Josué Monteiro: ‘A incoerência de Eduardo
Leite ao propor um ‘Plano Marshall’ para o RS”
Em meio à devastação
provocada no Rio Grande do Sul por mais um evento climático extremo, o
governador gaúcho Eduardo Leite, do PSDB, afirma que seu estado precisará de um
“Plano Marshall” de reconstrução. A declaração de Leite merece ser melhor
explorada, uma vez que ele é um expoente da renovação de lideranças da direita
democrática brasileira e que seu campo político atua sistematicamente para
bloquear iniciativas deste tipo em nossa democracia.
Primeiro, é preciso
entender que o Plano Marshall não se resume apenas a um conjunto de
investimentos e obras financiados pelos Estados Unidos para reconstruir a
indústria e a infraestrutura europeias após a Segunda Guerra. Na verdade, o
Plano Marshall foi um componente crucial de um processo mais abrangente: a
criação do Estado de bem-estar social na Europa.
O Estado de bem-estar
social foi um pacto social amplo, global, baseado fundamentalmente em diminuir
os lucros do capital e investir a maior parte dos ganhos da economia na maioria
da população europeia, sobretudo na classe trabalhadora. O Plano Marshall em si
viabilizou obras em infraestrutura elétrica, de transportes, comunicação, mas
também em saúde, educação e assistência social, que formam a rede de proteção
social fundamental para dar liga ao pacto social pós-guerra na Europa.
O próprio papel do
financiamento estadunidense é apenas parte da história: ainda mais importante
foi o estabelecimento de sistemas de tributação progressiva nos países
europeus, fazendo com que os mais ricos e as empresas pagassem grande parte dos
custos do pacto social. Nesse processo, o papel do Estado na indução econômica
e o fortalecimento dos sindicatos como atores coletivos foi decisivo para
garantir a unidade nacional em torno dos objetivos de desenvolvimento e
proteção social. O resultado não foi apenas a reconstrução física das nações
europeias, mas a constituição de sociedades com os menores índices de
desigualdade da histórica do capitalismo.
Todo esse pacto foi
destruído a partir dos anos 1970, por uma série de fatores estruturais do
capitalismo, bem como pela emergência de uma nova hegemonia política, o
neoliberalismo, cujo o partido de Eduardo Leite é um dos representantes no
Brasil. Para além das questões econômicas que atravessam o projeto neoliberal,
seu coração está em legitimar e naturalizar as desigualdades de todo tipo,
transferindo do público para o privado a virtude de combater injustiças e
iniquidades, ou seja, conferindo ao mercado o papel central na estruturação e
coesão de um novo pacto social.
- Neoliberalismo em todo o planeta
O resultado do
neoliberalismo em todo o planeta foi a explosão das desigualdades, expressas
atualmente em duas dimensões. A primeira é a óbvia disparidade de renda,
onde o 1% mais rico concentra dois terços da riqueza gerada em todo o mundo,
conforme aponta o relatório da Oxfam sobre a desigualdade global.
A segunda dimensão é
justamente a emergência climática. É impossível ignorar a intensificação dos
processos de desenvolvimento predatório em relação à natureza nas últimas
décadas e a incapacidade global de coordenar esforços para mitigar os efeitos
prejudiciais da atividade humana sobre o planeta sem reconhecer a centralidade
da competição neoliberal e das múltiplas desigualdades que essa hegemonia
promove. Essas desigualdades destroem os laços sociais internos dos países e a
solidariedade entre as nações.
Hoje, graças aos
numerosos modelos científicos, temos a certeza de que os eventos climáticos
extremos aumentarão em frequência e intensidade, como testemunhamos no Rio
Grande do Sul, um estado que já havia enfrentado uma situação semelhante em
setembro de 2023, quando Eduardo Leite, já governador na época, pouco fez para
mobilizar a sociedade do seu estado para prevenir ou mitigar os efeitos de
futuros eventos climáticos extremos. Essa inação é coerente com seu projeto
político, no qual o Estado não desempenha o papel de organizar a economia. No
jogo do mercado, infelizmente, a tragédia que assola a população gaúcha é
considerada lance normal.
