos de castidade ao se masturbarem.
Mesmo
assim, oito séculos depois, quando o Papa Inocêncio III impôs a toda a Igreja o preceito pascal em
1215, exigindo uma confissão anual de todos os cristãos, os ensinamentos
sexuais mudaram. Agora, a masturbação era considerada gravemente pecaminosa
para todos. A gênese da masturbação como pecaminosa dependia justamente do voto
de castidade de quem optava pela vida ascética. O que era pecado para um monge
de 40 anos de idade no século VIII tornou-se, no entanto, o mesmo pecado para
um menino ou menina de 13 anos no século XIII. Pior ainda, como veremos, tornamos
isso um pecado gravíssimo.
Embora
haja muitos outros temas, dentre os quais, não menos importante, o modo como as
experiências sexuais das mulheres eram avaliadas (ou não), proponho três
ensinamentos que, baseando-se uns nos outros, levam a evolução da sexualidade
para um âmbito completamente definido como uma ocasião de pecado
inevitavelmente. Esses ensinamentos são conhecidos como “pecados contra a
natureza”, “mal intrínseco” e “parvidade de matéria”.
·
Pecados contra a natureza
Os
pecados contra a natureza foram assim nomeados por São Ivo, bispo de Chartres,
entendidos como “sempre ilegais e, sem dúvida, mais flagrantes e vergonhosos do
que pecar por um uso natural em fornicação ou adultério”. O pecado era “usar o
membro para uso ilegítimo”.
Em “Contraception: A History of Its Treatment by
the Catholic Theologians and Canonists”, o juiz John T. Noonan Jr. descreve esses
jogos de linguagem: “Nunca há nenhuma tentativa de fornecer uma descrição
biológica dos atos condenados. Os termos médicos são evitados. A vagina
geralmente é descrita como ‘o vaso’ ou ‘o vaso adequado’. A ejaculação é
frequentemente descrita como ‘poluição’. O termo ‘coito interrompido’ nunca é
empregado, mas a descrição usual é ‘fora do vaso adequado’”.
O
que une todos esses pecados é
basicamente o fato de o sêmen ir para outro lugar que não o “vaso adequado”, e,
ao ir para outro lugar, o pecado era “antinatural”.
De Alberto Magno e Tomás de Aquino até o século XX,
os tratados morais distinguiam entre pecados sexuais “de
acordo com a natureza” e aqueles “contrários à natureza”. Enquanto os primeiros
podiam incluir fornicação, adultério, incesto e até estupro, em geral os
últimos pecados (masturbação solitária ou mútua, contracepção, sexo anal ou
oral, bestialidade) eram considerados mais graves, tal era a obsessão com a
finalidade do sêmen e com o “vaso adequado”.
O
fato de ter se ensinado de modo tão longo e consistente que a masturbação era
mais grave do que o estupro pode nos fazer pensar sobre o argumento da
consistência. E também pode sugerir como o estupro era considerado
inadequadamente grave pelos teólogos celibatários.
Os
pecados contra a natureza receberam um tratamento adicional ao serem associados
a outras duas categorias conceituais: “mal intrínseco” e “parvidade de
matéria”.
·
Mal intrínseco e parvidade
“Mal
intrínseco” vem de Durandus de
Saint-Pourçain (1270-1334), o detrator antitomista do século XIV. O
termo descrevia um tipo particular de ação como absolutamente e sempre errada,
independentemente das circunstâncias. Como escrevi antes, essa avaliação a
priori removia da consideração qualquer questão sobre a legitimidade moral de
tais ações. Elas eram descritas como tais porque a ação era contra a natureza
e/ou o agente não tinha direito ao exercício de tal atividade.
Todos
os atos sexuais contra a natureza passaram a ser classificados também como
intrinsecamente maus. Entendidos como intrinsecamente maus, todos os atos
sexuais contra a natureza não tinham inequivocamente nenhuma exceção. Nenhuma
circunstância poderia mitigar sua pecaminosidade.
No
entanto, a história dos ensinamentos sexuais tornou-se
ainda mais sombria quando os teólogos morais questionaram se algum pecado
contra o sexto mandamento podia ser considerado matéria leve, isto é, não
mortal. Aqui surgiu a questão de saber se, sob o sexto mandamento, havia alguma
“parvidade” (leveza) de matéria. Algum pecado sexual podia ser venial?
Nos
séculos XV e XVI, alguns moralistas começaram a questionar sobre assuntos
menores. Perguntavam qual era a qualidade moral de um beijo que excitava uma
pessoa ou de uma fantasia passageira que não era repelida, mas, ao contrário,
permitida, algo que eles acabaram chamando de “delectatio morosa”.
Todas essas ações foram pecados mortais? Por algum tempo, os teólogos morais
ficaram divididos sobre essa questão.
Como
relatou o teólogo jesuíta Pe.
Patrick Boyle em seu livro “Parvitas Materiae in Sexto in Contemporary Catholic Thought”,
o superior geral da Companhia de Jesus em
1612, Claudio Acquaviva,
condenou a posição que isentava de pecado mortal qualquer prazer leve em
desejos venéreos. Ele não apenas obrigou os jesuítas a obedecerem ao
ensinamento sob pena de excomunhão, como também impôs a eles a obrigação de
revelar os nomes daqueles jesuítas que violavam até mesmo o espírito do
decreto.
