A
falência da profissão de professor
As
evidências são claras e incontornáveis: a profissão docente caminha, a passos
largos, para a falência. Em 2018, o Brasil amargou a última posição no ranking
global de status do professor, segundo
levantamento da Varkey
Foundation, publicado no portal G1.
Desde
então, o cenário não só permanece crítico como se agravou, refletindo um
projeto estrutural que desvaloriza quem ensina. Professores da educação básica
seguem mal remunerados, expostos à violência e sem o mínimo de reconhecimento
social ou condições materiais adequadas para exercer sua função. Por que,
afinal, uma das profissões mais estratégicas para o futuro coletivo é tratada
como descartável?
Em
2025, mais de 79% dos professores disseram já ter pensado em abandonar a
carreira, segundo reportagem da IstoÉ Dinheiro. É alarmante, mas não
surpreende. Os motivos? Baixos salários, condições precárias, violência
simbólica e física, invisibilidade política. De novo, não são apenas números:
são sintomas de um projeto que naturaliza a desvalorização estrutural de quem
educa.
Os
sinais estão por toda parte. Sou obrigado mais uma vez a insistir em minhas
teses. No artigo “Sem rodeios: os professores ganham muito mal”, publicado no
ICL Notícias em 13 de novembro de 2024, apontei o óbvio que o discurso oficial
insiste em contornar: sem valorização real do trabalho docente, qualquer
discurso sobre melhoria da educação é farsa. Não há dignidade possível na
profissão que obriga seus profissionais a viverem em constante estresse
financeiro, emocional e físico.
É nesse
contexto que ONGs como Todos pela Educação, dentre outras, se tornam
protagonistas do debate público, ocupando espaços de formulação sem jamais
pisarem no solo concreto das escolas públicas brasileiras e suas salas de aulas
precárias. Recebem milhões, sem enfrentar o calor escaldante daqueles ambientes
superlotados e nem o desprezo institucional que se tornou norma.
Em
artigo recente (“A tragédia da superlotação nas
escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, no ICL em 18 de
março de 2025), discuti o absurdo de crianças e professores confinados em salas
com altas temperaturas, típicas de nosso verão — e ainda se espera que esses
corpos suados e exaustos produzam excelência pedagógica.
A
falência da profissão docente não é fruto do acaso. É o desdobramento coerente
de um sistema que, como bem analisou Michel Foucault, disciplina os corpos para
garantir a manutenção da ordem social. Nesse modelo, a educação pública — e com
ela seus principais agentes, professores e alunos — deve ser domesticada, não
emancipada.
Quando
um docente recusa essa lógica de submissão, ergue a voz, denuncia as
contradições estruturais e propõe caminhos de transformação, torna-se alvo.
Pode ser silenciado, transferido compulsoriamente para outra unidade no ano
letivo seguinte ou, mais frequentemente, simplesmente ignorado pelo aparato
burocrático que finge escutá-lo.
Paulo
Freire perseverava na ideia de que ensinar é um ato político. A recusa em
garantir salários decentes e condições básicas é, portanto, uma declaração
política. Um ataque às possibilidades de emancipação que o ato educativo
carrega. Ao desvalorizar o professor, desarma-se a crítica. Ao abandonar a
escola, neutraliza-se o pensamento.
Insisto,
é preciso dizer com todas as letras: não há reconhecimento efetivo sem aumento
salarial real. Esse foi o ponto central do artigo “Valorização dos professores sem
aumento real de salário, é isso mesmo?” (ICL Notícias, 15 de janeiro de 2025).
As promessas de reconhecimento, planos de carreira e bonificações condicionadas
a metas absurdas são migalhas travestidas de política pública. Dignidade
profissional que não aparece no contracheque é só propaganda.
Gramsci
alertava para o papel dos intelectuais orgânicos na transformação social. Mas
no Brasil de hoje, quem ainda escuta os professores — os verdadeiros
intelectuais orgânicos da educação básica? As vozes autorizadas continuam sendo
as dos “especialistas” de terno, das fundações empresariais e dos influencers
educacionais que jamais pisaram em sala de aula num bairro periférico. A quem
serve esse silenciamento?
Pierre
Bourdieu demonstrou que a escola tende a reproduzir as estruturas de dominação
social. Mas o que acontece quando o professor, peça central nesse processo,
entra em colapso? Quando já não suporta, já não aguenta, já não encontra forças
para continuar?
Um
sistema que se alimenta da precariedade só pode se sustentar pela exploração e
pela culpa. Se o aluno não aprende, a responsabilidade recai sobre o docente;
se é bem-sucedido, as secretarias de Educação correm para capitalizar o feito
na imprensa. Mas quem responsabiliza o Estado por não oferecer sequer o mínimo
necessário para o trabalho pedagógico acontecer?
