segunda-feira, 2 de setembro de 2024

“Podemos ter cidades mais sustentáveis, menos caras e com maior qualidade de vida para todos”, diz Vicente Rauber

Se a eleição de São Paulo ganhou amplitude nacional em função da popularidade angariada pelas redes sociais de um candidato, talvez seja a cidade de Porto Alegre o cenário dos debates fundamentais dos próximos anos. Não tanto pela polarização entre um candidato de direita (o atual prefeito Sebastião Melo) e outra de esquerda (Maria do Rosário), mas pelo fato de a cidade ser epicentro da devastação causada por eventos climáticos extremos e a evidência de se adotar urgentemente medidas de prevenção e adaptação climática que exigem uma ruptura com os dogmas de mercado.

É esse o escopo da entrevista que o Correio publica com Vicente Rauber, engenheiro e ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais, extinto e com equipe precarizada nas gestões neoliberais de Nelson Marchezan e Melo. Rauber fez parte do grupo de engenheiros que apresentou ainda nesta gestão Melo um PL que recria o DEP em novas bases, além de oferecer suporte técnico para o programa de governo de Maria do Rosário. Além disso, é enfático em rechaçar o discurso de Estado mínimo e privatizações na gestão pública.

“Temos que negar os negacionistas, não só os pseudocientistas, mas especialmente todos aqueles que influem fortemente em nossa vida, governantes, legisladores, sistema judiciário, dirigentes privados, que não só agem a favor da destruição da natureza como pouco fazem para a sua recuperação. A destruição de estruturas públicas essenciais é uma de suas lamentáveis marcas”, atacou.

Ao comprovado abandono das tarefas essenciais deste órgão pelas referidas gestões, soma-se a destruiçãoo da legislação ambiental pelo governo do estado, em perfeito compasso com a orientação antiambiental do governo Bolsonaro e seu ministro do meio ambiente Ricardo Salles. Como dito em entrevista anterior ao Correio, é hora de o estado reassumir suas obrigações e, mais que isso, aderir definitivamente os acordos internacionais de mitigação do aquecimento global e seu colapso climático.

“A União e os Estados têm muito a fazer. Mas é nos municípios que a vida acontece, então é nestes entes da Federação que poderemos realizar uma verdadeira revolução na vida e recuperar nosso Planeta. É possível, sim, preservar áreas ambientais, produzir reduzindo fortemente a poluição e viver com hábitos adequados. Prevenir é o melhor remédio: dói menos, custa menos e, tenham certeza, é mais eficiente”, explica.

Na entrevista, Rauber explica que o relatório holandês contratado por Sebastião Melo foi só enrolação para dissimular o que especialistas gaúchos, de universidades e órgãos técnicos, já tinham explanado antes. Além disso, destaca que Porto Alegre já foi exemplo de políticas públicas de saneamento, coleta de lixo, prevenção a enchentes e preservação ambiental.

“O município já foi exemplo para o Brasil e para o mundo. Possuía atendimento universal de fornecimento de água potável e caminhava celeremente para a coleta total de esgotos e seu tratamento. A Cidade era limpa e agradável, todo lixo tinha coleta regular e destinação adequada, com aproximadamente 25% de reciclagem. Hoje, as duas autarquias respectivas DMAE (Água e Esgotos) e DMLU (Limpeza Urbana) estão completamente sucateadas para “justificar” a privatização de seus serviços. Falta água toda hora, especialmente nos verões, coleta e tratamento de esgotos praticamente estagnada, coleta de lixo precária e irregular, reciclagem inferior a 3%”.

No fim das contas, nada tão difícil de realizar do ponto de vista técnico. O problema de Porto Alegre é o mesmo de todas as democracias representativas do mundo contemporâneo: o sequestro do estado e seus orçamentos pelo capital privado, que, no fim das contas, é a fonte real de todo negacionismo científico. “Precisamos sim de um novo normal, mas um normal sustentável, em que possamos sobreviver e viver em parceria com a natureza”, simplifica Rauber.

