As origens da luta moderna por reforma
agrária no Brasil
No dia do aniversário
da guerrilha que levou Cuba à Revolução, em 26 de julho de 1964, fez um mês
exato que o líder camponês Francisco Julião permanecia na prisão, onde foi
confinado pela nascente Ditadura Militar. Os sertões, de Euclides
da Cunha, foi um dos três livros que ele pediu para ler no cárcere, seguido
de Os lusíadas de Camões, e, por fim, a Bíblia Sagrada,
como ele pontuou em uma carta escrita à sua filha, datada daquele dia – depois
publicada no livro Até quarta, Isabela!
Depois de fazer seu
discurso final no Congresso Nacional, com o golpe em curso, Julião passou três
meses no interior de Goiás, sob o pseudônimo de Antônio Ferreira da Silva. Ele
passou um ano e meio na cadeia, nunca recebendo sua cópia de Os sertões,
e foi libertado por meio de um habeas corpus. Ele prontamente se exilou no
México, onde permaneceu pelos 15 seguintes, até que a Lei de Anistia de 1979
permitiu o seu retorno junto com os demais exilados. Nascido no agreste
de Pernambuco, Julião não era de origem camponesa, mas era filho e neto de
proprietários de engenhos de açúcar. Ele ingressou na luta camponesa como
advogado. Embora tenham existido muitas ligas camponesas organizadas em
diferentes regiões e momentos da história do Brasil, inclusive aquelas
associadas ao Partido Comunista, as Ligas Camponesas começaram no Engenho
Galiléia, em Vitória de Santo Antão, a cerca de 80 quilômetros do Recife.
Lá, dez anos antes do
golpe, os camponeses e trabalhadores agrícolas formaram a Sociedade
Agrícola e Pecuária dos Plantadores Pernambucanos (SAPPP) para
enfrentar os aluguéis exorbitantes da terra, os despejos, o analfabetismo e a
impossibilidade de enterrar seus mortos, problemas agravados pela entrada do
capitalismo na zona rural – como narra Elide Rugai Bastos, em seu Ligas
camponesas. Com o apoio jurídico de Julião e por meio de uma batalha
feroz, os trabalhadores rurais venceram suas demandas em 1959, levando à
desapropriação da plantação para as mãos de 140 famílias. Essa vitória teve um
impacto incrível para a luta camponesa na região – e foi um terremoto para os
latifundiários. No Brasil, a luta dos “galileus”, os trabalhadores
sindicalizados do Engenho Galiléia, passou a simbolizar a luta dos camponeses
nordestinos contra a exploração capitalista no campo.
O rápido crescimento
das Ligas Camponesas, as quais mobilizaram centenas de milhares de militantes
em 1962 em cerca de dez estados, gerou um jornal próprio, A Liga, e
buscou construir seu próprio partido político, também despertando o interesse
dos revolucionários chineses por afinidades óbvias. Julião
visitou a China pelo menos uma vez durante esse período de intenso crescimento,
embora não tenha havido cobertura mediática chinesa das suas visitas – mas é
citado por Cecil Johnson em seu livro sobre o intercâmbio entre China e América
Latina. Após a Revolução Cubana, Julião, juntamente com a líder camponesa e sua
esposa, Alexina Crespo, também visitaram Cuba várias vezes. Diante do aumento
das ameaças de sequestro, Alexina e seus quatro filhos com Julião se mudaram
para Cuba para viver e estudar em 1962, onde souberam da notícia do golpe em seu país de origem.