Já
em “Sala de aula, um lugar perigoso” (ICL Notícias,
22 de março de 2025), discutiu como a violência contra os professores se tornou
banalizada. Não apenas as agressões físicas ou verbais, mas a violência
institucional de ser jogado em contextos hostis, com turmas de 40 alunos, sem
ventilador, sem apoio, sem reconhecimento. Isso não é acaso. É a expressão
planejada de um modelo excludente.
O
historiador Edward P. Thompson, que além de seus estudos sobre a formação
cultural da classe operária inglesa foi também professor de trabalhadores
adultos, ensinou-nos a compreender a classe a partir da experiência vivida. E a
experiência dos professores brasileiros, hoje, é de angústia, esgotamento e
abandono.
A cada
semestre, mais docentes adoecem. A cada ano, corremos o risco de talentos se
afastam da profissão. Muitos entram com licenças médicas, desgastados física e
emocionalmente, o que desfalca ainda mais as escolas. A cada discurso oficial,
acumula-se mais cinismo, travestido de reconhecimento.
Em
pesquisa intitulada Perfil e Desafios dos Professores da Educação Básica no
Brasil, divulgada em 8 de maio de 2024 pelo Instituto Semesp e publicada na
reportagem “Oito em cada dez professores já pensaram em desistir da carreira”,
da IstoÉ Dinheiro, revelou que 79,4% dos docentes já consideraram abandonar a
profissão.
O
levantamento, realizado entre os dias 18 e 31 de março com 444 professores de
todas as regiões do país, aponta como principais fatores o baixo retorno
financeiro, a ausência de reconhecimento, a sobrecarga de trabalho e a
violência escolar. Mais da metade dos entrevistados (52,3%) relataram ter sido
vítimas de agressões verbais, intimidações, assédio moral, injúria racial e
ameaças — muitas vezes praticadas por alunos, responsáveis e até colegas de
trabalho.
Ainda
assim, a matéria tende a revestir essa tragédia com possíveis elogios à
“vocação” do professor. Ao exaltar a persistência individual (talvez
“resiliência”), o texto apaga o papel do Estado e reforça a lógica
meritocrática que isenta os responsáveis pelas políticas públicas.
Não se
trata de desconhecimento, mas de fidelidade ideológica: o capital, sobretudo o
financeiro, não deseja professores pensantes, deseja técnicos obedientes. Não
quer sujeitos críticos, mas “operários” silenciosos. Reduz a educação a um
braço da produtividade, e a docência a um mecanismo de controle social.
É
preciso compensação justa, jornada humana, espaço de escuta e reconstrução da
autoridade docente. É preciso romper com o cinismo tecnocrático que fala em
“inovação pedagógica” sem ouvir os profissionais que sustentam, com o próprio
corpo, o frágil edifício da escola pública. Nada mudará enquanto o professor
for tratado como uma peça substituível num sistema que lucra com a
precarização. A crise da profissão docente não é colateral — é central. E se
nada for feito com urgência, não será apenas o professor que faltará à escola.
Será a própria escola que deixará de cumprir seu papel civilizatório.
¨ Novas promessas para
os professores: será que agora vai?
Anunciar
um programa federal para professores parece louvável
— é claro. Mas diante do cenário crônico de desvalorização, isso pode soar,
para a categoria, como uma medida paliativa. É como usar um balde d’água para
apagar um incêndio na floresta.
Lançado
com certa euforia pelo governo federal em 24 de janeiro de 2025, o programa “Mais Professores para o Brasil” é de adesão
voluntária e sem força obrigatória legal — tanto para professores quanto para
as redes públicas de ensino básico. Pretende alcançar cerca de 2,3 milhões de
docentes da educação básica, com ações como formação inicial e continuada,
bolsas de estudo, estímulo à permanência em áreas vulneráveis e parcerias com
universidades públicas. Um dos destaques é a Bolsa Mais Professores: R$ 2.100
mensais, além da remuneração local, vinculada à participação em curso de
pós-graduação lato sensu em áreas pedagógicas e voltada à atuação em regiões
com carência docente.
Anunciou-se
também, naquela ocasião, um reajuste de 6,27% no Piso Salarial Profissional
Nacional do magistério público da educação básica, elevando-o para R$ 4.867,77,
referente a 40 horas semanais (e, convenhamos, não é lá essas coisas). Contudo,
sua efetiva aplicação ainda depende da adesão e do comprometimento de estados e
municípios.
O novo
programa apresenta, por exemplo, a Prova Nacional Docente, de caráter
diagnóstico e voluntário, que poderá servir como referência futura para
concursos públicos, a critério das redes. Mas não há exigência para que
realizem seleções públicas para contratação de professores, tampouco sanções
para quem descumprir o piso. Assim, tudo permanece no plano das intenções.
