As
notícias desta semana atualizaram uma fala do prefeito de São Paulo, que em
vídeo de 2011 gritou: “Pobre não tem hábito alimentar”. Essa frase lapidar de
João Doria esteve de volta quando ele anunciou a distribuição da farinata –
mistura de fascio e lixo de comida - como ajuda alimentar para os pobres e
crianças em creches.
No
vídeo, o então apresentador Doria repreendeu um candidato que havia apresentado
um programa que incluía hábitos alimentares da gente do povo. E gritou, o
burguês Doria, cheio de ciência e autoridade:
-
Hábitos alimentares?! Você acha que gente humilde, pobre, miserável, lá vai ter
hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que dizer graças a Deus. O pobre
tem fome, não tem hábito alimentar. Por que essa insistência em um tema como
esse?
Ontem,
soubemos que o prefeito desistiu de incluir na merenda das escolas da rede
municipal de São Paulo a ração maravilhosa. Mas ele continua com a farinata para
os pobres adultos, que será distribuída pela assistência social da prefeitura.
Então, anoto brevíssimas observações para essa caridade típica do burguês.
Primeiro,
não é demais ensinar ao senhor prefeito que pobres são pessoas, são gente. Se o
miserável burgomestre de São Paulo não sabe, vou lhe deixar aqui duas ou três
coisas, do alto da minha experiência de pobre, que em dias mais sombrios também
passou fome. Saiba, prefeito, que é uma experiência universal: as pessoas, por
mais carentes, adaptam ou adotam um caminho de vida humana em meio à penúria.
Assim, em todo Nordeste brasileiro, do sertão ao litoral, as pessoas de todas
as classes gostam de comer cuscuz, arroz e feijão. Isso é um hábito, pré-feito,
isso é um gosto, uma escolha, um instinto de nacionalidade que vai de geração a
geração. Entre os pobres, até mesmo entre os mais miseráveis, existe o hábito
de comer carne, ou algo que pareça ou lembre carne, quando nada vezes nada se
possui para comer.
Saiba,
perdido feito, que eu já vi família de quem era vizinho comer pés e cabeças de
galinha, cozidos em um caldeirão. Quero dizer, comer aquilo não era bem uma
opção, mas uma resistência do hábito de se comer carne no almoço. Isto agora é
cultura, burromestre, aprenda: uma mãe pode fritar um só ovo para quatro
filhos, ou pegar meio quilo de carne de terceira, cheia de pelancas e osso, e
servi-la para numerosa família. De pedacinho em pedacinho, de taquinho em
taquinho de carne. Ou até mesmo – no extremo – sem ter nada vezes nada, uma
senhora mãe pode pegar ervas no mato e fervê-las para servir em farofa. Nesse
limite, ervas com farinha – não farinata, mas farinha de mandioca – essas
pessoas lembram o hábito alimentar de comer carne, feijão, arroz. Que passa
então a ser sonhado para melhor oportunidade.
Um
exemplo, que talvez o magnífico burromestre entenda: um homem pode viver
sozinho, sem mulher, mas isso não quer dizer que ele tenha se acostumado a não
ter o calor do sexo. Ou que ele tenha se transformado em uma nova categoria de
marciano. Então, tente compreender num máximo esforço, pré-histórico Doria:
pobres também são pessoas que têm hábitos seculares, que estão inscritos no seu
DNA antes que tenham consciência. Quero dizer: o hábito é um modo de ser,
quando não, uma marca inescapável de identidade. Os pobres vivem e se adaptam
como podem, mas têm sua identidade, seus hábitos alimentares, e o miserável
burromestre não sabe.
E
atenção, olhem só até onde poderemos cair. A proposta da farinata – fascistada
- levada adiante por Doria já foi aprovada este ano na Câmara dos Deputados e
agora tramita no Senado. Ou seja: a ração para os pobres ameaça se tornar uma
lei nacional de combate à fome. Amigos, saibam que depois da legalização do
trabalho escravo, poderemos ter ração de lixo em farinha para os miseráveis do
Brasil. O Estado a que chegamos supera os mais inverossímeis pesadelos.
Daí
que não será indevida a grande antecipação de Swift , que piedoso já havia
notado a terrível condição dos miseráveis que não têm o que comer:
“É
motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que
viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma
multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis
crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola”.
E
num ato de gênio criou em 1729 a farinata de Doria:
“Foi-me
garantido por um muito sábio americano, que uma criança jovem e saudável, bem
alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente
e completo – seja estufada, grelhada, assada, ou cozida. E não tenho qualquer
dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num ragu... Uma
criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a família a jantar
sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se
temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada
no quarto dia, especialmente no Inverno.
Concedo
que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito adequada
aos senhorios – e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais, poderão
ter direito de preferência sobre os filhos. A carne dos bebés estará dentro do
prazo o ano todo, mas será mais abundante um pouco antes, e depois, de março”.
Ao
fim, penso que em lugar do título “O que os pobres comem”, mais próprio seria
ter escrito:
O
que come os pobres
A
resposta é simples: todo carnívoro de classe come os pobres. Gente à semelhança
de porco feito Geddel, Blairo Maggi. Gente feito vampiro à semelhança de Michel
Temer. Gente feito os parlamentares vendidos na Câmara e no Senado. Todo
capital assim representado, todo capitalista come os pobres. Swift já dizia.
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