·
O fio vermelho entre Julião e Mao
Marxista desde a juventude, as
Revoluções Chinesa e Cubana tiveram um impacto profundo no seu próprio
pensamento e visão estratégica e ele se referiu, frequentemente, a elas nos
seus escritos e discursos. Além de advogado, Julião foi escritor e poeta, e seu
primeiro livro publicado foi uma coletânea de seus contos chamado Cachaça,
publicado em 1951. Como líder das Ligas Camponesas, escreveu diversas e
importantes cartilhas populares que orientaram a luta camponesa, os quais
podiam ser lidos como obras de poesia. Em A cartilha do camponês,
de 1960, Cuba e a China são frequentemente chamadas apaixonadamente a unir os
camponeses:
“Teu inimigo cruel — o
latifúndio — não anda bem de vida, e eu te garanto que a moléstia é grave. Não
há remédio para ele. Morrerá espumando de raiva como um cão danado. Ou como um
leão velho que perdeu as garras. Morrerá como morreu na China, um país muito
parecido com o nosso Brasil. Morrerá como foi morto em Cuba onde o grande Fidel
Castro entregou a cada camponês um fuzil e disse: “Democracia é o governo que
arma o povo”. Eu fui lá e vi tudo, camponês.
Da mesma forma que os
romances de Jorge Amado e Euclides da Cunha apresentaram o Brasil como um
espelho da realidade chinesa, a situação pré-revolucionária do campesinato
chinês também foi projetada nas lutas pela terra no Brasil, particularmente no
Nordeste. As revoluções e os processos de reforma agrária na China e em Cuba,
tendo o campesinato organizado como protagonista, foram retratados como o
futuro eventual do Brasil. Ao falar da tirania, da injustiça e da miséria
trazidas pela grande classe latifundiária, Julião escreve: “Foi a união que
acabou com tudo lá em Cuba. O mesmo aconteceu com a China. O mesmo acontecerá
também aqui no Brasil!” Nos seus escritos e discursos, os povos cubano, chinês
e brasileiro não só partilharam uma história comum de opressão colonial e
feudal, mas também, inevitavelmente, partilharam um destino comum.
Nas páginas de
abertura de Que são as Ligas Camponesas?, de 1962, escrito depois de visitar a China, Julião pinta um
panorama de realidade de classe no interior do Brasil:
São quarenta e cinco
milhões de seres humanos que esperam pela madrugada. São doze milhões de vendedores
de força de trabalho, presos ao campo como à galé perpétua, de que falava
Castro Alves. Essa população está assim dividida: proletários, semiproletários
e camponeses. Os proletários são os assalariados. Os semiproletários são os
colonos, os peões, os camaradas, os empreiteiros. Os camponeses são os foreiros
ou arrendatários, os meeiros, os parceiros, os vaqueiros, os posseiros, os condiceiros e
os sitiantes. Toda ela se encontra manietada pelo regime de servidão
Nomeadamente nesse
texto, Julião introduz o termo “semiproletariado” para descrever os
trabalhadores agrícolas que podiam ter acesso a terras e meios de produção
limitados para a agricultura de subsistência, mas dependiam, pelo menos
parcialmente, da venda da sua força de trabalho para sobreviver. Essa nova
classe, em parte trabalhadora, em parte camponesa, emergiu com a expansão
capitalista no campo, acelerada naquele período.
Curiosamente, a
escrita de Julião tem uma notável semelhança com a Análise das classes na sociedade chinesa, de 1926, de Mao Zedong, escrita quando o líder chinês
trabalhava em contato estreito com as associações camponesas auto-organizadas
na província de Hunan. O texto de Mao pressionou e prenunciou a eventual
mudança do Partido Comunista da China, o qual deixou de se concentrar na
organização dos trabalhadores industriais urbanos para se concentrar nas massas
camponesas no campo.
Mao chamou de
“semiproletariado” – um termo que ele introduz nesse texto para distinguir os
trabalhadores agrícolas dos camponeses – de “os nossos amigos mais chegados
[verdadeiros]” [wǒmen zhēnzhèng de péngyǒu 我们真正的朋友] no processo revolucionário. Diferentemente de Mao, no entanto,
Julião priorizou os meios “legais e pacíficos” para a reforma agrária,
centrados nas três frentes de mobilização no campo, no sistema judicial e na
assembleia legislativa. Não raro, porém, ele soltava comentários vagos. Por
exemplo, no Que são as Ligas Camponesas?, Julião finalizou um
capítulo com a provocação: Para a reforma agrária radical. Na lei ou na
marra. Com flores ou com sangue.