A incoerência de Leite
aparece no seu apelo por um plano Marshall, uma vez que esse tipo de pacto
social e de plano de reconstrução requer que a sociedade derrote o mercado e
tome as rédeas de um novo projeto de desenvolvimento. Esse projeto deve ser
baseado no combate às desigualdades de renda (com uma efetiva taxação de super
ricos) e no combate às desigualdades climáticas, através de uma poderosa onda
de investimentos nas periferias das grandes e médias cidades e na transição
energética justa, com geração de empregos e combate à pobreza, no lugar das
fórmulas mercantis de enfrentamento as mudanças climáticas, que só servem para
gerar mais lucros e enxugar o gelo – até que venha mais um desastre.
¨
‘Desastre tem impacto
no conjunto econômico de todo o País’, diz Fernando Rocha
O chefe do
Departamento de Estatísticas do Banco Central, Fernando Rocha, afirmou que a
situação de calamidade do Rio Grande do Sul trará impacto para as projeções de
mercado, que se dividirão em antes e depois da catástrofe, que afetará o
conjunto econômico do País.
“Quando se olha em
termos econômicos, de projeção, esse desastre tem impacto na safra agrícola, no
comércio, nas vendas, no emprego, no conjunto da atividade econômica do Rio
Grande do Sul e, por conta disso, de todo o País. Claro que você tinha um conjunto
de projeções anterior a esse evento e terá um conjunto de projeções posterior a
esse evento”, afirmou na tarde desta segunda-feira, 6, durante transmissão da
Live BC sobre o Relatório de Mercado Focus.
Rocha explicava que a
pesquisa de mercado compilada semanalmente pelo BC é importante por mostrar
como os agentes de mercado veem as evoluções de variáveis fundamentais ao longo
do tempo, porque quanto mais ancoradas essas expectativas estiverem em direção
à meta de inflação, menor será o custo de ações da política monetária.
Ele pontuou que as
projeções são importantes para nortear a tomada de decisões futuras, mas que
também refletem choques que mudam tendências esperadas na economia, e que a
situação do Rio Grande do Sul é um exemplo concreto e doloroso de como as
projeções podem ser influenciadas por eventos externos.
“Esses choques não são
apenas da economia – inflação maior ou PIB menor. Veja só o impacto da
catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul, algo que não se esperava há um mês
ou pouco tempo atrás. Claro que, agora, todos os esforços, ações governamentais
e recursos da sociedade têm de ser voltados para salvar a vida dos nossos
irmãos e irmãs gaúchos, que estão sendo afetados por essa tragédia”, pontuou.
¨
“Tragédia sem
precedentes no campo”, dizem pequenos agricultores do RS
Casas, galpões e
currais destruídos. Plantações inundadas e colheitas perdidas. Galinhas, porcos
e vacas levados pela força das águas. Uma realidade “triste e desoladora”,
afirmam pequenos agricultores, assentados e quilombolas que lidam com as
diferentes perdas provocadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul. O estado vem
sofrendo com enchentes e inundações há uma semana.
Entre as regiões mais
atingidas estão o Vale do Rio Pardo e o Vale do Taquari, no centro do estado.
Miqueli Sturbelle Schiavon mora no município de Santa Cruz do Sul e está na
direção estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ele relata que trabalhadores
e famílias vivem uma tragédia sem precedentes no campo.
“Os agricultores que
estavam nas margens dos rios Pardo, Taquari, Jacuí perderam casas, animais
e máquinas. Outros ainda nem conseguem calcular as perdas, porque não
conseguiram voltar para ver as propriedades. A chuva também prejudicou tanto as
produções de subsistência, como aquelas voltadas para o mercado e a manutenção
das famílias”, diz Miqueli. “Os agricultores das regiões mais altas sofrem com
deslizamentos de terra e soterramentos de casas. Ainda não existem informações
muito concretas sobre mortes na área rural. E boa parte das produções também
foi levada pelas enxurradas”.
Enquanto lida com os
estragos atuais, Miqueli também se preocupa com o futuro da região depois que
as chuvas passarem.
