quarta-feira, 19 de março de 2014

“Jornalismo no caos”, por Antonio S. Silva

O jornalismo por longos anos respondeu a seu papel de transformar acontecimentos em notícias, dando ordem ao caos, considerando a quantidade ilimitada de fatos noticiáveis. Sua missão seria funcionar como um farol a estabelecer pontos de visão seguros para os navegantes em alto mar e com pouca informação. Assim, aquilo que não passasse pela mídia, jamais havia acontecido – então, impossível encontrar o porto.
O mundo mudou com as novas tecnologias e as luzes ainda mais confundem os viajantes; de modo que pessoas em lugares distantes se comunicam freneticamente, muitas vezes disseminando pontos de vista contrários a uma ordem social limitada por poucos narradores midiáticos. Chegamos finalmente à era das tecnologias, com pessoas em rede, o que acirra a disputa pelas histórias e pela realidade (ideologia), sobretudo política.
Notoriamente, os nervos nas redações estão acirrados, com a incerteza do fluxo da audiência para diversas mídias instantâneas, as quais recebem cada vez mais atenção dos empresários em busca de visibilidade de seus produtos – as perdas de receitas comprometem as pequenas e grandes empresas de comunicação, reguladas pelo tempo. Porém, o mais complicado neste mundo de visões múltiplas está na organização da ordem social.
Discussão efervescente
Afinal, como conviver com um mundo hostil, com informações diversas, a volta do caos, que faz ressuscitar ideias esquecidas, muitas delas ameaçadoras de outrora? O farol da mídia tradicional, deste modo, segue sua missão e importância: evitar a confusão social, contrastar no horizonte, no conservadorismo da ordem institucional.
No momento político, as manifestações pelo direito de definir pontos a serem observados dos fatos, e apresentar os acontecimentos, colocam em lados opostos grandes redações e parte importante da blogosfera, que usa as redes sociais para o fluxo das mensagens. Sobressai um acirrado debate que envolve diferentes cenários, desde o global, passando pelo regional, nacional até o local. De uma forma ou de outra se vinculam, conforme as expectativas de mudanças nos diversos cenários políticos.
A propósito, quem tem razão: a Rússia, ao defender seus interesses econômicos, ou a Europa, ao desejar a liberdade democrática de países cuja filosofia se volta para os interesses neoliberais, como é o caso da Ucrânia no limite para a guerra? Como consequência, na América Latina qual caminho seguir, o fortalecimento da região em torno da abertura econômica internamente para um bloco, formado pelas principais economias da região, ou seguir os países desenvolvidos, sobretudo considerando as experiências econômicas dos Estados Unidos – na discussão da dependência? No Brasil, melhor se aproximar da China “comunista”, acreditar na política do governo eleito da Venezuela ou defender a abertura econômica, com gradativa redução do peso do Estado do bem-estar social, visto como paquidérmico pelos economistas liberais, que exigem aumento de impostos e travam o comércio de produtos?
Para cada destas questões seria notório observar discussão efervescente no jornalismo dito tradicional, que estabelece sua lógica nas narrativas, com base na realidade que fortalece o poder econômico para o desenvolvimento e igualdade social, apesar da concentração de renda.
Aos vencedores, as narrativas
Os textos formulados por jornalistas que estão nas ruas brasileiras ou mesmo em outros países, cada vez mais envolve a decisão das redações locais e ao mesmo tempo globalizadas, que se informam rapidamente por diferentes agências nacionais e internacionais. Pode-se acreditar, neste sentido, que os enunciados para as narrativas estão formulados quase previamente, assim, como as narrativas do mundo virtual. A batalha pela história e realidade se mostra evidente. Quem pode mais?
No rádio, na TV, jornais e revistas, as fontes fazem parte de uma narrativa hegemônica, mas por estar em disputa, provisórias, porém dominante na capacidade de apresentar a versão dos fatos, sobretudo confiáveis pela tradição e empreendedorismo de séculos. Ainda em formação, o jornalismo online se apresenta com suas versões, ao mesmo tempo conservadoras, radicais e questionadoras de uma ordem de política neoliberal e com abertura global. Porém, cada qual escolhe seus porta-vozes, personagens, sabendo previamente o cenário dos discursos que fazem parte do jogo.
Finalmente, as mediações são muitas para muitos emissores de informação. Assim, pode-se imaginar, na multiplicidade se vê surgir, a possível almejada democracia e liberdade para comunicar-se a partir da diferença, das disputas e diálogos no jornalismo e fora dele. A história narrada com diversos juízos, mãos e efetivamente com influência e interferência das (e nas) redes.
Politicamente há dominantes e dominados, mas num processo de mudança mais rápido do que antes, dos tempos de poucos narradores midiáticos, versões da história e visão de mundo. Enfim, na discutível pós-modernidade, para os vencedores, as narrativas.