Dali em diante, na
lei ou na marra se tornou o principal grito de guerra associado às
Ligas Camponesas. Os meios pelos quais a reforma agrária seria conquistada – ou
conquistada – estava no centro da questão agrária da época. O Primeiro Congresso Nacional dos
Agricultores e Trabalhadores Agrícolas,
realizado em Belo Horizonte, em novembro de 1961, reuniu 7 mil pessoas de vinte
estados para debater esta mesma questão. Os participantes incluíam representantes de organizações rurais e urbanas,
notavelmente das Ligas Camponesas e a União dos Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas do Brasil (ULTAB),
vinculada ao PCB, bem como políticos como o vice-presidente João Goulart.
Pode-se dizer que
nesse congresso histórico a linha radical de reforma agrária – na lei
ou na marra – liderada pelas Ligas Camponesas dominou a linha mais
reformista ou legalista apoiada pelo PCB. Contudo, a forma como o “na marra”
seria entendido dentro das próprias Ligas Camponesas e no movimento maior pela
Reforma Agrária permaneceu um tema de grande debate.
·
Alexina Crespo: “Pedi armas a Mao Zedong”
Francisco Julião,
embora a figura mais conhecida publicamente das Ligas Camponesas, também não
foi o único líder sênior das Ligas a visitar a China. Enquanto Julião chefiava
a parte jurídica e institucional das Ligas, era Alexina Crespo a responsável
pelos trabalhos clandestinos – o que está presente em Memórias clandestinas,
documentário de 2004, de Maria Thereza Azevedo.
Alexina, com o
pseudônimo clandestino de “Maria” era a estrategista de guerrilha,
guarda-costas pessoal interina de Julião, líder feminista, artista de teatro de
fantoches e mãe de quatro filhos. Entre essas coisas, foi casada com Francisco
Julião até 1963. Responsável pelas relações internacionais das Ligas, Alexina
recebeu treinamento militar em Cuba, onde discutiu a estratégia de guerrilha do Brasil com Che Guevara, Fidel Castro e outros líderes
cubanos.
Mais tarde, ela também
se reuniu com chefes de Estado de países socialistas como a República Popular
Democrática da Coreia, República Democrática do Vietnã e União Soviética – e
outros como o Chile. Com o apoio de Cuba no planejamento estratégico e no armamento,
as Ligas organizaram pelo menos oito dispositivos – postos
avançados ou bases militares – no país para treino de guerrilha.
Embora houvesse
opiniões diferentes sobre o rumo da luta armada no Brasil, as Ligas estavam
entre as várias organizações que se voltaram para a luta armada na década de
1960, antes e depois do golpe liderado pelos militares. Respondendo a uma
pergunta da entrevista se Julião, que sempre foi contra a luta armada, sabia da
sua participação, ela não titubeou: “Sabia, sabia. Ele ficava, vamos dizer
assim, na parte legal, institucional, os discursos. E nós ficávamos na parte
clandestina, preparando as coisas, treinando os camponeses” – conforme o Questão agrária no Brasil, organizado por João Pedro Stédile.
Entre os movimentos em
que esteve envolvida Alexina/Maria, houve uma visita que ela fez com as suas
duas filhas, Anatilde e Anatailde, em 1962, à China, e um encontro pessoal com
Mao Zedong. Suas filhas estavam a caminho da União Soviética para estudar, com
a ajuda de Cuba, onde moravam. A Peking Review [Semana de
Pequim ou Běijīng Zhōubào 北京周報, vol. 2, n. 17, abr. 1962, p.22], importante revista nos
esforços diplomáticos culturais da China, documentou sua visita com uma
fotografia e uma breve nota, referindo-se à “conversa cordial” entre Mao e Alexina, “esposa de Francisco Julião, presidente das Ligas Camponesas
do Nordeste do Brasil, e suas duas filhas”.
