Lula não pode
governar!
A
derrota de outubro passado foi recebida com enorme surpresa pelos líderes do
bolsonarismo. Foi como se o impossível tivesse acontecido, pois, mesmo
enfrentando sua poderosa máquina de propaganda, rios de dinheiro e uma
avalanche de corrupção no processo eleitoral, Lula venceu. Atônitos, enviavam
mensagens obscuras aos apoiadores mobilizados contra o resultado eleitoral,
onde recomendavam que esperassem pois algo iria acontecer. Alguns imaginaram
antecipar o golpe planejado para ocorrer em algum momento do que seria o
segundo mandato de Jair Bolsonaro e instigavam seus apoiadores a se manterem
engajados, enquanto outros, mais cautelosamente, tratavam de formular novos
planos.
Implantar
um regime autoritário sempre foi o objetivo das lideranças militares e civis
desse movimento neofascista. Esse objetivo está explicitado no documento que
pode ser considerado a expressão mais acabada de sua estratégia: “Projeto
Nação: o Brasil em 2035”. O trabalho foi coordenado pelo general Rocha Paiva e
elaborado por diversos autores a partir de entrevistas e questionários em que
foram ouvidas lideranças militares e civis da direita. Sabe-se, inclusive, que
estruturas do Exército foram usadas para tal.
O
texto final foi divulgado pelo Instituto Sagres, pelo Instituto Federalista e
pelo Instituto Villas Bôas, criado pelo general homônimo. Dessas instituições
participa, além dos dois já mencionados e de diversos outros militantes do
reacionarismo nacional, também Sérgio Etchegoyen, primeiro general a assumir um
cargo ministerial desde a redemocratização e que ampliou o escopo do GSI ainda
no governo de Michel Temer para funções propriamente políticas e de
centralização e coordenação de todas as atividades de informações e
inteligência do Estado. Até então, esse organismo era um sucedâneo da antiga
Casa Militar, uma espécie de ajudância da presidência.
O
documento fala de uma reorganização autoritária do Estado nacional a ocorrer em
algum momento da década de 2020 através da criação de um novo organismo, o
Centro de Governo – CdG, que se sobreporia aos três poderes e trataria de
garantir a continuidade do projeto cuja execução começara no governo de Jair
Bolsonaro. Os objetivos do tal projeto são pouco claros, mas de alguma forma
apontam para, em primeiro lugar, uma continuidade do ataque aos direitos de
trabalhadores, pretos e pobres que permita a recuperação das margens de lucro
das empresas; em segundo lugar, a ampliação do patrimonialismo neoliberal na
forma de privatizações e concessões em todas as áreas, como educação ou saúde,
a mercantilização de toda a vida social, transformada em todas as suas
dimensões em novos espaços de valorização do capital e, em terceiro lugar, um
reposicionamento internacional do Brasil como um ator subalterno do declinante
império americano.
Villas
Bôas é o líder dos militares que se organizaram desde os tempos da Lava-jato em
torno do projeto de poder que visou implantar esse regime autoritário e que
conta, além do mencionado Sérgio Etchegoyen, com outros generais como Augusto
Heleno, Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, além de expressivo apoio entre as fileiras
das três forças armadas e das polícias militarizadas. Foi algo como um
bolsonarismo antes do próprio Jair Bolsonaro.
O
capitão enxotado do Exército por indisciplina e mentiras, por sua popularidade
e convergência ideológica, apareceu como o instrumento para essa organização
chegar ao poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de criminalização da esquerda e do
PT com o tema da corrupção e a ação da operação Lava Jato de perseguição a Lula
vão proporcionar o ingresso na arena política da classe média conservadora na
sequência das mobilizações de 2013, dessa vez com uma pauta moralista e
reacionária. As mobilizações que se seguiram acabaram derrubando a presidenta
Dilma Rousseff no golpe de 2016.
A
crise econômica que se instalara no final de 2014 e que foi respondida
equivocadamente com uma guinada ortodoxa no começo de 2015, cortando gastos e
subindo a taxa de juros, acabou por erodir o apoio popular de Dilma Rousseff
até sua derrubada em 2016. Na sequência, o aprofundamento da pauta neoliberal
sob Michel Temer só fez agravar o quadro recessivo, destruindo o crescimento do
PIB, aumentando o desemprego e arrastando uma parcela grande da população para
abaixo da linha de pobreza. Depois de ter saído do Mapa da Fome da ONU em 2014,
o Brasil retornou a esse triste lugar em 2019.
Após
sua vitória em uma eleição que foi maculada pela prisão de Lula – decisão do
juiz declarado parcial Sérgio Moro –, o movimento que teve Jair Bolsonaro como
aríete tratou de implantar sua linha política. A administração bolsonarista que
se segue pôs-se a destroçar o máximo possível das políticas e organizações do
Estado brasileiro voltadas à proteção social, às garantias de subsistência e ao
desenvolvimento socioeconômico. Da mesma forma, orgulhava-se de ter feito do
país um pária internacional. Seu método de gestão foi a crise permanente,
ambiente no qual seus estrategistas imaginavam ser mais viável fazer avançar
tal projeto.