Antonio S. Silva é jornalista e doutorando da UnB

“Os presos que viraram hóspedes”, por Pedro Valls Feu Rosa

No não tão distante ano 2000 li uma interessante notícia sobre os já lotados presídios norte-americanos. Falou-se que, diante da sempre crescente população carcerária e da cada vez maior escassez de recursos, o estado do Kentucky estava autorizando os diretores dos seus 85 presídios a cobrar até US$ 50 de diária de cada preso.
O primeiro presídio a aderir foi o da cidade de Owensboro, que decidiu cobrar de cada preso uma “taxa de admissão” de US$ 20, além de uma diária no mesmo valor, através da qual ele arcaria com os custos de sua “hospedagem”.
Na época achei curiosa a ideia, mas fiquei a pensar se ela efetivamente vingaria. A resposta chegou-me há poucos dias, através de uma detalhada reportagem produzida pela conceituada rede MSNBC.
Assim, em New York, uma diária de US$ 90 foi apresentada como a mais adequada para os usuários de cada “quarto” do sistema penitenciário. Segundo o governo, com os recursos arrecadados será reduzido o gasto total de US$ 1 bilhão com o sistema penitenciário.
No Arizona, em um condado chamado Maricopa, as refeições dos presos passaram a ser cobradas – custam US$ 1,25 cada. No estado do Iowa, onde se enfrenta um déficit de incríveis US$ 1,7 bilhão no orçamento do sistema penitenciário, sugeriu-se que fosse cobrado dos presos o fornecimento de papel higiênico.
Em New Jersey decidiu-se que cada preso pagará uma diária de US$ 5 para ficar em uma cela, e US$ 10 caso necessite ir para a enfermaria. Calculou-se, lá, que esta pequena cobrança reduzirá as despesas do estado com o sistema penitenciário em robustos US$ 300 mil a cada ano.
No estado da Virginia, as prisões estaduais já começaram a cobrar diárias em um valor até “camarada”: US$ 1. Já as diárias do Condado de Taney, no estado do Missouri, são bem mais “salgadas”: US$ 45.
O fato é que os norte-americanos estão convictos de que a prisão de criminosos é um sério fator de desestímulo ao crime. E, assim, segundo dados do Departamento de Justiça, relativos ao ano de 2003, um em cada 37 norte-americanos está ou já esteve preso em algum momento da vida. Constatou-se que 2,7% da população norte-americana, através de si ou de parentes, já tinha tido alguma “experiência com prisões”. Em números absolutos, no final do ano de 2002 incríveis 2,1 milhões de norte-americanos estavam a “ver o sol nascer quadrado”.
Como seria de se esperar, os custos que envolvem a manutenção da imensa quantidade de penitenciárias exigidas para a detenção de um tão grande número de pessoas explodiram – e o déficit orçamentário junto. Só para se ter uma ideia, no já citado estado do Kentucky o buraco orçamentário já estava em US$ 500 milhões – só para as prisões estaduais, bem entendido.
As consequências da escassez de recursos têm se manifestado na forma de falta de vagas nos presídios e na soltura antecipada de condenados, o que tem gerado críticas de diversos setores da Sociedade.
A política criminal do Brasil não é a mesma dos Estados Unidos, claro. Mas ainda assim nosso país tem investido como nunca na construção de novas prisões, e nossa população carcerária tem aumentado a olhos vistos. Será que brevemente chegaremos ao impasse a que chegaram os administradores das prisões norte-americanas? E será que é este realmente o caminho a ser seguido? Humildemente, acho que falta algo na política criminal da humanidade – um pouco mais de razão e um pouco menos de emoção!