A viagem foi
organizada pela Associação de Amizade China-América Latina, cujo presidente,
Chu Tunan, organizou para eles um banquete de boas-vindas e uma visita à China.
É talvez um dos raros momentos de uma recepção de tão alto nível por parte dos
líderes da China Vermelha para uma mulher da América Latina – sem um título
organizacional oficial ou filiação governamental – que viajava com as suas duas
filhas.
Sobre o conteúdo da
sua “conversa cordial” com Mao, Alexina pediu diretamente o apoio chinês na
luta armada das Ligas Camponesas. Em entrevista, ela reconheceu:
Sim, eu falei na
frente das meninas mesmo. Você tinha de aproveitar o momento. Se eu consegui
ser recebida por ele, tinha de aproveitar e falar o que devia falar. Eu pedi
apoio, ele perguntou quantas armas nós tínhamos. Eu disse que tínhamos muito
pouca coisa. Ele não deu uma resposta logo, o chinês é muito cauteloso. Mais
tarde, ele mandou uma delegação de três companheiros para verificar como estava
a situação
Segundo Alexina, a
delegação chegou ao Brasil e foi recebida no aeroporto. Depois de uma conversa
com Julião e outro alto dirigente, Clodomir Santos de Morais, os convidados
chineses partiram. Ela suspeitava que o fato de Clodomir ter sido preso logo
após a reunião acabou fazendo com que o lado chinês recuasse. Após o golpe,
Alexina continuou sua vida política no exílio com os filhos; no Chile organizou
uma frente contra o golpe no Brasil e na Suécia, onde viveu muitos anos,
participou de uma associação de brasileiros exilados pela ditadura.
Alexina só retornou ao
Brasil no início da década de 1980, após a Lei da Anistia. Infelizmente, como
acontece com muitas mulheres revolucionárias, pouco foi escrito sobre Alexina
em comparação com Julião – e grande parte da sua história foi arquivada e, atualmente,
está sendo compilada por seu filho Anacleto Julião junto de um sobrinho-neto
seu.
·
A luta por Reforma Agrária: da velha Guerra
Fria à nova Guerra Fria
Brasileiros que eram
comunistas ou suspeitos de serem vermelhos, como Francisco Julião, não foram os
únicos a serem presos pelo governo pós-golpe. Na verdade, em 3 de abril de
1964, dois dias após o golpe, nove cidadãos chineses foram presos no Brasil, como relatou o Peking Review em uma extensa
reportagem.
Eles eram sete
representantes comerciais e dois correspondentes da Xinhua – os mesmos que o
então vice-presidente João Goulart havia concordado em receber no Brasil após
sua famosa visita à China. Os nove chineses foram acusados de “subversão do
Brasil” e “espionagem” com base em evidências soltas, que incluíam um rolodex
com nomes de oficiais militares brasileiros supostamente marcados como “para
serem mortos, enforcados, baleados ou afogados”.
Os apelos chineses à
solidariedade com os prisioneiros foram acompanhados de perto pela CIA. Em seu
relatório, “Protesto, condenação, exigência: uma operação mundial de
propaganda comunista chinesa dirigida contra o Brasil”, todas as
organizações e países aos quais a China enviou uma “mensagem fraterna” em
relação às prisões foram rastreados e enquadrados como parte de uma “propaganda
anti-Brasil”.
Na era da Nova
Guerra Fria, essas narrativas anticomunistas continuam a ser utilizadas,
uma vez que histórias de cidadãos chineses, especialmente nos Estados Unidos e
em outros países do Norte Global, sendo acusados ou presos por espionagem,
tornam-se cada vez mais comuns.
