UM PARQUE NO
CORAÇÃO DO CONTRABANDO DE PAU-BRASIL
Quem chega ao Parque Nacional do Pau Brasil (PNPB), em
Porto Seguro, no Sul da Bahia, é convidado a conhecer a história da madeira que
dá nome ao país. O centro de visitantes da unidade conta, por meio de painéis,
a história dos ciclos do pau-brasil, do uso como tintura de tecidos, durante a
colonização portuguesa, à confecção de arcos de violino a partir do século XIX.
Um desses murais informa que grandes orquestras sinfônicas usam pau-brasil para
fabricar arcos de violino. A legenda não diz que aquele arco exposto não é
feito da árvore símbolo do país, nem que os servidores do parque precisam
frequentemente coibir a ação de criminosos que integram um esquema ilegal que
abastece o mercado nobre da archetaria – a arte de fabricar esses arcos. O
pau-brasil está, desde 1992, ameaçado de extinção. Qualquer extração dessa
madeira sem autorização é crime.
A piauí, em parceria com a agência
de dados Fiquem Sabendo, obteve laudos
e relatórios inéditos da Polícia Federal (PF) e da agência governamental
americana US Fish and Wildlife Service. Os documentos revelam detalhes da
investigação do esquema de tráfico de madeira e, pela primeira vez, atestam que
parte da matéria-prima encontrada com fabricantes de arcos e empresários saiu
ilegalmente do parque encravado na Costa do Descobrimento, patrimônio natural
mundial da Unesco e abrigo de espécies da Mata Atlântica. O crime ambiental é
apenas um dos problemas na região, que incluem violência contra servidores,
ameaças a moradores, disputa por terras e até um homicídio recente sem solução.
A
cerca de 20 metros do espaço aberto aos turistas, a piauí conheceu, em abril deste
ano, um lugar interditado aos visitantes: um depósito a céu aberto de árvores
cortadas, incluindo toras de pau-brasil. Antes que seguissem para abastecer
mercados ilegais, elas foram interceptadas por fiscais ambientais que atuam no
parque, uma área de 19 mil hectares sob responsabilidade do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao
Ministério do Meio Ambiente (MMA). O depósito é uma memória, ainda que parcial,
do avanço de contrabandistas de madeira sobre uma área federal e protegida por
lei. Segundo o ICMBio, as toras serão utilizadas para construir pontes e
mirantes dentro do parque.
Criado
como unidade de conservação em 1999, o Parque Nacional do Pau
Brasil é rodeado por sete distritos. Na vizinhança, ainda estão
Arraial D’Ajuda e Trancoso, dois points do turismo de luxo no
Brasil. São moradores de comunidades mais pobres, como Vale Verde e
Coqueiro Alto, ainda não incorporados à lógica do turismo, que participam mais
ativamente da rede de extração de madeira do parque, disputada por grupos
criminosos rivais.
Segundo
o analista ambiental Fábio Faraco, ex-chefe do ICMBio no parque, uma pessoa
pode ganhar, por uma ou duas noites de trabalho com o corte ilegal, até 500
reais, o equivalente a quase metade de um salário mínimo. “Todo esse circuito
econômico ilegal é muito rentável. São pessoas que acabam vendo no pau-brasil
uma oportunidade de grana fácil.” Ele esteve à frente da unidade de conservação
até 2019.
À
noite, o som das motosserras, ligadas para derrubar árvores do parque, chega à
casa de um produtor rural de 25 anos, morador da zona rural de Vale Verde, a 2
km dali. A unidade de conservação e a comunidade rural são unidas por quatro
estradas de terra. Em fevereiro deste ano, quando passava por uma delas, por
volta das 20 horas, o agricultor (cujo nome será mantido em sigilo por motivo
de segurança) deu de cara com dois homens a bordo de um caminhão e uma moto,
rumo ao parque. Um deles lhe disse: “Vamos sair carregados.” Carregados de
pau-brasil.