(enviado por e-mail)

terça-feira, 18 de março de 2014

“O elefante malaio”, por Helder Caldeira

É absolutamente dramático o caso do desaparecimento do voo MH370 da Malaysia Airlines com 239 pessoas de 14 nacionalidades a bordo, dos quais 153 eram cidadãos chineses. O moderno Boeing 777-200 decolou da capital malaia Kuala Lampur no início da madrugada de sábado, 08 de março de 2014, com destino a Pequim, na China. Quase uma hora após a decolagem, o avião, em princípio, sumiu sem deixar quaisquer vestígios.
Desde então, num emaranhado de informações oficias desencontradas e muitas especulações, 25 países somam esforços para tentar descobrir o paradeiro de um gigante com quase 300 toneladas, equipado com o que há de mais moderno em termos de tecnologia de aviação. Para além da provável catástrofe, o acúmulo dos dias de buscas vãs e equivocadas é proporcional à atrocidade protagonizada pelas autoridades que, em última instância, parecem despidas de respeito aos familiares das possíveis vítimas.
Soa inverossímil crer que uma aeronave de tais proporções e com vários sistemas de comunicação que independem da ação humana possa desaparecer sem que os mais incríveis aparatos tecnológicos desenvolvidos nos últimos 50 anos sejam capazes de encontrar alguma pista de sua localização. Sabe-se, por exemplo, que governos e agências oficiais de espionagem são capazes de localizar com precisão um telefone celular, vasculhar seu histórico de navegação e chamadas e até rastrear e ler mensagens enviadas. Como não conseguem encontrar um avião? Inverossímil e bastante improvável.
Algo semelhante aconteceu em 30 de janeiro de 1979 com um Boeing 707 de uma companhia aérea brasileira. O avião cargueiro da antiga Varig deixou Tóquio, no Japão, com destino ao Rio de Janeiro e, concluiu-se naquele tempo, desapareceu misteriosamente no Oceano Pacífico. Nele viajavam seis tripulantes e uma carga de 20 toneladas, destacando-se uma valiosa coleção com 153 trabalhos do artista plástico nipo-brasileiro Manabu Mabe. Seis anos depois, o escritor e poeta baiano Oswaldo Profeta — também ex-rádio-operador da Força Aérea Brasileira (FAB) e amigo do comandante do cargueiro desaparecido — publicou o romance “O Mistério do 707” (Editora Hamburg, 1985, 272 págs.), onde defende a tese de que um erro na rota levou o avião da Varig, em plena vigência da Guerra Fria, a invadir o espaço aéreo da então União Soviética, onde foi abatido por ordem do presidente comunista Leonid Brejnev.
O visível — e não menos bizarro — embaraço de informações e dados da Malaysia Airlines e do governo também suscita o desvelar de teorias e pode colocar em xeque o já tumultuado ambiente do sudeste asiático. Nas primeiras e cruciais 48 horas apontaram que as buscas deveriam concentrar-se no Golfo da Tailândia, nas dimensões do suposto último contato do voo MH370, o que também incluiria domínios marítimos do Vietnã e do Camboja. Naquele momento, hipóteses como sequestro e terrorismo foram descartadas com veemência, apesar da constatação de que dois passageiros iranianos embarcaram com passaportes roubados em território tailandês. Mero acaso?
Logo depois, diante das fortes críticas internacionais, o governo da Malásia afirmou que outros dados indicavam a possibilidade de sequestro da aeronave, já que o Boeing 777-200 teria desviado violentamente à esquerda da rota prevista no plano de voo. Assim, teria cruzado a região sul da tensa República de Myanmar e alcançado o Estreito de Malaca, na Indonésia. Todos os olhos miraram a região e, novamente, nenhum êxito.
Contraditórios e beirando a imoralidade — propositalmente? —, a junta de países envolvidos nas buscas sacou da cartola novas informações. O avião da Malaysia teria deixado o Estreito de Malaca e seguido a noroeste, em direção ao Mar de Andamão, mais de sete horas após o último contato com o controle aéreo malaio, quando o piloto — que, apesar da experiência de quase 20 mil horas de voo, era muçulmano e convenientemente passou a integrar a lista de suspeitos — despediu-se com um singelo“boa noite”.
Uma semana depois do sumiço, com a ajuda do Serviço de Inteligência dos EUA, a área de busca foi maciçamente ampliada, tanto em mar — desde a Baía de Bengala até o Oceano Índico —, quanto em terra, incluindo os territórios da Índia, Bangladesh, Sri Lanka, Laos, Nepal e o Paquistão e Cazaquistão, destinos hipotéticos dos supostos sequestradores da aeronave.
Cumpre questionar: diante de tantas contradições, quem tem credibilidade suficiente para garantir que o voo MH370 não invadiu o espaço aéreo de um desses países e, diante da ausência de comunicação e consequente identificação, foi abatido? Para além de constrangedor e criminoso, o desencontro das autoridades permite a existência e força desta teoria.
Resta-nos a esperança de que, algum dia e de alguma forma, as famílias e amigos dos passageiros e tripulantes possam ter algum conforto nesta ausência, neste vazio. E mais: o caso malaio também deixa uma gravíssima e perturbadora advertência. Nunca tantos aviões cruzaram os céus do planeta; nunca antes tantas pessoas utilizaram o avião como meio de transporte; aeroportos lotados e malhas aéreas congestionadas; e países governados por incompetentes falaciosos — como o Brasil! — tratando com enorme desleixo o controle do tráfego aéreo e a aviação civil. Os especialistas insistem garantir que voar ainda é mais seguro que andar de bicicleta. Será mesmo?

