Reza a cartilha politicamente correta, em seu vetusto ditame primeiro,
que à espécie Homo sapiens,
principalmente àquela nascida em solo tupiniquim, deve-se render toda boa-fé.
Dá-se muito crédito ao brasileiro e, graças à cegueira hipócrita, qualquer crítica
ao tal “povo” imediatamente é jogada no balaio da “síndrome de vira-lata”. Ao
sabor desse descalabro endêmico e cotidiano, restou fácil apontar o dedo para
os (des)governos e culpá-los por nossas mazelas.
À sombra da selvageria comercial, há aqueles que enxergam tempos
extremos, já que pensamento fartamente lucrativo. À barbárie política cumpre
insistir na alcunha do mero “pessimismo
de setores”, outro logro lucrativo. Enquanto duelam pelas bordas recheadas
com o metonímico catupiry da miséria sociocultural, o cerne da
questão segue inominável. Dar nomes aos bois certamente não constará nos
discursos dos candidatos ao trono planaltino.
Volto à minha infância, na tentativa de encontrar uma das sementes.
Quando criança, na conturbada transição entre as décadas de 1980 e 1990, era
bastante comum ouvir dos adultos que a delicadeza seria um sinônimo de
viadagem. Na gigantesca e mazelar base da pirâmide social, um homem ornado de
boas maneiras era viado. Sim, viado! “Chamar
viado de ‘veado’ é coisa de viado”, concluiu o genial Millôr Fernandes em
entrevista ao editor Luiz Costa Pereira Júnior, para o primeiro número da
revista Língua, em 2005.
Noutras palavras, considerando a hipocrisia tola que tinge a fantasia
dos pobres de espírito, a maior fatia da população brasileira estava a
demonizar os bons modos. Irrompemos o século 21 com pais ensinando aos filhos
que a grosseria era uma espécie de falo hercúleo, sacrossanto dote para a vida
em sociedade. Vistas como mera caçapa, a sobrevivência das meninas restou
condicionada à escolha dentre brutos, ou seja, “não-viados”. Uma tragédia
antropológica, em suma.
Com a ascensão das redes sociais, a explosão horizontal da comunicação e
a extraordinária exposição desse“jeitinho de ser”, faz-se de besta quem
diz não compreender como as relações alcançaram nível tão tensionado no Brasil
contemporâneo, mormente feudal.
Afastados das boas maneiras — essa tentação
demoníaca! —, seguimos atirando privadas do alto de arquibancadas de estádios
de futebol; queimando ônibus como bandeira de protesto; acreditando em qualquer
mentira que possa justificar a reunião da horda ignóbil que deseja fazer
justiça com as próprias mãos, ainda que essa tal “justiça” compreenda um arco que vá de
acorrentar um adolescente infrator ao assassinato de uma dona de casa inocente;
e, por óbvio, comparecendo às urnas para cumprir o dever cívico de sustentar a“democracia
de umbigo” vigente. E você
ainda não sabe por que faltam bons modos na política brasileira?! Contar-lhe-ei
a fórmula da pólvora: nossos políticos não vêm de Marte!
Em estado bruto — o sentido
já desvelado à origem da expressão —, nascemos sob o signo da grosseria. Não há
escolha, não há alternativa. Outrossim, permanecer grosseiro ao longo da vida é
uma decisão. Há escolhas, há alternativas. Grosseiro é quem quer. E o nome do
boi que anda chifrando a vida em sociedade é “crise
de bons modos”. Faz-nos bárbaros decadentes; idiotas com muito samba no pé
e pouco raciocínio; boçais que optam acreditar que futebol é investimento e
educação — lato sensu! — é
perda de tempo; mamíferos de um Estado tetado. Uma crise grave.
Gravíssima.
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