sábado, 5 de abril de 2025

A falência da profissão de professor

As evidências são claras e incontornáveis: a profissão docente caminha, a passos largos, para a falência. Em 2018, o Brasil amargou a última posição no ranking global de status do professor, segundo levantamento da Varkey Foundation, publicado no portal G1.

Desde então, o cenário não só permanece crítico como se agravou, refletindo um projeto estrutural que desvaloriza quem ensina. Professores da educação básica seguem mal remunerados, expostos à violência e sem o mínimo de reconhecimento social ou condições materiais adequadas para exercer sua função. Por que, afinal, uma das profissões mais estratégicas para o futuro coletivo é tratada como descartável?

Em 2025, mais de 79% dos professores disseram já ter pensado em abandonar a carreira, segundo reportagem da IstoÉ Dinheiro. É alarmante, mas não surpreende. Os motivos? Baixos salários, condições precárias, violência simbólica e física, invisibilidade política. De novo, não são apenas números: são sintomas de um projeto que naturaliza a desvalorização estrutural de quem educa.

Os sinais estão por toda parte. Sou obrigado mais uma vez a insistir em minhas teses. No artigo “Sem rodeios: os professores ganham muito mal”, publicado no ICL Notícias em 13 de novembro de 2024, apontei o óbvio que o discurso oficial insiste em contornar: sem valorização real do trabalho docente, qualquer discurso sobre melhoria da educação é farsa. Não há dignidade possível na profissão que obriga seus profissionais a viverem em constante estresse financeiro, emocional e físico.

É nesse contexto que ONGs como Todos pela Educação, dentre outras, se tornam protagonistas do debate público, ocupando espaços de formulação sem jamais pisarem no solo concreto das escolas públicas brasileiras e suas salas de aulas precárias. Recebem milhões, sem enfrentar o calor escaldante daqueles ambientes superlotados e nem o desprezo institucional que se tornou norma.

Em artigo recente (“A tragédia da superlotação nas escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, no ICL em 18 de março de 2025), discuti o absurdo de crianças e professores confinados em salas com altas temperaturas, típicas de nosso verão — e ainda se espera que esses corpos suados e exaustos produzam excelência pedagógica.

A falência da profissão docente não é fruto do acaso. É o desdobramento coerente de um sistema que, como bem analisou Michel Foucault, disciplina os corpos para garantir a manutenção da ordem social. Nesse modelo, a educação pública — e com ela seus principais agentes, professores e alunos — deve ser domesticada, não emancipada.

Quando um docente recusa essa lógica de submissão, ergue a voz, denuncia as contradições estruturais e propõe caminhos de transformação, torna-se alvo. Pode ser silenciado, transferido compulsoriamente para outra unidade no ano letivo seguinte ou, mais frequentemente, simplesmente ignorado pelo aparato burocrático que finge escutá-lo.

Paulo Freire perseverava na ideia de que ensinar é um ato político. A recusa em garantir salários decentes e condições básicas é, portanto, uma declaração política. Um ataque às possibilidades de emancipação que o ato educativo carrega. Ao desvalorizar o professor, desarma-se a crítica. Ao abandonar a escola, neutraliza-se o pensamento.

Insisto, é preciso dizer com todas as letras: não há reconhecimento efetivo sem aumento salarial real. Esse foi o ponto central do artigo “Valorização dos professores sem aumento real de salário, é isso mesmo?” (ICL Notícias, 15 de janeiro de 2025). As promessas de reconhecimento, planos de carreira e bonificações condicionadas a metas absurdas são migalhas travestidas de política pública. Dignidade profissional que não aparece no contracheque é só propaganda.

Gramsci alertava para o papel dos intelectuais orgânicos na transformação social. Mas no Brasil de hoje, quem ainda escuta os professores — os verdadeiros intelectuais orgânicos da educação básica? As vozes autorizadas continuam sendo as dos “especialistas” de terno, das fundações empresariais e dos influencers educacionais que jamais pisaram em sala de aula num bairro periférico. A quem serve esse silenciamento?

Pierre Bourdieu demonstrou que a escola tende a reproduzir as estruturas de dominação social. Mas o que acontece quando o professor, peça central nesse processo, entra em colapso? Quando já não suporta, já não aguenta, já não encontra forças para continuar?

Um sistema que se alimenta da precariedade só pode se sustentar pela exploração e pela culpa. Se o aluno não aprende, a responsabilidade recai sobre o docente; se é bem-sucedido, as secretarias de Educação correm para capitalizar o feito na imprensa. Mas quem responsabiliza o Estado por não oferecer sequer o mínimo necessário para o trabalho pedagógico acontecer?