<><> Confira a entrevista completa a seguir. 

•        Como observa os debates eleitorais deste ano, a partir de Porto Alegre, uma cidade devastada por uma chuva histórica? É hora de mudar o padrão de abordagem de políticas públicas e programas de governo?

Vicente Rauber: Temos que negar os negacionistas, não só os pseudocientistas, mas especialmente todos aqueles que influem fortemente em nossa vida, governantes, legisladores, sistema judiciário, dirigentes privados, que não só agem a favor da destruição da natureza como pouco fazem para a sua recuperação. A destruição de estruturas públicas essenciais é uma de suas lamentáveis marcas.

Precisamos realizar muito mais rapidamente a substituição dos combustíveis fósseis,  parar de destruir a natureza e produzir mais adequadamente, tanto na agricultura como na indústria, e assim reduzir a emissão de GEEs. Ao mesmo tempo, precisamos intensificar os recursos capazes de captar os GEEs, não deixando-os ir à Camada de Ozônio.

Estas duas ações combinadas chamamos de Transição Energética. Como vimos acima na situação brasileira, a União e os Estados têm muito a fazer. Mas é nos municípios que a vida acontece, então é nestes entes da Federação que poderemos realizar uma verdadeira revolução na vida e recuperar nosso Planeta.

É possível, sim, preservar áreas ambientais, produzir reduzindo fortemente a poluição e viver com hábitos adequados. Prevenir é o melhor remédio: dói menos, custa menos e, tenham certeza, é mais eficiente.

Cada município, se ainda não o fez, deve identificar a origem da emissão dos GEEs e tomar as medidas cabíveis. Com certeza podemos ter cidades e municípios mais sustentáveis, menos caros e com maior qualidade de vida para todos.

•        E Porto Alegre como está neste tema da Transição Energética?

Vicente Rauber: Vou usar o município de Porto Alegre, onde vivo, cuja situação em termos gerais, pode servir de referência para os grandes populações e regiões metropolitanas. Os GEEs são gerados, aproximadamente, em 67% pelos combustíveis fósseis; os resíduos sólidos, comumente chamados de lixos, especialmente quando mal tratados, podem chegar a 10%, e o restante fica por conta das indústrias, agricultura, demais atividades e pelos nossos hábitos.

Portanto, para prevenir e resolver questões ambientais, a redução e captação dos GEEs, é necessário agir em relação ao transporte e ao saneamento básico, também conhecido como saneamento ambiental.

No caso do transporte, além das necessárias racionalizações e valorização do transporte coletivo, a grande diferença, marcante de nossa época, será a introdução dos veículos elétricos.

Já citamos acima o quanto a energia elétrica é eficiente e praticamente sem poluição no seu uso. Imagine, você, paulista, carioca, mineiro, nordestino, gaúcho, não receber mais veneno vinda dos canos de descarga e sequer ter ruídos de veículos em sua cidade. Isto reduzirá imensamente a emissão dos GEEs pelo transporte. A nossa saúde e a natureza do planeta agradecerão!

•        E qual poderia ser uma política adequada de saneamento básico?

Vicente Rauber: Esta é a política pública completamente menosprezada nas estruturas públicas, especialmente nos municípios, que são, pela Constituição e pela legislação, os responsáveis pela sua execução e manutenção, e necessitam do apoio dos Estados e da União.

Em Porto Alegre temos um verdadeiro exemplo de retrocesso e irresponsabilidade nesta área. O município já foi exemplo para o Brasil e para o mundo. Possuía atendimento universal de fornecimento de água potável e caminhava celeremente para a coleta total de esgotos e seu tratamento. A Cidade era limpa e agradável, todo lixo tinha coleta regular e destinação adequada, com aproximadamente 25% de reciclagem. Hoje, as duas autarquias respectivas DMAE (Água e Esgotos) e DMLU (Limpeza Urbana) estão completamente sucateadas para “justificar” a privatização de seus serviços. Falta água toda hora, especialmente nos verões, coleta e tratamento de esgotos praticamente estagnada, coleta de lixo precária e irregular, reciclagem inferior a 3%.