Enquanto estava sob as
duras condições de prisão, Julião conseguiu escrever uma carta para sua filha
recém-nascida, Isabela, em pedaços de papel que acabaram sendo contrabandeados
para o mundo. Pessoas arriscaram suas vidas para reproduzir e compartilhar a
carta – um poema de esperança ao campesinato – posteriormente publicada
como, Até quarta, Isabela!
Dirigindo-se à filha,
ele reflete sobre a dignidade humana negada quando uma colher é negada a uma
pessoa na prisão, relembrando os tempos na China, quando até aprendeu a comer
com pauzinhos. Ele os chamou de seus “companheiros indispensáveis”. Apesar das
tentativas de brutalizar, humilhar e esmagar o espírito humano e as forças
populares organizadas, Julião afirmou a continuidade da luta:
Mas há uma coisa que
não para: o estômago. Essa víscera vive em perpétuo movimento. Se pudesse ser
abolida, a Paz já teria sido implantada sobre a Terra. Desde que adquirimos a
consciência de que a primeira condição para manter a vida é lutar contra a fome,
passamos a lutar simplesmente por isso. O estômago está mais próximo da terra
do que os nossos pés… Daí, a luta de classes, que não é uma invenção marxista,
mas uma imposição do estômago.
Seis décadas após o
golpe militar, 50 anos desde o estabelecimento dos laços diplomáticos entre o
Brasil e a China e quase 40 anos desde o restabelecimento da democracia no
Brasil, a luta contra a fome continua no país, assim como a luta pela reforma agrária. Em um dos
maiores produtores agrícolas do mundo, nos dados de 2020-2022, 70 milhões de
pessoas sofrem de insegurança alimentar, enquanto dez milhões de pessoas
enfrentam fome e desnutrição.
O Brasil tem uma das
maiores concentrações fundiárias do mundo, com coeficiente de Gini de 0,86 para desigualdade na distribuição de terras, principalmente nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. O
Nordeste também tem o maior número de pequenos agricultores familiares, mas tem
os níveis mais baixos de acesso a maquinaria agrícola, com uma taxa de mecanização inferior a 3% – contra uma média
nacional de 13%, e a China com 87%.
Hoje, não vivemos um
período de revoluções como o que marcou as décadas de 1950 e 1960, e a luta
pela soberania nacional pode não ser vencida com a luta armada. Em vez disso,
encontrar caminhos independentes para sair do subdesenvolvimento para os países
do Sul Global, que constroem instituições multilaterais como os BRICS,
defendidos tanto pela China como pelo Brasil.
Lula sabe que esse
caminho não será fácil. Ele próprio foi preso longamente, em um conluio de
guerra jurídica entre os interesses do imperialismo norte-americano e setores
da burguesia e militares brasileiro. Em entrevista à mídia chinesa Guancha em
2022, Lula criticou a desgastada tática de
golpes apoiados pelos Estados Unidos, que impede o desenvolvimento dos países
latino-americanos:
Não é possível que a
América Latina nasceu para ser pobre. Não é possível que toda vez que um país
na América Latina começa crescer, tem um golpe, e esse golpe sempre tem alguém
dos estados unidos, está sempre um embaixador dos Estados Unidos.
Naquela ocasião,
quando questionado pelo entrevistador Eric Li por que outros países do BRICS
tiveram baixo desenvolvimento econômico em comparação com a China, Lula
respondeu: “A China é um produto da revolução liderada pelo presidente Mao
[Zedong] em 1949. Esse partido na China tem poder e um governo forte. Quando
tomar decisões, o povo respeitará essas decisões. Isso é algo que não temos no
Brasil”. Por esses comentários, as grandes corporações da mídia brasileira
atacaram Lula por querer instalar uma “ditadura chinesa” e um “comunismo” no
Brasil.