Já em “Sala de aula, um lugar perigoso” (ICL Notícias, 22 de março de 2025), discutiu como a violência contra os professores se tornou banalizada. Não apenas as agressões físicas ou verbais, mas a violência institucional de ser jogado em contextos hostis, com turmas de 40 alunos, sem ventilador, sem apoio, sem reconhecimento. Isso não é acaso. É a expressão planejada de um modelo excludente.

O historiador Edward P. Thompson, que além de seus estudos sobre a formação cultural da classe operária inglesa foi também professor de trabalhadores adultos, ensinou-nos a compreender a classe a partir da experiência vivida. E a experiência dos professores brasileiros, hoje, é de angústia, esgotamento e abandono.

A cada semestre, mais docentes adoecem. A cada ano, corremos o risco de talentos se afastam da profissão. Muitos entram com licenças médicas, desgastados física e emocionalmente, o que desfalca ainda mais as escolas. A cada discurso oficial, acumula-se mais cinismo, travestido de reconhecimento.

Em pesquisa intitulada Perfil e Desafios dos Professores da Educação Básica no Brasil, divulgada em 8 de maio de 2024 pelo Instituto Semesp e publicada na reportagem “Oito em cada dez professores já pensaram em desistir da carreira”, da IstoÉ Dinheiro, revelou que 79,4% dos docentes já consideraram abandonar a profissão.

O levantamento, realizado entre os dias 18 e 31 de março com 444 professores de todas as regiões do país, aponta como principais fatores o baixo retorno financeiro, a ausência de reconhecimento, a sobrecarga de trabalho e a violência escolar. Mais da metade dos entrevistados (52,3%) relataram ter sido vítimas de agressões verbais, intimidações, assédio moral, injúria racial e ameaças — muitas vezes praticadas por alunos, responsáveis e até colegas de trabalho.

Ainda assim, a matéria tende a revestir essa tragédia com possíveis elogios à “vocação” do professor. Ao exaltar a persistência individual (talvez “resiliência”), o texto apaga o papel do Estado e reforça a lógica meritocrática que isenta os responsáveis pelas políticas públicas.

Não se trata de desconhecimento, mas de fidelidade ideológica: o capital, sobretudo o financeiro, não deseja professores pensantes, deseja técnicos obedientes. Não quer sujeitos críticos, mas “operários” silenciosos. Reduz a educação a um braço da produtividade, e a docência a um mecanismo de controle social.

É preciso compensação justa, jornada humana, espaço de escuta e reconstrução da autoridade docente. É preciso romper com o cinismo tecnocrático que fala em “inovação pedagógica” sem ouvir os profissionais que sustentam, com o próprio corpo, o frágil edifício da escola pública. Nada mudará enquanto o professor for tratado como uma peça substituível num sistema que lucra com a precarização. A crise da profissão docente não é colateral — é central. E se nada for feito com urgência, não será apenas o professor que faltará à escola. Será a própria escola que deixará de cumprir seu papel civilizatório.

¨      Novas promessas para os professores: será que agora vai?

Anunciar um programa federal para professores parece louvável — é claro. Mas diante do cenário crônico de desvalorização, isso pode soar, para a categoria, como uma medida paliativa. É como usar um balde d’água para apagar um incêndio na floresta.

Lançado com certa euforia pelo governo federal em 24 de janeiro de 2025, o programa “Mais Professores para o Brasil” é de adesão voluntária e sem força obrigatória legal — tanto para professores quanto para as redes públicas de ensino básico. Pretende alcançar cerca de 2,3 milhões de docentes da educação básica, com ações como formação inicial e continuada, bolsas de estudo, estímulo à permanência em áreas vulneráveis e parcerias com universidades públicas. Um dos destaques é a Bolsa Mais Professores: R$ 2.100 mensais, além da remuneração local, vinculada à participação em curso de pós-graduação lato sensu em áreas pedagógicas e voltada à atuação em regiões com carência docente.

Anunciou-se também, naquela ocasião, um reajuste de 6,27% no Piso Salarial Profissional Nacional do magistério público da educação básica, elevando-o para R$ 4.867,77, referente a 40 horas semanais (e, convenhamos, não é lá essas coisas). Contudo, sua efetiva aplicação ainda depende da adesão e do comprometimento de estados e municípios.

O novo programa apresenta, por exemplo, a Prova Nacional Docente, de caráter diagnóstico e voluntário, que poderá servir como referência futura para concursos públicos, a critério das redes. Mas não há exigência para que realizem seleções públicas para contratação de professores, tampouco sanções para quem descumprir o piso. Assim, tudo permanece no plano das intenções.