“Essas famílias
necessariamente vão precisar de um apoio muito grande dos governos federal,
estadual e municipais para reestruturar as propriedades. Para compra animais e
equipamentos. E também de apoio para manutenção das famílias com alimentação,
água e luz por um período, porque perderam praticamente tudo”.
Enquanto
essa ajuda não chega, a solidariedade entre vizinhos e outras formas
de organização comunitária são fundamentais para minimizar os problemas. A
Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma das instituições que tem tido atuação
decisiva em Santa Cruz do Sul. Maurício Queiroz trabalha na diocese local e é
uma das lideranças da CPT. As dificuldades de locomoção e de comunicação têm
dificultado que o trabalho seja ampliado para áreas próximas.
“Ainda não conseguimos
visitar os agricultores que foram atingidos. Eu quase fiquei sem gasolina,
porque os postos não têm combustível. Previsão era que chegasse hoje, mas não
aconteceu. Estamos com dificuldades de locomoção e os acessos estão muito difíceis,
com barro e outras obstruções nas estradas”, conta Maurício. “É algo que a
gente nunca tinha visto antes. A água chegou a lugares que nem imaginava
que pudesse chegar. Os prejuízos são de todo tipo. Há impactos econômicos nos
empreendimentos e no comércio em geral. Agricultores perderam casas, galpões,
maquinário. E há a dor das famílias e das vítimas, que a gente vai entender
melhor quando puder visita-las e ter uma dimensão melhor do que aconteceu”,
conta Maurício.
Na região
metropolitana de Porto Alegre, a realidade também é de isolamento e de
destruição. Luiz Antônio Pasinato é membro da CPT local e tem tido muita
dificuldade para se comunicar com agricultores e assentados.
“Tentei fazer contato
com vários agricultores e eles não dão resposta. Certamente, estão enfrentando
essa enchente e tentando salvar suas vidas. Porque roças e lavouras de hortifrutigranjeiros
foram totalmente destruídas. Toda essa região aqui foi afetada. Muitas famílias
e pequenos agricultores plantam verduras para comercializar nas feiras de Porto
Alegre. A maioria que tinha plantações de inverno acabou perdendo tudo e está
isolada por causa das estradas bloqueadas”, relata Luiz Antônio.
O que já se estima é
que serão necessários milhões de reais para reconstruir a infraestrutura
dos municípios atingidos. Mas Luiz Antônio entende que é preciso ir além e
investir no planejamento para que desastres como esse não se repitam.
“Primeiro, precisamos
trabalhar a conscientização das pessoas. Porque há muito negacionismo
climático. A gente vai ter que enfrentar com sabedoria e inteligência os
problemas. Proteger nosso meio ambiente é uma questão-chave. E precisamos
discutir que modelo de agricultura queremos implantar, que não deprede os
mananciais. Discutir uma política habitacional, principalmente para as cidades
que estão nas beiras dos rios e para as famílias que vivem em áreas de risco. E
a sociedade civil tem que ser incluída nos comitês de gerenciamento das bacias
hidrográficas e nos debates ambientais”.
Tanto o Movimento dos
Pequenos Agricultores quanto a Comissão Pastoral da Terra participam da
campanha “Missão Sementes de Solidariedade: Emergência”, lançada em setembro de
2023, e reforçada com os temporais de maio. Elas pedem doações para ajudar
aqueles que foram mais atingidos pelo desastre. Os valores podem ser destinados
para a conta da Cáritas Brasileira, por meio do PIX: 33654419/0010-07 (CNPJ) ou
depósito bancário. Conta corrente 55.450-2, agência 1248-3 (Banco do Brasil).
- Impactos nos assentamentos
A direção estadual do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também calcula um impacto
grande para os que vivem nos assentamentos da região metropolitana. Cinco deles
ficaram submersos em decorrência das chuvas. Em Eldorado do Sul, estão nessa
situação os assentamentos Integração Gaúcha (IRGA), Apolônio de Carvalho e
Conquista Nonoaiense (IPZ). Em Nova Santa Rita, os assentamentos Santa Rita de
Cássia e do Sino. Pelo menos 420 famílias foram afetadas pelos alagamentos.