Da mesma forma, a
ex-presidenta Dilma Rousseff, que foi presa e torturada pela ditadura militar e
perdeu a presidência num golpe em 2016, enfrentou a reação da mídia por afirmar
uma posição de não alinhamento com os Estados Unidos em uma palestra na qual proferiu que “nosso lugar não é com os EUA, mas é a independência,
ao lado da China”. Sessenta anos depois, vemos as mesmas forças de classe a
utilizar as mesmas narrativas da Guerra Fria que as lançadas contra Goulart e
Julião na década de 1960.
·
Construir uma reforma agrária
popular!
Contudo, como escreveu
Julião no cárcere, a luta de classes nunca para; é uma imposição do estômago.
Enquanto houver fome, haverá luta de classes. Este ano marca mais um
aniversário histórico, que é o da fundação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), há quarenta anos, nascido das brasas da ditadura
militar e na herança das Ligas Camponesas, juntamente com as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e a teologia da libertação da Igreja Católica.
O MST, o maior
movimento social da América Latina, organiza mais de dois milhões de camponeses
e trabalhadores rurais em 24 estados. Eles veem o processo de ocupação e
desapropriação de terras subutilizadas, de acordo com a Constituição do Brasil,
como forma de construir o poder da classe trabalhadora, produzir alimentos
saudáveis por meio da agroecologia, lutar pela reforma agrária, impulsionar a
transformação social do país e construir o internacionalismo.
Ao longo de quatro
décadas de luta, o MST conquistou terras para 450 mil famílias que hoje vivem
em assentamentos, com outras 90 mil em acampamentos. Inevitavelmente, estas
vitórias da classe trabalhadora organizada perturbaram a burguesia brasileira.
Por sinal, no ano
passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) composta por parlamentares
de extrema direita abriu uma “investigação” sobre o MST, na qual nenhuma das
acusações foi comprovada. Durante o depoimento de sete horas, o líder nacional do
MST, João Pedro Stédile, foi questionado sobre sua relação com a China, após ter visitado o país como parte da delegação oficial de
Lula em abril de 2023.
Quando questionado se
existia uma organização chinesa equivalente ao MST, Stedile respondeu que “Não,
porque em 1949 eles fizeram reforma agrária. [Para] vocês que querem tanto
derrotar o MST, a fórmula é simples: façam a reforma agrária que no outro dia
desaparece o MST”.
Este ano, o MST, em
cooperação com os governos dos estados do Nordeste do Brasil, a Universidade
Agrícola da China, os produtores de maquinaria e a Baobab – Associação
Internacional para a Cooperação Popular, começou a trazer maquinaria chinesa
para pequenos produtores no interior do Nordeste. Segundo Stédile, o setor de
máquinas agrícolas do Brasil é controlado por um “oligopólio de três empresas
transnacionais” que produz máquinas que atendem ao grande agronegócio e não à
agricultura familiar.
A cooperação com a
China, que é o maior produtor de máquinas para a agricultura de pequena escala,
é uma “aliança estratégica” para criar futuras fábricas no Brasil com
tecnologia chinesa como parte do desenvolvimento industrial no interior do
Brasil. Hoje, em comparação com o início do período socialista, a China prefere
exportar o desenvolvimento em vez da ideologia comunista – maquinaria em vez de armas – mas esta cooperação marca outro capítulo na história de
décadas entre a China e o Brasil na luta pela reforma agrária.
Como proclamou Julião
em seu último discurso no Congresso Nacional durante o desenrolar do golpe de
1964:
É inútil querer
obstaculizar e querer impedir o avanço do povo brasileiro…[que] já tomou a
decisão de conquistar a sua emancipação econômica, a sua emancipação social. E
ela será conquistada como nós costumamos dizer nos nossos encontros com as
massas camponesas do Nordeste do Brasil. Será conquistada na lenda ou na lavra.
Será conquistada pacificamente ou através da revolução?
Sessenta anos depois,
esta luta inacabada pela emancipação do povo brasileiro continua.
Fonte: Por Tings Chak
– Tradução de Hugo Albuquerque para Jacobin Brasil
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