A pior situação está na área de drenagem pluvial e proteção contra inundações. Em 1973, após verificar-se a imensa necessidade de um sistema de drenagem ampliado e eficiente (mais de 40% da cidade em altitude muito próxima das águas do Gravataí e do Guaíba em tempos secos), com 20 importantes arroios (córregos) a serem permanentemente recuperados e com um enorme e fundamental sistema de proteção contra inundações a ser conservado adequadamente em regime contínuo, criou-se uma estrutura de primeiro escalão chamada DEP – Departamento de Esgotos Pluviais.

Em 2017, em nome da suposta importância do “estado mínimo”, extinguiu-se o DEP. Na prática retrocedemos mais de 50 anos! Na sequência, recursos a fundo perdido destinados pela União para ampliação e modernização das Casas de Bombas foram perdidos pela falta de apresentação dos projetos executivos. Desde 2020 não ocorrem as mais elementares manutenções em comportas e Casas de Bombas, muito pouca limpeza de canalizações, canais e dos próprios arroios foi realizada.

O resultado catastrófico veio em maio. A Cidade ficou bem mais inundada do que em 1941, mesmo contando com um Sistema de Proteção contra inundações como nenhuma outra capital brasileira possui. O Sistema de drenagem, por estar completamente assoreado também não funcionou, por óbvio. Já a prática de medidas preventivas ambientais e de Educação Ambiental, nem pensar!

Tudo foi devidamente diagnosticado por 48 profissionais da área, pesquisadores e ex-dirigentes, como é o meu caso, com propostas de soluções mesmo com a Cidade inundada e após as águas baixarem. Foram vilmente atacados com agressões pessoais e fakes. Em contraposição foi chamada uma ampla delegação holandesa que, por nenhum acaso, chegou às mesmas conclusões!

•        E o DEP deve ser recriado?

Vicente Rauber: Com certeza. É um das nossas propostas após a águas baixarem. É necessário esclarecer que é inadequado inserir as atividades de drenagem pluvial e proteção contra inundações (ou mesmo qualquer outra) nas empresas e autarquias de água e esgotos, porque estas estão estruturadas e tem seu orçamento definido pela respectiva tarifa que nós pagamos para esta finalidade.

Aliás, em Porto Alegre, isto já havia sido constatado em 1973. E estas empresas e autarquias tem mais do que fazer: eu desconheço qualquer município brasileiro que tenha abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos universalizada.

Elaboramos uma proposta de Projeto de Lei (autorizativo, para evitar vício de origem) criando a Secretaria de Drenagem e Estruturas de Proteção, recriando a histórica sigla DEP, com atribuições ajustadas às urgências da drenagem e proteção contra inundações, e ainda contribuições efetivas de proteção à uma Cidade que necessita reconquistar qualidade de vida e contribuir para um planeta mais sustentável.

Foi registrado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 15/7/2024, inicialmente por 4 vereadores, recebendo mais adesões e em debate. Como podemos ver no arquivo anexo, terá forte integração com as atividades de meio ambiente, atuará com amplos programas de educação ambiental, de recuperação dos arroios, como tínhamos o Programa “Arroio Não é Valão” criado em 1990 (vide ilustrações), participará do tratamento de esgoto e lixos, terá integração com o Estado e com a União, bem como com as demais secretarias municipais, buscando evitar novos alagamentos, especialmente nos licenciamentos, exigindo obras compensatórias, quando for o caso.

Será um forte apoio à Defesa Civil, tanto na realização regionalizada de previsões como na prevenção e apoio a populações atingidas. Para municípios mais populosos esta estrutura poderá ser uma referência.

•        Ainda sobre o Saneamento Básico, como pode contribuir para uma cidade mais sustentável e com mais qualidade de vida e contribuir para a Transição Energética?