Como
já observei antes, essas e outras sanções dissuadiram os moralistas de levarem
em consideração qualquer uma das exceções circunstanciais como os casuístas
anteriores haviam feito.
Por
volta de 1750, os manualistas morais consolidaram o ensinamento de que todos os
desejos sexuais e as atividades subsequentes eram sempre mortalmente
pecaminosos, a menos que se tratasse da ação conjugal dos cônjuges, que
asseguravam que seu “ato” fosse em si mesmo aberto à procriação. Nisso eles
assimilaram na tradição as alegações de que os pecados contra o sexto e o nono
mandamentos não tinham parvidade de matéria. Notavelmente, essa posição não se
aplicava a nenhum dos outros mandamentos.
·
Desejos sexuais
“Parvidade
de matéria”, “mal intrínseco” e “pecados contra a natureza” combinaram-se para
isolar os desejos venéreos absolutamente como tais. Com efeito, assim como o
monge no primeiro milênio procurava, por meio de práticas ascéticas,
integrar-se de corpo e alma, mas à custa de abrir mão de seus próprios desejos sexuais, assim também, no segundo milênio, após a imposição do
preceito pascal, os teólogos eclesiásticos celibatários conseguiram
tirar de leigos e leigas todo senso de legitimidade do amor sexual e todo senso
de que esses desejos podem levar a algo bom, exceto sob certas condições muito
claras para as relações maritais procriativas.
É
importante notar que nenhum outro conjunto de questões teve uma intolerância
tão inequívoca na tradição moral, sem falar de um conjunto tão elaborado de
conceitos linguísticos para “subjugar” e condenar a atividade.
Até
mesmo a proibição do aborto permite certas exceções terapêuticas indiretas
(por exemplo, nos casos de mulheres com útero canceroso ou gravidez ectópica).
E, mesmo assim, nunca houve nada como a questão da “parvidade de matéria”, que
perseguia pessoas que pensavam em abortar ou confessores que possam ter
respondido a perguntas sobre aborto sem uma severidade absoluta.
A
outra questão quase absoluta é a mentira. No entanto, embora a mentira tenha
sido nomeada por Agostinho como
sempre pecaminosa em si mesma, nem todos na tradição concordaram com isso em
todas as épocas, particularmente na questão de mentir para proteger o bem-estar
alheio. Na verdade, emergiram duas trajetórias distintas de ensino sobre a
mentira. Apenas os ensinamentos sobre a ética sexual eram absolutos, severos,
extensos e sem nenhuma exceção.
A
convocação do Evangelho ao amor e o chamado da Igreja primitiva aos cristãos
serem um só em mente e corpo desenvolveram-se bem ao longo dos séculos, mas
nunca influenciaram realmente os ensinamentos posteriores da Igreja sobre os
desejos sexuais humanos. Para que o cristianismo avançasse, ele fez isso
isolando o sexo e colocando-o moralmente em quarentena.
·
Novas abordagens teológicas
Até São João Paulo II introduzir a
“teologia do corpo”, o sexo permaneceu definitivamente como o tabu católico.
Agora podemos seguir em frente e retomar as coisas a partir de onde ele parou,
articulando uma teologia da ética sexual que veja a sexualidade como um dom, e não como uma
maldição.
Mas,
ao fazer isso, também podemos levar em consideração as questões do cardeal McElroy sobre a severidade
desses ensinamentos que afastaram tantos católicos dos sacramentos e o modo
como podemos iniciar um processo de reconciliação para todos aqueles que, como
nós, nunca são dignos de se aproximar do altar, mas, mesmo assim, são
convidados pela graça.
De
fato, há outros sinais de que estamos caminhando na direção certa. Em “Just Love: A Framework for Christian Sexual
Ethics”, a eticista Ir.
Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, propôs uma ética
sexual do amor fundada na justiça. Embora a Congregação para a Doutrina da Fé tenha emitido uma notificação de que
a obra “corre o risco de provocar graves danos aos fiéis”, ela se tornou um
elemento básico para os escritos da maioria dos teólogos. Mais recentemente, os
25 artigos premiados, presentes na coleção editada por Julie Hanlon Rubio e Jason King e intitulada “Sex, Love, and Families: Catholic
Perspectives”, forneceram um modelo para uma ética sexual
responsável e amorosa.
Uma
Igreja que está tentando se corrigir à luz de seu histórico em torno dos abusos sexuais precisa
olhar não apenas para o que fez e o que não fez, mas também para seus
ensinamentos que a guiaram em seus julgamentos.
De
fato, se algo está claro aqui, é que a sabedoria experiencial de leigos e
leigas precisa estar totalmente engajada na articulação desses ensinamentos tão
necessários. Assim, podemos ter uma ética sexual cristã que dá vida e está orientada para o
amor, sendo digna desse nome.
Fonte:
Pelo jesuita James F. Keenan, em National Catholic Reporter - tradução de Moisés Sbardelotto,para IHU
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