Um
dos provérbios maoísta é: “com a arma da crítica e da autocrítica, podemos nos
livrar de um estilo ruim e manter o bem”. Embora o maoísmo não seja forte entre
a esquerda brasileira hoje, há uma certa consciência da necessidade de
autocrítica em todo o espectro. Guilherme Boulos, candidato do PSOL, falou: “O
sistema político precisa de autocrítica, reconhecer o quanto se afastou das
pessoas. No caso da esquerda brasileira também. Reconhecer erros não é demérito
para ninguém. Deixar de reconhecer é um problema, porque voltam.” Marina Silva,
da Rede, disse: “Para que a gente não esteja colocando vinho novo em odre velho
é preciso que se faça uma profunda autocrítica, coisa que eu não vejo na maioria
desses partidos.”
O
reconhecimento da necessidade de autocrítica é bem-vindo, mas, até onde sei,
nenhum desses líderes ainda o empreendeu, pelo menos publicamente. Tampouco os
líderes do PT ou dos partidos do centro ou direita. O PT ocupou a presidência
por treze anos que terminaram em 2016, que dá uma responsabilidade especial
para autocriticar seu desempenho no cargo. Neste artigo, faço algumas sugestões
sobre esse processo.
Quando
o PT foi fundado, em 1980, era uma rara exceção à rigidez ideológica e à esclerose
organizacional da esquerda global. Foi progressista, pluralista e humanista em
ideologia e democrático em organização. Realizou eleições internas honestas
contestadas por facções bem definidas. Seu líder carismático havia se levantado
da pobreza abjeta para se tornar um habilidoso sindicalista que superou a
ditadura militar na década de 1970. Quando Lula foi eleito presidente do Brasil
em 2003, o futuro parecia brilhante. Parecia ainda mais brilhante quando ele
passou a faixa presidencial para sua chefe de equipe em 2011. Barack Obama
observou: “Eu amo esse cara. Ele é o político mais popular da terra.” O
fracasso do partido em cumprir muitas dessas promessas tem sido uma grande
decepção, não apenas para os brasileiros, mas para esquerdistas progressistas
em todo o mundo.
Desde
2014 tem sido um desastre após o outro. A economia está em frangalhos, Dilma
Rousseff foi afastada e Lula foi condenado à prisão por corrupção. O partido
está em profunda oposição, denunciando o impeachment como um golpe de Estado e
a condenação de Lula como perseguição política. É verdade que as denúncias
usadas como base legal para o impeachment foram modestas, mas foram feitas
constitucionalmente e foram fortemente apoiadas pelo público. É preciso admitir
que condenação de Lula foi rigorosamente revisada por quatro juízes bastante
profissionais e suas denúncias foram comprovadas por muitos funcionários
responsáveis. Como disse Marina Silva, “Os autos foram devidamente trabalhados,
com todo rigor que é necessário para um julgamento dessa magnitude. Os
advogados do presidente Lula com certeza são muito bem pagos e competentes,
todas as instâncias foram acionadas para assegurar a ele o mais amplo direito
de defesa”.
Não
é preciso ser psicanalista, como Guilherme Boulos, para reconhecer a negação
como mecanismo de defesa. É hora de desistir da negação e fazer uma autocrítica
honesta. Os partidários de Lula retratam sua prisão como a repressão de um
herói da classe trabalhadora por uma elite voraz e exploradora. Mas qualquer
autocrítica teria que reconhecer que o PT está intimamente envolvido com essa
mesma elite há anos. E os promotores da Lava Jato têm processado muitos
poderosos políticos conservadores e oligarcas de negócios afiliados a outros
partidos, incluindo o magnata mais rico do Brasil, Eike Batista, e o
ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Eduardo Cunha foi
preso pela Polícia Federal. Aécio Neves está sob investigação por corrupção. É
falso retratar as rigorosas investigações e processos anticorrupção como uma
campanha contra o PT ou a esquerda. Eles são um corretivo muito necessário para
a corrupção generalizada que é uma tradição brasileira que se tornou ainda mais
flagrante e difundida nos governos do Partido dos Trabalhadores.
Uma
autocrítica honesta teria que reconhecer que o fracasso do projeto socialista
democrático do partido estava atolado em pensamentos ilusórios (wishful
thinking), soberba (hubris), oportunismo e cinismo. Talvez uma vez terminada a
eleição, Guilherme Boulos possa nos dar mais informações sobre esses e outros
mecanismos de defesa. Na minha opinião, os pensamentos ilusórios (wishful
thinking) incluía acreditar que os brasileiros estavam prontos para substituir
a economia de mercado e a democracia eleitoral pela democracia participativa e
por um projeto econômico alternativo mal definido. Os líderes mais realistas do
partido aprenderam esta lição assim que começaram a assumir responsabilidades
no nível estadual e local. Quando o partido, surpreendentemente, venceu a
prefeitura de São Paulo em 1988, os líderes descobriram que não podiam
administrar a enorme metrópole sem incluir todos os interessados, especialmente
a comunidade empresarial. Os políticos profissionais do partido aceitaram isso
e muitos passaram a ser líderes urbanos e estatais eficazes. Mas a retórica não
mudou. O partido pregou a transformação revolucionária e praticou o pragmatismo
liberal. Como resultado, o partido perdeu o apoio entusiástico de muitos dos
idealistas que o tornaram tão distinto, alguns dos quais levaram seus
pensamentos ilusórios (wishful thinking) a partidos como o PSOL.