Mauricio Roman, da
direção estadual do MST, acredita que ainda vai demorar mais de uma semana para
que os trabalhadores possam voltar para os assentamentos e avaliar com precisão
o tamanho dos prejuízos.
“Assim que as águas
baixarem e permitirem a nossa entrada, que acreditamos ser daqui a
dez dias, decidimos priorizar a região de Eldorado. Para tentar salvar a
Cootap [Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre],
que foi alagada. Não temos ainda conhecimento do que tinha lá dentro e foi
molhado, nem quanto do estoque foi perdido”, explica Mauricio Roman.
Sobre colheita e
maquinário, é possível estimar que o impacto também foi grande.
“Nós ainda tínhamos
uma projeção de colher arroz. Porque como sofremos a primeira enchente em
novembro, plantamos fora da janela agrícola, e estávamos em fase de colher
esses grãos. Já sabemos que mais de 50% dessa produção foi prejudicada.
Perdemos algumas máquinas, alguns caminhões, que eram muito importantes para o
movimento na construção dos vales, no levantamento de água, na produção do
arroz. Lamentavelmente, sabemos que houve um prejuízo em grande parte da
estrutura, mas ainda vamos dimensionar a gravidade”, diz o dirigente do MST.
O movimento está
organizando uma campanha de apoio à população do campo e de solidariedade às
famílias atingidas nos assentamentos. Para contribuir financeiramente, as
doações podem ser feitas pelo pix: sos_mst@apoia.se.
- Comunidades quilombolas
Quem vive nos
quilombos, sofre frequentemente com os desequilíbrios climáticos e convive
historicamente com diferentes impactos negativos causados pelas chuvas. Essa é
a avaliação de Roberto Potácio Rosa, membro fundador da Federação das
Comunidades Tradicionais Quilombolas do Rio Grande do Sul.
Ele vive na comunidade
de São Miguel, no município de Restinga Seca, na região central do estado.
Apesar do isolamento e das dificuldades de comunicação, diz que os impactos não
foram tão grandes como nos quilombos de outras partes do estado.
“Sabemos que as
comunidades quilombolas urbanas, na região metropolitana de Porto Alegre, em
Canoas, Chácara das Rosas e outras ali perto estão em situação grave. Há
moradias submersas e pessoas em abrigos. No interior, temos poucas informações,
porque estamos sem contato. Não temos uma qualidade de sinal lá para poder
fazer a devida comunicação. Mas é uma situação muito preocupante”, diz Potácio.
Para o líder
comunitário, realidades extremas como as de agora deixam ainda mais em
evidência a situação de vulnerabilidade dos povos quilombolas. Além da
preocupação com os desaparecidos, há um impacto econômico imediato nas
famílias.
“A maioria da economia
de subsistência das comunidades vem das aposentadorias. São poucos os que têm
carteira de trabalho assinada. Então, há um impacto orçamentário em toda a
comunidade com esse isolamento, porque essas pessoas não conseguem se locomover,
trabalhar, ficam sem receber um tostão, não têm pagamento para dar conta das
necessidades”, avalia Potácio. “Também temos impactos na parte alimentícia, de
saúde, educação. E o desespero daqueles que não estão conseguindo falar com os
familiares. Esperamos que estejam todos bem, que essa tempestade não tenha
ceifado muitas vidas”.
O Ministério da
Igualdade Racial informou que está monitorando a situação, especialmente em
comunidades quilombolas, ciganas e povos tradicionais de matriz africana e de
terreiros atingidos pelas enchentes. Garantiu que tem articulado com outros
ministérios e movimentos sociais o envio de cestas básicas e itens de primeira
necessidade.
Segundo a pasta, o Rio
Grande do Sul tem mais de 7 mil famílias quilombolas e aproximadamente
1-300 famílias de comunidades tradicionais de matriz africana e terreiros. E
muitas delas estão ilhadas, sem acesso à água, energia e alimento.
Fonte: Correio do
Brasil/IstoÉ
Nenhum comentário:
Postar um comentário