Tratava-se
de um governo-movimento e a crise permanente era a tática que permitiria isolar
e combater a parte indesejada da população: mulheres independentes, pobres,
negros, esquerdistas, indígenas, quilombolas, e comunidades LGBTQIA+. Ou seja,
a maioria esmagadora dos brasileiros. Toda a semelhança com os métodos do
nazismo não é coincidência, o reacionarismo de extrema-direita não é muito
imaginativo.
Ao
mesmo tempo, controlando um superministério da economia, Guedes tratava de
produzir o melhor ambiente de negócios possível para seus colegas no sistema
financeiro. Novas oportunidades com privatizações, mudanças de regulação “a
favor do mercado” (market friendly), benefícios fiscais, maior espaço para
arbitragem de câmbio e juros com grandes oscilações nestas taxas e mais
internacionalização. Ao mesmo tempo, seguiu impulsionando a lucratividade com
arrocho salarial, novas “reformas” redutoras de direitos dos trabalhadores e a
desorganização das atividades de fiscalização.
A
aniquilação da função reguladora do Estado foi uma decisão implementada desde o
primeiro dia e em todas as áreas de atuação. O que se viu como consequência foi
o aumento de todo o tipo de crime: invasões de terras indígenas, desmatamento
ilegal, garimpo ilegal, trabalho análogo à escravidão, proliferação de armas e
da violência armada, perseguição a comunidades e grupos sociais vulneráveis,
assédio generalizado e estimulado em todo o serviço público, especialmente na
áreas da educação e da segurança, machismo, racismo, sexismo, misoginia e todo
o tipo de preconceito se manifestando de forma violenta e agressiva,
estimulados pelo próprio presidente da república.
Os
casos das políticas de saúde e educação, ciência e tecnologia são
paradigmáticos dos objetivos do desgoverno de extrema-direita, bem como o
estímulo aos abusos e à letalidade policiais. A pandemia da Covid-19 e a
política de “contaminem-se todos que assim a peste vai passar logo” deixou um
legado de mais de 700 mil mortes das quais cerca de 400 mil foram provocadas
intencionalmente pelo governo ao contrariar e deixar de adotar as recomendações
da comunidade científica e da ONU. Na esteira dessa tragédia viram-se todos os
indicadores de saúde, da cobertura vacinal à distribuição de medicamentos ou a
abrangência da atenção básica piorarem.
A
redução drástica do financiamento das políticas em prol do ensino e pesquisa se
traduziu num arrocho orçamentário das universidades e escolas federais, corte
de bolsas e verbas para a ciência com a consequente paralisação de inúmeros
programas. A redução calamitosa da participação de estudantes nas provas do
ENEM é um espelho desse desastre, assim como o crescimento dos indicadores de
abandono escolar e de déficit de aprendizado.
Passados
os quatro anos de mandato do genocida todas as forças sociais que apoiaram esse
descalabro se mobilizaram para a continuidade do projeto neofascista e
neoliberal. Se a derrota eleitoral foi um revés significativo, a ideia de
antecipar o golpe que instalaria um Estado autoritário “em algum momento da
década de 2020” foi antecipado com o plano de criar um episódio de caos e
desordem política para justificar uma convocação das Forças Armadas em uma
intervenção de suporte à mudança de regime.
É
assim que se pode compreender o ataque à sede da Polícia Federal e as
depredações e incêndios de 12 de dezembro, o episódio da bomba no aeroporto de
Brasília no dia 24 e, superando todos em destruição e vandalismo, a invasão das
sedes dos três poderes em 8 de janeiro.
Felizmente
a estratégia de enfrentamento daquela movimentação insurrecional não utilizou
efetivos das forças armadas, apenas as polícias federal e do Distrito Federal.
Dessa forma o governo há pouco empossado conseguiu controlar completamente a
situação até o final da noite, em que pese a ação deletéria e subversiva dos
poucos contingentes do Exército envolvidos nos acontecimentos.
O
fracasso da intentona de 8 de janeiro pode ser explicado também pela hesitação
da ala militar do bolsonarismo, que acabou recuando da tentativa de tomada do
poder sustentada por tropas militares. Assim, o fim melancólico da opção
golpista, com seus milhares de aprisionados respondendo à justiça, levou a uma
mudança tática. A palavra de ordem de agora é “Lula não pode governar”.
Bolsonaristas e seus aliados passaram a usar os espaços de poder de que dispõem
para tentar paralisar o governo eleito enquanto preparam seu retorno. Para
tanto, abriram quatro frentes de batalha contra o governo Lula.