Como
presidente, a soberba de Lula incluiu o orgulho de ter transformado
dramaticamente a economia brasileira quando o que ele realmente fez foi
reforçar o modelo econômico “neoliberal” de seu antecessor. A soberba de Dilma
Rousseff era acreditar que o sucesso do Brasil em administrar a crise global de
2008 com gastos pesados de estímulo significava que ela havia revogado as leis
da economia e poderia gastar com o abandono. O oportunismo do partido
significava expandir o já inchado serviço público para fornecer empregos bem
remunerados aos militantes do partido. Oportunismo significava aliar-se a
partidos conservadores e clientelistas para compartilhar o patrocínio em vez de
se unir ao melhor dos social-democratas para realizar as reformas necessárias.
Oportunismo significava culpar os “neoliberais” pelos fracassos, em vez de
assumir a responsabilidade de não implementar políticas realistas. O grupo de
liderança de Lula acreditava cinicamente que o Congresso brasileiro era tão
desesperado que a única maneira de aprovar a legislação necessária era
simplesmente comprar votos.
Uma
autocrítica honesta admitiria que, em vez de manter sua promessa de acabar com
a corrupção, o PT a institucionalizou como uma ferramenta fundamental de sua
máquina política. Em um país com legislatura e população menos cínicos, Lula
teria sofrido impeachment quando o mensalão foi descoberto durante seu primeiro
mandato. Se ele tivesse aceitado o slogan de Harry Truman “the buck stops
here”, ele teria aceitado a responsabilidade pelas ações de seus
representantes. Mas ele passou a culpa para José Dirceu. Uma autocrítica
honesta significaria parar de fingir que Lula não sabia o que estava
acontecendo com o mensalão.
Se
o Partido dos Trabalhadores, que sempre afirmou ser honesto e transparente, era
sistematicamente corrupto com impunidade, quem se surpreende com o fato de seus
aliados e parceiros terem roubado alguns milhões de reais aqui e ali? Lula se
gabou da honestidade de seu governo e afirmou que o aumento dos escândalos
acabou provando que eles estavam cavando a sujeira. O PT merece crédito por
continuar fortalecendo e profissionalizando a polícia federal e o judiciário,
processo iniciado por Fernando Henrique. Imagine o choque deles quando foram
investigados, indiciados e condenados pela polícia, promotores e juízes, muitos
dos quais haviam colocado no poder.
Autocrítica
significa reconhecer o fracasso do partido em fazer as alianças políticas
necessárias para aprovar as reformas necessárias para romper as persistentes
restrições econômicas do Brasil. Essas reformas incluem a reforma
previdenciária e cortes de gastos que são especialmente difíceis para o PT, com
sua forte base entre funcionários públicos. O fracasso persistente da maioria
dessas reformas, tanto de Cardoso quanto de Lula e Dilma, mostra que elas não
podem ser feitas apenas por um lado. Em vez de culpar um ao outro pelo
fracasso, o PT e o PSDB precisam trabalhar juntos, junto com o maior número
possível de aliados. Lula e o PT não parece prontos para isso, mesmo que ele
seja capaz de concorrer às eleições. Em vez de usar seu grande prestígio e
credibilidade para ajudar o país a enfrentar realidades dolorosas, Lula está se
entregando a teorias conspiratórias, como culpar os americanos pela corrupção
na Petrobras, sem qualquer evidência. O papel de Lula como ex-presidente
contrasta desfavoravelmente com o de Fernando Henrique Cardoso. Como nota
Marina Silva, Cardoso é excepcional entre os políticos brasileiros por fazer um
sério esforço de crítica ao seu próprio partido. Infelizmente, porém, seus
esforços não foram levados a sério por outros líderes do PSDB.
Se
Lula e FHC se unissem para liderar seus partidos na autocrítica, isso poderia
levar a uma mudança real na cultura política brasileira. Eles trabalharam
juntos contra o regime militar: é um desejo ilusório esperar que eles poderiam
trabalhar juntos contra a ameaça de Bolsonaro? Se Lula fosse visto como fazendo
um esforço honesto para enfrentar os defeitos da cultura política brasileira,
incluindo o PT como um dos principais participantes, seria um passo real rumo a
um novo começo para o Brasil. Os brasileiros de todos os partidos precisam
lutar contra os pensamentos ilusórios (wishful thinking), a soberba, o cinismo
e o oportunismo.
Ted
Goertzel, professor
emérito de Sociologia na Universidade Rutgers, em New Jersey, Estados Unidos, e
autor de biografias de FHC e Lula, em artigo publicado por Revista Espaço
Acadêmico