segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A tara secreta dos capitalistas digitais

As empresas que sobreviveram à bolha pontocom [na virada do século] tinham uma coisa em comum: elas haviam “tornado-se meta“. Tim O’Reilly, editor de livros de tecnologia, chamou isso de Web 2.0. Ele disse que as empresas da Web 2.0, como Google e eBay, tratavam a rede como uma plataforma e tiravam proveito a atividade dos usuários, em vez de gastar dinheiro com seus próprios funcionários e mercadorias. Ao contrário do Yahoo, o Google não contratou humanos para criar taxonomias da web; ele usava algoritmos para catalogar os hiperlinks existentes e depois organizá-los em um banco de dados pesquisável. Ao contrário das muitas lojas online, o eBay desenvolveu uma plataforma automatizada que conectava vendedores e compradores. Empresas e projetos da Web 2.0, da Wikipedia e do Blogger à SourceForge e ao iTunes, dependiam da produção entre pares. Elas eram, por si só, operações meta que simplesmente agregavam todos os que criavam valor no nível abaixo.

O que tornava um negócio verdadeiramente digital era o fato de ele ser capaz de subir um nível acima da concorrência. Cada novo nível representava um salto exponencial, de x para x ao quadrado, para x ao cubo e assim por diante. Uma plataforma de viagens (Expedia, Travelocity) torna-se meta diante das companhias aéreas, agregando os dados de todos os seus sites para mostrar os melhores preços. Um nível acima disso, um agregador desses agregadores (Kayak, Orbitz) pode mostrar qual deles está fazendo a agregação com maior eficiência. Não foque no conteúdo, insistiam especialistas como O’Reilly, mas na plataforma onde todos postam o conteúdo. E se já houver muitas plataformas, torne-se a plataforma das plataformas. “O meio é a mensagem” tornou-se o mantra de negócios para The Mindset — a nova mentalidade do Vale do Silício, enquanto o próprio Marshall McLuhan conquistou um lugar póstumo na página editorial da revista Wired como o “santo padroeiro” da revista.

Segundo Peter Thiel, qualquer nova ideia de negócio deve ser 10 vezes melhor do que o que já existe — literalmente, uma ordem de magnitude melhor. Pegando emprestada uma frase de seu antigo professor de filosofia em Stanford, René Girard, Thiel acredita que “competição é para perdedores”. Todo mundo está engajado em um jogo simples de imitação, ou o que Girard chama de “mimese”. Embora seja uma ótima maneira para crianças aprenderem com seus pais, entre adultos isso cria uma cultura de competição, onde todos cobiçam o que seus vizinhos têm. Tudo segue assim até que a competição se torne tão extrema, ou mesmo violenta, que ao fim escolhe-se um bode expiatório (judeus, imigrantes, homossexuais ou até um indivíduo único) para receber as culpas pelo seu conflito. A violência então alivia a tensão, e a competição começa de novo. (Girard e Thiel acreditam que Cristo foi destinado a acabar com esse ciclo de violência, servindo como o último e definitivo bode expiatório. A crucificação e a ressurreição do filho de Deus poderiam libertar a humanidade do ciclo de violência — se as pessoas fossem encorajadas a acreditar no mito como verdade literal.)

A implicação para os negócios, no entanto, é evitar competir com todos os outros e, em vez disso, inovar no próximo nível. Devemos conseguir isso mantendo “fidelidade a um evento” — a devoção singular a um futuro que os outros ainda não conseguem enxergar. Thiel viu o salto claramente no Facebook de Mark Zuckerberg. Em vez de competir para construir o melhor site ou página pessoal, Zuckerberg subiu de nível para construir a plataforma onde as pessoas e empresas podem fazer isso. Em vez de imitar, ele transcendeu o jogo. Deu aquele salto exponencial, uma ordem de magnitude acima dos simples mortais rumo ao reino do sucesso, autonomia, autodeterminação e salvação.

Agora que o modelo de negócios do Facebook está sendo questionado, Zuckerberg está fazendo isso de novo, tornando-se meta na rede ao renomear sua própria empresa como Meta. Está tentando agregar preventivamente tecnologias de realidade virtual e aumentada que ainda não foram inventadas em um único “metaverso”, sobre o qual reinará a partir de um nível superior.

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O estilo pós-moderno de guerra empresarial, onde as corporações buscam ultrapassar umas às outras em seus paradigmas, repete-se nos mercados financeiros que as capitalizam. Os investidores correm para inventar novos derivativos e meta-derivativos capazes de subsumir ou agregar os que vieram antes.