Falar em valorização, portanto, sem garantir o cumprimento do piso nacional torna tudo apenas discurso. Há estados e municípios que ignoram a legislação, persistindo na omissão. Nesse contexto, o Ministério Público tem o dever constitucional de agir com rigor, baseado especialmente no artigo 127 da Constituição Federal (que o define, dentre outras, na ação e na defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais) e na Lei nº 11.738/2008 (que regulamenta o Piso Nacional do Magistério), fiscalizando e cobrando judicialmente dos gestores locais o cumprimento efetivo do piso, assegurando, assim, que os direitos dos professores sejam respeitados na prática.

Piorando o quadro, em diversas escolas públicas Brasil afora falta até giz. Não raro, docentes adoecem, dobram jornadas e improvisam aulas em salas com 40 estudantes ou mais. Quando um professor ou uma professora falta, em algumas ocasiões colegas são pressionados a assumir duas turmas já superlotadas em uma só sala. O programa federal fala em valorização, mas ignora esse cotidiano precário em que nem o básico está garantido.

Em artigos anteriores publicados neste espaço, tratei de questões centrais sobre a educação pública. Apenas para citar dois exemplos: em 18 de março de 2025, no artigo “A tragédia da superlotação nas escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, abordei como salas superlotadas configuram violência simbólica contra professores e estudantes. Já em 13 de novembro de 2024, no texto “Sem rodeios: os professores ganham muito mal”, denunciei a ampliação da jornada docente sem a justa compensação salarial. Esses registros permanecem acessíveis, e os problemas, infelizmente, também.

As gestões estaduais e municipais seguem terceirizando a culpa. Jogam para o governo federal a responsabilidade, mesmo quando são elas que, na maioria das vezes, reiterando, desrespeitam o piso. E aí, a estrutura federativa, nesse campo, se mostra disfuncional.

O programa federal “Mais Professores para o Brasil”, portanto, se apresenta mais como um conjunto de incentivos do que como uma política pública com força vinculante. Sem mecanismos concretos para cobrar sua execução, as propostas correm o risco de permanecer distantes da realidade concreta das escolas e da rotina exaustiva dos professores.

Ainda que bem-intencionado, o plano ignora a raiz da crise: o sistema que esgota a docência e empobrece quem sustenta nos ombros a escola pública. Não há futuro promissor com salários baixos e desrespeito institucionalizado.

Enquanto os salários forem tratados como despesa e não como investimento, qualquer projeto fracassará. Sem atacar os interesses econômicos que sustentam essa lógica, resta o vazio das solenidades.

É fácil celebrar políticas em Brasília. Difícil é garantir que cheguem às periferias de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Altamira, no interior do Pará, ou Feira de Santana, no sertão da Bahia; aos rincões de Manacapuru, no Amazonas, Santana do Ipanema, em Alagoas, São Raimundo Nonato, no semiárido do Piauí, às salas precárias de Eldorado dos Carajás, também no Pará, ou Coronel Sapucaia, na fronteira de Mato Grosso do Sul. É lá que a profissão se desfaz diante do abandono.

Nas promessas governamentais, sempre falta algo: coragem para enfrentar as raízes estruturais. O que parece novidade muitas vezes é reaproveitamento. Iniciativas recicladas sob novas siglas e slogans.

Quando o ministro da Educação, Camilo Santana, fala em “grande pacto nacional” (como declarou em audiência pública no Senado, no dia 16 de abril de 2024, ao defender a reforma do ensino médio — que não poucos professores rejeitam), lembro-me, enquanto professor de História, de quantos pactos fracassaram. Historicamente, os únicos que deram certo foram acordos entre as “elites”, como a “política dos governadores” na República Velha, eficaz por atender aos interesses dominantes. Pactos que envolvem direitos da classe trabalhadora, como os dos professores, não prosperam sem compromisso real com a dignidade de quem ensina.

O tempo do improviso acabou. O que professores querem é salário digno, jornada justa e segurança. Isso não se resolve apenas com programas que não enfrentam a lógica que explora o trabalho docente.

As medidas recentes voltadas à educação pública merecem reconhecimento, mas é preciso ir além das boas intenções. Talvez seja hora de considerar propostas mais ousadas, como a federalização dos salários dos docentes da educação básica (sugestão que ouvi do professor carioca André Tenreiro). A medida poderia garantir equidade salarial, reduzir desigualdades regionais e conferir maior dignidade à profissão. Afinal, a educação não se transforma apenas com discursos — por melhores que sejam —, mas com coragem para mudanças estruturais efetivas.

 

Fonte: ICL Notícias

 

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