O extraordinário jornalista William Waack, em sua habitual elegância na condução e mediação dos debates do programa GloboNews Painel, frequentemente faz uso da seguinte asserção: “é quase um dever do jornalista transformar raciocínios sofisticados em frases brutais”. Eia, pois, bruta conclusão: após uma semana de buscas ininterruptas, ninguém consegue encontrar um elefante escondido na garagem. Acredite se quiser!

segunda-feira, 10 de março de 2014

Momento de absoluta irracionalidade

A cultura do levar vantagem em tudo, independentemente de ser por merecimento ou regida pela legalidade, está nos levando ao abismo social, moral e político sem qualquer possibilidade de volta. Ainda agora, tivemos o caso do mensalão do PT, que é posterior ao do PSDB e, mesmo assim, foi o primeiro a ser julgado e, pelo jeito, será o único a receber punição. Escândalo elevado ao grau de atração jornalística, a um quase palco de entretenimento, não se nos apresenta como simples caso de dois pesos e duas medidas, mas de explícita demonstração, através de ampla e partidária cobertura da grande mídia, de que realmente convivemos com duas justiças, passando para a população a tangível explicação para o fato de termos tantos negros, pardos e mulatos, componentes das camadas mais pobres da sociedade, trancafiados nas verdadeiras masmorras que são os presídios brasileiros.
Não somos juristas e não vamos nos meter em tal seara, pois pelo visto há um comprometimento generalizado com a estruturação de brechas e de senões legais, que não podem ser sanados nem estancados, pois há um inconfessável desejo de que a lei jamais alcance o patamar de ser igual para todos. Como pode, por exemplo, um presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) dizer que inflou penas com o objetivo exclusivo de evitar prescrição; que afirma abertamente que um de seus pares tem capangas no Mato Grosso do Sul (?) e, para completar o quadro dantesco, deliberadamente coíbe o acesso de réus a processo no qual, agora se sabe, existe uma farta gama de documentos favoráveis aos condenados pelo mensalão petista, tomados como ao tempo da Alemanha nazista, um regime de exceção, como inimigos da nação, a ponto de introduzir na democracia brasileira o “domínio do fato”, pelo qual as provas são dispensadas, sobrepondo os indícios, as suposições e até os humores das figuras constituídas que se incumbem do julgamento.
A lógica racional, ou melhor, o amor e o respeito pelo próximo e os pilares da igualdade democrática em que se assentam os ideais de uma sociedade em busca da extirpação da discórdia social não deveriam permitir tal disparate, mas os grupos que se sentem beneficiados pela ilegalidade revestida com o manto da legalidade, que “parece mas não é”, defendem de unhas e dentes a obscuridade jurídica abraçada como se fosse luzidia centelha. Todavia, jamais se transformará em jurisprudência, porque até os seus aliados momentâneos sabem que não podem tê-la como regra – cientes de que os julgadores de hoje podem ser os julgados de amanhã. E quem pode admitir a hipótese de ser julgado sem provas, sob a égide esdrúxula do domínio do fato, que é instrumento tão elástico e flexível, que se Deus fosse colocado na cadeira do STF, ao certo seria condenado pelas atrocidades de que o ser humano, no exercício do livre arbítrio, se tornou capaz.
Nossa caixa de e-mails e nosso facebook estão repletos de mensagens eivadas de radicalismo: uns não querem Copa (e ela está aí com o maior número de ingressos vendidos na história do evento); outros querem dar um “rolezinho”; há os que continuam insistindo que o filho do ex-presidente Lula é dono de grande frigorífico; e acompanhando a viseira imposta pelo radicalismo, ainda tem gente repassando matéria publicada em jornal francês contra a Copa, apesar de o desmentido já ter sido divulgado, relatando que um criador de boatos do âmbito político burlou a reportagem internacional, colocando-a no mesmo nível de seus interesses radicais.
A essas alturas, o proeminente falsificador, sabedor de que não será punido, já prepara novas peripécias na internet, que serão prontamente repassadas pelos seguidores de sua linha de pensamento. Ou seja, não importa aos usuários das ferramentas de comunicação virtual se a mensagem é verdadeira ou circunscrita ao plano da legalidade, basta-lhe que o conteúdo sirva aos seus planos e projetos de poder.
Já dissemos em nossos livros que ninguém é animal marinho porque de vez em quando toma banho de mar e que, da mesma forma, ser humano algum pode ser considerado racional por usar a razão uma vez ou outra em sua vida cotidiana. Na atualidade, o que observamos claramente é que atravessamos no Brasil um momento da mais absoluta irracionalidade.