Mas o verdadeiro salto ocorreu quando os negociadores se substituíram por algoritmos capazes de agregar dados de todas as plataformas de negociação e executar negociações de alta frequência em uma taxa e volume além da capacidade cognitiva de centenas de seres humanos. Esses mercados de derivativos rapidamente ultrapassaram a atividade de negociação tradicional nas bolsas de valores. A negociação de derivativos tornou-se tão dominante que a Bolsa de Valores de Nova York foi comprada por sua bolsa de derivativos em 2013. O mercado de ações — já uma abstração do mercado real — foi engolido por sua própria abstração. Enquanto isso, ainda mais tecnólogos tentam subir de nível repetidamente, vendendo os algoritmos de negociação, o aprendizado de máquina para desenvolver esses algoritmos ou as plataformas para suportar o aprendizado de máquina. Cada nível de abstração gera o próximo.

Ainda assim, todos eles dependem do enunciado inicial da revolução digital: qualquer coisa que importe pode ser digitalizada. Assim como os mapas abstraíram terras em parcelas monetizáveis, os computadores convertem coisas em suas contrapartes digitais, tornando-as grãos para o moinho exponencial e apoiando a necessidade subjacente do capitalismo de fazer o dinheiro crescer. Nada tornou isso mais claro do que o substituto digital para a moeda central — o cripto.

Inicialmente concebido ao lado do movimento Occupy Wall Street, o protocolo Bitcoin ofereceu uma maneira para as pessoas autenticarem transações sem envolver bancos, taxas e intermediários usurários. Mas, assim como os reis por trás da moeda que cunhavam, os especuladores estavam menos preocupados em facilitar transações do que em lucrar com elas e aumentar o preço do token Bitcoin. Milhões de computadores em todo o mundo agora não têm outro propósito senão atestar o valor do Bitcoin, girando seus ciclos e gastando eletricidade em cálculos sem propósito — consumindo mais energia que toda a Suécia. Estamos literalmente queimando o mundo real para atestar o valor dos símbolos digitais — alimentando a realidade para sua contraparte digital mais multiplicável.

Para os detentores de “The Mindset”, todo esse poder que desperdiçam é como o primeiro estágio de foguete que os leva ao próximo nível. Ele gasta muito combustível antes de ser descartado para que caia de volta ao planeta, enquanto os astronautas continuam sua jornada. Não olhe para trás, olhe apenas para frente. Claro, o verdadeiro dinheiro será ganho pelas empresas que se tornam meta nesse processo. Enquanto os investidores em criptomoedas arriscam investindo, ou arrancam pequenas margens minerando moedas por conta própria, jogadores mais espertos procuram tornar-se o cassino e construir as bolsas onde toda essa negociação acontece. Em abril de 2021, a Coinbase foi a primeira dessas bolsas a abrir capital, com um lançamento inicial de ações avaliado em cerca de 100 bilhões de dólares. Como se soubessem que alguém havia tornado-se meta sobre suas participações, os negociadores institucionais de criptomoedas começaram a sacar seus tokens naquela semana, levando a uma queda nas cotações.

Quando o valor é gerado no processo de subir na escala “meta”, os dados sobre nosso mundo tendem a se tornar mais importantes do que o que realmente há no mundo. Os futuros de barriga de porco são mais fungíveis e multiplicáveis do que as barrigas de porco reais. Os dados são mais limpos, leves e rápidos do que seus análogos do mundo real. É melhor converter tudo para digital. Cada um de nós está se tornando mais valioso como dados do que como consumidores do mundo real, ou até mesmo humanos. Isso leva a uma desconexão entre benefícios e lucros. As empresas por trás de nossos rastreadores de atividades físicas e aplicativos de exercícios ganham mais dinheiro com nossos dados — geralmente anonimizados — do que nos tornando mais saudáveis. Nossas redes sociais podem lucrar tremendamente com o perfil de dados de uma adolescente, mesmo que as plataformas tornem essa garota mais propensa a se autolesionar ou fazer algo pior. A nuvem não se importa. A adolescente deixou de ser uma garota. Ela tornou-se puro dado abstrato. É o paraíso digital para aqueles que sabem como ascender, e algo completamente diferente para aqueles de nós que foram deixados para trás.

Como cúmulo, os seguidores mais devotos de “The Mindset” buscam ir além de si mesmos, converter-se em forma digital e migrar para esse reino como robôs, inteligências artificiais ou clones mentais. Uma vez lá, vivendo no mapa digital em vez do território físico, eles se isolarão do que não gostam por simples omissão. Assim como nossos mapas de GPS proprietários não mostram os restaurantes que se recusam a anunciar na plataforma, a paisagem digital para a qual migraram estará livre de pobreza, poluição e de tudo o que temos que enfrentar.

