A
intenção do governo de Michel Temer (PMDB) de sabotar a educação pública veio à
tona em 8 de setembro, logo que o Índice de Desenvolvimento da Educação (Ideb)
mostrou que o ensino médio continuava patinando, sem atingir a meta estipulada
para 2015. No mesmo dia, o ministro Mendonça Filho anunciou que tomaria medidas
urgentes para resolver os problemas de uma etapa marcada por evasão e notas
baixas e longe de oferecer formação adequada para quem vai para a universidade
ou precisa ingressar no mercado de trabalho.
Nos
dias seguintes, a secretária-executiva do Ministério da Educação (MEC), a
tucana Maria Helena Guimarães Castro, criticou a escola e defendeu uma reforma
baseada na fragmentação do curso, para torná-lo mais interessante. O
protagonismo do estudante ficaria limitado à escolha, lá pela metade do segundo
ano, se vai continuar tendo disciplinas acadêmicas, com vistas ao ensino
superior, ou optar por disciplinas técnicas, com direito a canudo de técnico de
nível médio no final. A ampliação do tempo na escola também foi defendida, mas
os urgentes investimentos estruturais, como modernização dos prédios, e na
carreira docente, com mais formação e salários adequados, nem sequer foram
abordados – possivelmente por não caberem na Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 241 que engessa gastos com educação, entre outros, por duas décadas.
Baseada
nesses preceitos, a Medida Provisória (MP) 746, editada no último dia 22 de
setembro e anunciada com pompa e circunstância pela equipe de Temer, causou
indignação. Educadores, estudantes, gestores, trabalhadores e movimentos em
defesa da educação, envolvidos nos debates para a construção coletiva e
democrática da Base Nacional Curricular Comum, determinada pelo Plano Nacional
de Educação (PNE), foram todos atropelados. E a discussão para o detalhamento
das competências que os estudantes brasileiros devem dominar ao longo de cada
etapa escolar pode ser jogado no lixo com uma proposta que Mendonça Filho e
seus auxiliares tiraram da cartola da noite para o dia.
"Alguns
iluminados se fecharam em um gabinete e decidiram tirar educação física, artes,
e nem foi com projeto de lei. Não se consultou a população. O Estado
democrático de direito é aquele que amplia direitos, aquele que complementa a
democracia representativa mediante a participação popular", disse em 26 de
setembro o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, em
aula ministrada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). A
constitucionalidade da MP está sendo questionada no STF pelo Psol e pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Diante de tamanha
reação, é provável até que a medida seja estrategicamente retirada. Mas não esquecida.
Afinal, é uma reforma moldada e costurada com a "cabeça de mercado"
que domina o governo, sob medida para aos interesses de moldar um povo que não
pense nem reclame, apenas trabalhe.
Consenso
entre todos os críticos é o caráter autoritário da medida. "O cotidiano
das escolas vai ser alterado profundamente com mudanças no formato de
distribuição de aulas. E o novo percurso de escolarização vai fazer com que as
escolas públicas repensem a distribuição das aulas", avalia o coordenador
da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. "O preocupante
é uma decisão de tal envergadura ser encaminhada por medida provisória,
mecanismo oriundo de decreto da ditadura, pelo qual o Executivo passa a ser um
superlegislador, quando deve ser tomada após debate com os professores e com os
alunos, como aconteceu em diversas partes do mundo. Uma decisão temerária e que
precisa ser discutida e combatida pela sociedade", avalia.
Mordaça
Permitir
ao secundarista escolher entre um percurso mais dedicado a ciências humanas, da
natureza, matemática ou formação técnica-profissionalizante de nível médio,
como prevê o projeto, é positivo. "Porém, no núcleo comum, todos devem
aprender as questões relacionadas à cidadania e ao pensamento crítico, como nas
aulas de Filosofia e Sociologia, que ficam escanteadas", ressalta Cara.
Segundo
ele, a oferta dessas disciplinas será opção das escolas, que dificilmente
poderão ampliar o número de matrículas e manter uma grade além da determinação
da lei. "Sem esse processo de construção crítica na escolarização, teremos
uma sociedade com ampla maioria acrítica; e ainda mais cindida entre aqueles
que têm uma formação técnica e tecnológica, para o mundo do trabalho, e aqueles
com uma formação mais ampla, que serão os tomadores de decisão."
Desigualdade
A
exemplo de projetos em tramitação, como a PEC 241, que congela investimentos, e
medidas já tomadas, como cortes em programas sociais, a proposta de reforma
terá como um dos efeitos o agravamento da desigualdade. Primeiro, por causa da
divisão do curso, ofertando para poucos uma educação ampla. Para a maioria, que
mais necessita de ensino de qualidade, aceleração dos estudos para o ingresso
no mundo do trabalho, como diz Daniel Cara. Segundo, pelo estímulo à ampliação
do ensino em tempo integral, que terá efeito contrário. Ter mais tempo na
escola é necessário. Mas essa escola precisa ser discutida e ser para todos.
"Se
for para reproduzir o que hoje já acontece na escola pública, com aula ruim,
desinteressante, isso não vai adiantar em nada." A presidenta interina da
União Nacional dos Estudantes (UNE), Moara Correa Saboia, vislumbra maior
abismo entre os alunos das redes pública e privada. "Os filhos da classe
trabalhadora terão formação mais pobre, mecânica. Tudo coerente com o pensamento
de Mendonça Filho e seu grupo, que sempre votaram contra tudo criado para
democratizar o acesso à universidade."
O
projeto é temerário também por abrir ainda mais brechas para a entrada do setor
privado no ensino público, aumentando seus lucros. "A MP reúne questões
perigosas, como liberar processos administrativos do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação para transferência de recursos, estimular parcerias
público-privadas, abrindo espaço para a privatização com a flexibilização a
partir das disciplinas profissionalizantes", diz Moara. A presença privada
é crescente também a partir de convênios com governos de diversos estados para
o apoio ou gestão das escolas em tempo integral.
Quanto
ao objetivo de reduzir as taxas de abandono, a proposta de Temer poderá ter
efeito contrário. Ao estimular o ensino em tempo integral, desestimula a rede a
continuar oferecendo ensino noturno – quando deveria incentivá-lo e melhorar
sua qualidade. "Como eu precisava ajudar minha família, fiz ensino médio
noturno", lembra a presidenta do Sindicato dos Professores do Ensino
Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, a
Bebel. "A MP dialoga com o enxugamento de gastos em saúde e educação e com
o tratamento que será dado aos servidores desses setores no país – o que está
diretamente ligado ao desmonte do ensino público."
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