Autor: Carlos Lúcio Gontijo - poeta, escritor e jornalista. www.carlosluciogontijo.jor.br

07 lições que já deveríamos ter aprendido sobre o golpe de 1964 - Antonio Lassance

Há 50 anos, o Brasil foi capturado pela mais longa, mais cruel e mais tacanha ditadura de sua história.
Meio século é mais que suficiente tanto para aprendermos quanto para esquecermos muitas coisas.
É preciso escolher de que lado estamos diante dessas duas opções.
1ª. LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS
No período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de "Estado Novo". 
A ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em 1964 durou 21 anos. 
Vargas e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na escala do que ocorreu a partir de 1964.
Os torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto "Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª. lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS
Foram os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.
Mas a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda externa do governo Kennedy.
O golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas que os militares.
Sem os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª. LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA
Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e confidente, Elio Gaspari, em 1981:
"O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda dormem de botinas, e alguns  desavisados, como o presidenciável Aécio Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013).
Questionado depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos: “Ditadura, revolução, como quiserem”.
A ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª. LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA
Ditaduras são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo, pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem tudo.
A ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do superfaturamento.
Também ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf, aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª. LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ
O Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela ditadura.
A Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos.
A tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo.
Os corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura - deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional, que apoiava o regime).
6ª. LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM
Há duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente.
O primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009.
Para a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi uma branda (“ditabranda”), se comparada à da Argentina e à chilena.
A ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e torturados.
Como disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns, qualquer coisa agora parece ditadura.
A proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a prisão perpétua e a pena de morte.
O diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura.
Para se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª. LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO GOLPE
Por muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964.
A provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da Verdade.
A referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira.
A justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção ao Rio de Janeiro.
Se é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder. No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois, exilou-se no Uruguai  mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja para a capital um dia depois do golpe?
O Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação:
“31.mar.64 — O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”. Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a seguinte frase:
“Em 31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”.
De novo, o conto da Carochinha do 31 de março.
Ainda mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na lista dos presidentes da República.
A lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus atos riscando a expressão “Presidente da República”.  
No caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato Institucional nº. 12 (AI-12) "dava posse à junta militar" composta pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.
O AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”. Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo – que dirá três corpos. 
Não há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo?
O que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente, ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se irreversível. 
Os três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que história, afinal, estamos contando?
Uma história que ainda não faz sentido.

Uma história cujas lições ainda nos resta aprender.