Desde
o início deste ano, o ICMBIo apura novas denúncias de derrubada de árvores
dentro do parque. Entre os meses de janeiro e março, seis fogueiras foram
encontradas no interior da unidade, rastros da presença de ladrões de madeira e
caçadores. Árvores de todo tipo estão na mira dos contrabandistas, mas o alvo
mais cobiçado é o pau-brasil, uma madeira de alta nobreza e resistência, que
não apodrece nem é atacada por insetos – e por isso tudo considerada ideal para
arcos de violino.
O
ICMBio não informou o andamento das investigações. Em nota, disse que “realiza
fiscalizações constantes no Parque Nacional do Pau Brasil para inibir ações de
degradação ambiental”, que “as denúncias são devidamente apuradas” e “as
operações reforçadas com apoio do Ibama e da PF”. Afirmou também que os
servidores do parque não concederiam entrevista para que a segurança deles
fosse preservada.
Dentro
do parque, a derrubada de árvores costuma durar duas noites, uma para cortar e
outra para carregar a madeira. O esquema pode englobar ao menos cinco pessoas:
duas para decepar as árvores, duas para vigiar e um motorista, que leva as
toras de madeira para propriedades rurais ou marcenarias ilegais na região.
Antes, os troncos são cortados em pedaços, o que dificulta a identificação da
espécie e facilita o transporte.
Ao
menos desde 2016, equipes da PF, do Ibama e do ICMBio realizam operações para
tentar romper o ciclo ilegal de retirada do pau-brasil do parque. Em julho
daquele ano, um relatório interno elaborado pelos então gestores do parque já
havia identificado três bandos de criminosos, cada um deles formado por sete
pessoas. Naquele mesmo mês, antes da elaboração do documento, Diego Lopes de
Oliveira, 36, ex-brigadista no parque, foi encontrado por policiais militares
com vinte toras de pau-brasil e detido por crime ambiental e associação criminosa.
Em depoimento à Polícia Civil da Bahia, afirmou que a madeira seria exportada
para Itália e Portugal, onde serviria para a confecção de arcos de
violino.
“Peões”
como Oliveira, que cortam madeira dentro do parque, são a base da pirâmide do
contrabando do pau-brasil. No meio está o artesão que recebe a madeira sem
origem legal. No topo, empresários que exportam o produto, com lucro semelhante
ao do tráfico de cocaína, conforme mostrou a piauí. Uma vareta da
matéria-prima, usada para fabricar o arco, pode custar de 20 a 40 reais,
segundo a PF. Em loja no exterior, alguns modelos de arco podem custar
mais de 20 mil reais.
Desde
2021, Polícia Federal e Ibama investigam o esquema na chamada Operação
Ibirapitanga, que só no ano passado cumpriu 37 mandados de busca e apreensão –
três deles no Sul da Bahia. Os empresários acusados de usar madeira obtida
ilegalmente sempre alegaram que a matéria-prima para produzir os arcos vinha de
plantios próprios ou doações de extrações mais antigas, autorizadas e dentro da
lei.
O
que os documentos obtidos pela piauí mostram,
porém, é que parte considerável da madeira sai do parque na Bahia. A perícia da
Polícia Federal estudou a composição anatômica de amostras de madeira do parque
e de outras apreendidas em propriedades e pátios dos investigados na operação.
Os laudos técnicos, finalizados em dezembro passado, apontaram que a maior
parte das amostras apreendidas “corresponde às de referência oriundas do Parque
Nacional do Pau Brasil, de origem natural”.
A
hipótese de que a madeira utilizada pelos fabricantes de violino investigados é
extraída de árvores centenárias é corroborada pelas características do
pau-brasil necessárias para fabricar um arco, que demandam árvores mais
maduras. Depois de extraída, a espécie demora, no mínimo, dois anos para secar
e ser manuseada. Um arco de violino costuma ser produzido com o cerne da árvore.
“Essa
é uma parte mais mole, tipo uma medula. Demora a se desenvolver. É uma questão
que estamos estudando: quanto tempo demoraria [a plantação] para virar
um arco de violino. Cinco anos é impossível para fazer um arco; em trinta anos,
tem arcos que foram produzidos. É que nem whisky. Um de oito anos não vai ser
igual a um de trinta”, explica o engenheiro florestal Daniel Piotto, professor
da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e doutor em estudos florestais
pela Universidade de Yale, que pesquisa Mata Atlântica há vinte anos.