Como sempre, a narrativa termina em alguma forma de fuga para aqueles que são ricos, inteligentes ou singularmente determinados para dar o salto. Mortais comuns não devem se candidatar. Tive uma discussão acalorada sobre isso com o transhumanista Ray Kurzweil. Em uma entrevista para um programa de TV, Ray e eu acabamos de compartilhar nossas visões mais otimistas sobre as maneiras como a tecnologia redefiniria o que significa ser humano.

Para mim, era algo relacionado a conectividade aprimorada, e talvez um novo apreço pela estranheza não tecnológica e sagrada da existência corporal. Para ele, era transcender a mera mortalidade e fundir-se com as máquinas como dados puros. Ele explicou que, dentro de apenas algumas décadas (e ele vem dizendo isso há algumas décadas), os seres humanos alcançarão a imortalidade ao fazer o upload de suas mentes para a nuvem e transferi-las para novos hardwares. Tudo sobre nós que pode ser convertido em dados será preservado. O que não pode — bem, isso não é real, de qualquer maneira…

Fiz um apelo apaixonado por aspectos da experiência humana que não podem ser transferidos para a nuvem. “E o que dizer das coisas macias e suaves?” provoquei. Os seres humanos podem abraçar e sustentar paradoxos, em suas vidas. Nem tudo a respeito de nós pode se resolver em um ou zero.

Kurzweil chamou isso de “ruído”. Explicou que minha perspectiva era muito centrada no ser humano. A informação é realmente quem está no comando, tendo evoluído desde a formação do universo para estados cada vez mais elevados de complexidade. Uma vez que os computadores possam suportar maior complexidade do que o cérebro humano, a informação inevitavelmente migrará de nossos processadores biológicos para os digitais superiores. Presume-se que eles estejam sendo agora projetados pela equipe do Google, onde Kurzweil hoje atua como tecnólogo sênior. Depois disso, os seres humanos serão importantes apenas na medida em que formos necessários para servir às máquinas. Devemos aprender a aceitar nossa obsolescência. Se quisermos fazer parte do futuro de alguma forma, precisamos avançar com uma visão singular em direção à “singularidade” e oferecer tudo sobre nós que pode ser convertido em dados puros.

A visão de Kurzweil é uma compreensão agnóstica da plataforma sobre a vida, a mente e a informação. Segundo ela, os dados que contemos — o software que executamos estão tão bem abrigado em um chip de silício como na umidade dos cérebros. Segundo sustenta o cofundador do Google, Larry Page, o DNA humano é apenas 600 megabytes comprimidos, menor do que qualquer sistema operacional moderno Seus algoritmos de programa provavelmente não são tão complicados. Esse modelo de biologia humana é tão redutor quanto a afirmação de Dawkins de que “a vida é apenas bytes e bytes e bytes de informação digital.” Assim como Francis Bacon e os primeiros cientistas empíricos negaram qualquer aspecto da natureza que não pudesse ser quantificado, os reducionistas digitais de hoje nos tentam negar qualquer aspecto da experiência humana que não possa ser quantificado como código. Tudo pode ser representado como símbolos. Tudo é apenas informação. Nada estranho, úmido ou verdadeiramente selvagem. A religião nerd definitiva.

Ao se recusar a reconhecer qualquer coisa que não possa ser quantizada em um ou zero, essa análise perde tudo que está no meio. Ela descreve uma realidade autotunada, onde cada nota deve ser ajustada para cima ou para baixo para a sintonia quantizada mais próxima. As sutilezas da interpretação de um vocalista — o que os verdadeiros apreciadores de música mais escutam são desconsideradas como ruído. A ênfase na vida como uma forma de código também ignora o contexto e a cultura na qual essa vida está se desenrolando. Cientistas mais refinados reconhecem que o DNA é importante, mas não é nem metade da história de como um organismo expressa a si mesmo. O DNA é um conjunto de potenciais totalmente dependentes da sopa de proteínas na qual se encontra. Nossos corpos e mentes são menos um instrumento para a preservação do DNA do que o DNA é um andaime para a expressão da vida humana e de outras formas de vida.

A redução da realidade à informação e dos humanos a genótipos encaixa-se muito convenientemente com o imperativo do capitalismo de converter tudo em uma forma adequada para o mercado. Tudo é dado, tudo tem um preço, tudo pode ser multiplicado. O objeto descrito e codificado é tudo o que importa; qualquer outra coisa torna-se DNA inútil, espécies inferiores ou a maioria dos seres humanos. O tecnólogo rico se transfere para a nuvem, enquanto as massas ficam para trás competindo entre si no reino da matéria. Como Cristo ou qualquer outra figura salvadora, apenas o indivíduo totalmente codificado pode ser transubstanciado para o próximo nível.

Assim caminha a escatologia ateísta de “The Mindset”.

 

Fonte: Por Douglas Rushkoff | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

 

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