Vicente Rauber: Precisa efetivamente ser valorizado. Traz soluções menos caras. Para cada real investido em saneamento básico poupa-se três reais em saúde. Melhora a educação, porque quem não possui água tratada e nem retirada dos esgotos em sua casa não consegue aprender. Produz empregos e rendas direta e indiretamente. Apoia todas as atividades produtivas.

Deve ser realizado integradamente, especialmente com as atividades do meio ambiente e habitação. Os resíduos devem ser diminuídos, especialmente com reúsos, reciclagens e compostagens. As águas correntes ou estacionadas devem ser permanentemente recuperadas. Deve haver programas permanentes de reassentamento das populações em áreas de risco, e transformação destes locais em áreas verdes, criação de mais vegetação tanto no meio urbano como rural, jamais deixar a terra nua, evitando ser arrastada pela chuva e tornar-se degradada.

Se for um município também agrícola, devem ser intensificadas as práticas definidas no Plano ABC – Agricultura de Baixo Carbono. Assim todos(as) teremos uma vida melhor, menos cara e ajudaremos o Planeta a evitar novas catástrofes climáticas.

•        Poderemos ter novos desastres climáticos como os que temos sofrido como no Rio Grande do Sul, Amazônia e Pantanal?

Vicente Rauber: Poderemos. E há quem diga, conformadamente, que este é o novo normal e precisamos nos adaptar a ele. Precisamos, sim, preparar-nos bem melhor. Mas se apenas fizermos isto caminharemos rapidamente para o nosso fim. Os desastres climáticos têm sido cada vez mais frequentes.

No RS tivemos três eventos de inundações nos últimos 8 meses, todos com tempo de recorrência superior a 50 anos. Resistiremos a outros tantos se ocorrerem a seguir, mesmo que sejam de outro tipo, como secas e calor intenso?

Precisamos sim de um novo normal, mas um normal sustentável, em que possamos sobreviver e viver em parceria com a natureza.

•        Qual a causa mais objetiva destes desastres climáticos?

Vicente Rauber: Ao contrário do que dizem os negacionistas, pseudocientistas, que felizmente existem em número cada vez menor e cada vez mais desacreditados, há um aquecimento terrestre, eu diria um sobreaquecimento terrestre, que colocou a natureza em desequilíbrio.

O aquecimento e a luz do sol são imprescindíveis. Sem eles seríamos algo como uma bola completamente gelada e escura. Os raios solares ao atingirem a terra são rebatidos e parte deles, os infravermelhos (raios de calor), retidos na camada de ozônio, que existe desde sempre e atua como uma estufa para nosso planeta.

Assim, a Terra permanece aquecida. Ocorre que a esta camada de ozônio estão chegando gases produzidos na terra, aumentando-a, gerando uma estufa maior, por isto chamados de gases de efeito estufa – GEEs.

No planeta a maior parte, em torno de dois terços, destes gases é produzida pelos combustíveis fósseis, especialmente derivados de petróleo e carvão mineral. No Brasil temos uma situação distinta, mas também muita grave: estamos entre os 10 maiores emissores de GEEs. E quem gera GEEs no Brasil (dados aproximados): 45% são provenientes das queimadas, derrubadas e deterioração de nossos biomas, em especial a Amazônia; 25% decorrem da forma que realizamos agricultura e pecuária; 20% decorrem da queima de combustíveis (transporte e indústria, principalmente) e os 10% restantes para as outras atividades.

O aspecto positivo em nosso país é a nossa matriz elétrica, ou seja, com quais recursos energéticos produzimos a energia elétrica. Em 2023, 93% da energia elétrica produzida no país veio de fontes renováveis, no caso, quedas d’água, ventos, sol, e bagaço de cana. Ainda podemos e devemos aumentar o uso destes recursos.

A energia elétrica tem impactos ambientais em sua geração e transporte até os locais de consumo, porém praticamente inexiste poluição em seu uso. Sua eficiência é muito grande, praticamente três vezes maior do que os combustíveis fósseis. Ressalte-se, como vimos acima, que a disponibilidade de energia elétrica depende de outros fontes, ditas primárias.

 

Fonte: Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania

 

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