Falar
em valorização, portanto, sem garantir o cumprimento do piso nacional torna
tudo apenas discurso. Há estados e municípios que ignoram a legislação,
persistindo na omissão. Nesse contexto, o Ministério Público tem o dever
constitucional de agir com rigor, baseado especialmente no artigo 127 da
Constituição Federal (que o define, dentre outras, na ação e na defesa da ordem
jurídica e dos interesses sociais) e na Lei nº 11.738/2008 (que regulamenta o
Piso Nacional do Magistério), fiscalizando e cobrando judicialmente dos
gestores locais o cumprimento efetivo do piso, assegurando, assim, que os
direitos dos professores sejam respeitados na prática.
Piorando
o quadro, em diversas escolas públicas Brasil afora falta até giz. Não raro,
docentes adoecem, dobram jornadas e improvisam aulas em salas com 40 estudantes
ou mais. Quando um professor ou uma professora falta, em algumas ocasiões
colegas são pressionados a assumir duas turmas já superlotadas em uma só sala.
O programa federal fala em valorização, mas ignora esse cotidiano precário em
que nem o básico está garantido.
Em
artigos anteriores publicados neste espaço, tratei de questões centrais sobre a
educação pública. Apenas para citar dois exemplos: em 18 de março de 2025, no
artigo “A tragédia da superlotação nas
escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, abordei como salas
superlotadas configuram violência simbólica contra professores e estudantes. Já
em 13 de novembro de 2024, no texto “Sem rodeios: os professores ganham
muito mal”,
denunciei a ampliação da jornada docente sem a justa compensação salarial.
Esses registros permanecem acessíveis, e os problemas, infelizmente, também.
As
gestões estaduais e municipais seguem terceirizando a culpa. Jogam para o
governo federal a responsabilidade, mesmo quando são elas que, na maioria das
vezes, reiterando, desrespeitam o piso. E aí, a estrutura federativa, nesse
campo, se mostra disfuncional.
O
programa federal “Mais Professores para o Brasil”, portanto, se apresenta mais
como um conjunto de incentivos do que como uma política pública com força
vinculante. Sem mecanismos concretos para cobrar sua execução, as propostas
correm o risco de permanecer distantes da realidade concreta das escolas e da
rotina exaustiva dos professores.
Ainda
que bem-intencionado, o plano ignora a raiz da crise: o sistema que esgota a
docência e empobrece quem sustenta nos ombros a escola pública. Não há futuro
promissor com salários baixos e desrespeito institucionalizado.
Enquanto
os salários forem tratados como despesa e não como investimento, qualquer
projeto fracassará. Sem atacar os interesses econômicos que sustentam essa
lógica, resta o vazio das solenidades.
É fácil
celebrar políticas em Brasília. Difícil é garantir que cheguem às periferias de
Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Altamira, no interior do Pará, ou Feira de
Santana, no sertão da Bahia; aos rincões de Manacapuru, no Amazonas, Santana do
Ipanema, em Alagoas, São Raimundo Nonato, no semiárido do Piauí, às salas
precárias de Eldorado dos Carajás, também no Pará, ou Coronel Sapucaia, na
fronteira de Mato Grosso do Sul. É lá que a profissão se desfaz diante do
abandono.
Nas
promessas governamentais, sempre falta algo: coragem para enfrentar as raízes
estruturais. O que parece novidade muitas vezes é reaproveitamento. Iniciativas
recicladas sob novas siglas e slogans.
Quando
o ministro da Educação, Camilo Santana, fala em “grande pacto nacional” (como
declarou em audiência pública no Senado, no dia 16 de abril de 2024, ao
defender a reforma do ensino médio — que não poucos professores rejeitam),
lembro-me, enquanto professor de História, de quantos pactos fracassaram.
Historicamente, os únicos que deram certo foram acordos entre as “elites”, como
a “política dos governadores” na República Velha, eficaz por atender aos
interesses dominantes. Pactos que envolvem direitos da classe trabalhadora,
como os dos professores, não prosperam sem compromisso real com a dignidade de
quem ensina.
O tempo
do improviso acabou. O que professores querem é salário digno, jornada justa e
segurança. Isso não se resolve apenas com programas que não enfrentam a lógica
que explora o trabalho docente.
As
medidas recentes voltadas à educação pública merecem reconhecimento, mas é
preciso ir além das boas intenções. Talvez seja hora de considerar propostas
mais ousadas, como a federalização dos salários dos docentes da educação básica
(sugestão que ouvi do professor carioca André Tenreiro). A medida poderia
garantir equidade salarial, reduzir desigualdades regionais e conferir maior
dignidade à profissão. Afinal, a educação não se transforma apenas com
discursos — por melhores que sejam —, mas com coragem para mudanças estruturais
efetivas.
Fonte:
ICL Notícias
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