A
primeira dentro da própria administração, onde servidores bolsonaristas tratam
de sabotar o funcionamento de órgãos essenciais para a realização do projeto do
PT e aliados de desenvolvimento econômico e democracia social, redução da
pobreza, da desigualdade e da discriminação. A sabotagem é facilitada pelo
desmonte de inúmeros departamentos e organismos deixados à míngua de pessoal e recursos
desde o governo de Michel Temer. A nova administração está tendo que realizar
inúmeros concursos para preencher milhares de postos de trabalho deixados
vagos, além de fazer enormes esforços de remobilização de servidores para dar
conta de reorganizar serviços abandonados pelo governo anterior, especialmente
nas funções de fiscalização e controle nas áreas sociais e de proteção e
cuidado de populações vulneráveis, como o caso chocante dos yanomamis.
Além
disso, segue em frente o processo de desaparelhamento do Estado com a remoção
de bolsonaristas de postos de decisão na administração dos ministérios,
autarquias e empresas estatais. Esse processo está também, desde que começaram
a ser revelados os subterrâneos do 8 de janeiro, avançando, ainda que de forma
tímida, no interior das Forças Armadas, em especial do Exército.
A
segunda frente da contraofensiva da extrema direita são as políticas fiscal e
monetária. Em se tratando da política fiscal, o absurdo Teto de Gastos foi
substituído pelo chamado Arcabouço, mecanismo que autoriza um pequeno
crescimento das despesas. Mesmo assim, ainda representa um freio para o
financiamento das políticas sociais e para o investimento. Vai ser necessária
muita criatividade da Fazenda para viabilizar recursos às áreas de
infraestrutura, saúde e educação. E o BNDES precisará suprir com seus
financiamentos os investimentos que o Tesouro não poderá fazer. Mas,
desafortunadamente, um elefante restou no meio da sala, o compromisso de fazer
decrescer a relação dívida PIB que causará, inevitavelmente, restrição às
despesas.
A
outra perna da política econômica, a política monetária, poderia impulsionar o
crescimento ao reduzir a despesa estéril do pagamento de serviços da dívida
baixando os juros. Entretanto, o monetarismo tosco do Banco Central mantém a
taxa em inacreditáveis 13,75%. Ora, a inflação brasileira caiu, está abaixo de
4%, menor que sua média histórica neste século e, de forma inédita, também
menor do que aquelas de Europa e EUA. Juros num índice que fosse a metade do
atual, entre 6 ou 7%, ainda atrairiam capital estrangeiro e alcançariam
remunerar positivamente os investidores. Entretanto, o presidente do BC alega
que a taxa precisa permanecer elevada porque a dívida pública é grande. O
curioso é não haver qualquer medida objetiva do que seria “grande”, os 264% do
Japão, os 129% dos EUA? De qualquer forma, e para comparar, valor para o Brasil
está em 73%, um pouco acima dos 66% do segundo mandato de Dilma.
Os
juros altos não apenas fizeram a dívida crescer como foram a causa da crise de
crédito que não apenas quebrou as Lojas Americanas como está produzindo
recessão e desemprego. A medida de renegociação de dívidas de pessoas físicas
que foram induzidas a um endividamento arriscado pelo desgoverno anterior vai
no sentido correto, mas há uma necessidade de equacionar o endividamento
empresarial, particularmente grave no comércio. E isso vai requerer alguma
forma de desconto com taxas muito menores do que as atuais.
A
terceira frente de combate é o Congresso, onde a maioria de direita pode se
aliar aos bolsonaristas para obstruir o governo com pautas negativas. Como
princípios não são o que motiva essa gente, fica a possibilidade de, com
sabedoria e arte, o governo fazer alguns agrados e isolar o neofascismo em
troca de autorização para efetivar suas políticas. É o que tem sido levado nas
negociações sempre difíceis com o bloco parlamentar do dito “Centrão”, em
especial com seu líder, o amoral presidente da Câmara Arthur Lira. Enquanto for
possível restringir o “preço” desses parlamentares a verbas dentro de programas
prioritários, o governo sairá bem. Entretanto, o desgaste será permanente e a
obstrução recorrente.
Por
fim, na quarta frente, temos a grande mídia. Seu alinhamento com os interesses
das classes dominantes, em especial do sistema financeiro, a coloca em uma mal
disfarçada oposição a Lula, defendendo juros altos e “austeridade” fiscal,
sempre apresentados como recomendações da ciência. É assim que se explica o
desfile interminável de “economistas chefes” de empresas do mercado financeiro,
com sua arrogância mal disfarçando os interesses de seus patrões e que arrotam
sua pretensa ciência por telejornais, entrevistas e colunas de opinião. Seu
jogral monocórdio diz sempre “austeridade, austeridade, menos Estado e mais
mercado”. É indigesto.
O
destino do terceiro mandato de Lula vai depender de sua capacidade de vencer as
batalhas travadas nessas quatro frentes. Será preciso prevalecer sobre
empresários do agro, banqueiros e outros endinheirados e também as classes médias
que os seguem. Herdeiros dos senhores de escravos no ódio ao povo e na falta de
compaixão, farão de tudo para impedi-lo de dar aos sofridos, desamparados e
explorados uma vida melhor. E para isso precisam que o governo fracasse.
Fonte:
Por Luiz Augusto Estrella Faria, em A Terra é Redonda