A
investigação da PF e das autoridades americanas apontou ainda que empresários
do setor dos arcos de violino usaram documentos falsos, terceirizam atividades
com laranjas para evitar embargos e fizeram exportações ilegais. Um exemplo é o
caso de Julio Cesar Batista, da empresa JB Atelier e presidente da associação
que reúne alguns dos principais fabricantes de arcos de violino, a AAUMAbr
(Associação dos Artesãos e Empresas de Cordas Unidos na Preservação da Mata
Atlântica Brasileira). Ao menos cinco processos foram abertos contra
a JB Atelier, que soma 3,2 milhões de reais em multas, mostram dados
abertos do Ibama.
Segundo
o relatório, Batista usou um trio de artesãos autônomos como laranjas para
despistar a fiscalização do Ibama, depois de sofrer embargos pelo instituto, em
2018, por não comprovar a origem da madeira que usava para fabricar os arcos.
Os artesãos recebiam a matéria-prima de Batista e devolviam o produto acabado
para venda, incluindo exportação. Batista também controla uma empresa nos
Estados Unidos, a Sousa Bows, criada por ele em 2002.
Lá
também houve investigação. A piauí teve
acesso a dois documentos produzidos pela agência governamental US Fish and
Wildlife Service, que apontam que, entre 2018 e 2021, Batista exportou para os
Estados Unidos 1.502 arcos feitos de pau-brasil. Para a agência americana, o
empresário descumpriu o Lacey Act, legislação que proíbe a importação
de produtos de origem animal ou florestal obtidos em violação a outras leis, o
que pode levar à prisão por cinco anos e multas de mais de 1 milhão de
reais. A JB Atelier segue impedida de comercializar e fabricar
instrumentos musicais.
Batista
afirmou à piauí que
sempre respeitou os embargos impostos pelo Ibama e que a JB Atelier encontra-se
em insolvência. Sobre a acusação do uso de laranjas, ele admitiu que contratou
serviços de outra empresa e forneceu material de seu estoque particular para
confecção de arcos, mas negou irregularidades. Disse ainda que a Sousa Bows não
comercializa mais arcos desde o final de 2021.
A
JB Atelier afirmou desconhecer que a madeira utilizada tenha sido extraída no
parque. “Toda matéria-prima utilizada pela JB Atelier foi adquirida por meio de
documentos de origem florestal e lançados no sistema DOF [Documento de
Origem Florestal, uma licença obrigatória para transporte e armazenamento de
produtos florestais de origem nativa] através dos meios legais, sendo
exigido dos fornecedores responsabilização contratual pela legalidade das
matérias-primas, informando inclusive as coordenadas de origem das madeiras.
Sendo assim, se ela foi extraída do Parque Nacional do Pau Brasil, nós não
podemos afirmar, uma vez que o processo de aquisição cumpriu todos os
requisitos previstos em lei e não temos recursos técnicos para fazer esta
avaliação. Cumprimos o que a legislação determina.”
Susanne
Breitkopf, vice-diretora de Campanhas Florestais da Environmental Investigation
Agency (EIA), organização que investiga crimes ambientais pelo mundo, critica a
falta de ações capazes de assegurar o fim do contrabando. “As agências [do
governo americano] precisam receber os recursos e treinamento adequados
para que possam controlar as importações e parar e investigar remessas
suspeitas. A Lacey Act é uma das leis mais importantes que temos atualmente
para impedir o destruição ilegal de florestas e violações de direitos humanos
associadas.”
Além da extração ilegal de madeira, outros crimes
ambientais, como a caça, extração de areia ilegal e invasão e ocupação de área
sem autorização são frequentemente coibidos no parque. Na última década, ao
menos cinquenta infrações foram registradas pelo ICMBio dentro do parque,
segundo dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pela agência
Fiquem Sabendo. Quem frequenta a unidade de conservação está acostumado a
ver os rastros deixados por infratores. “Já vimos caçadores às seis da manhã. A
gente já viu armas”, conta o publicitário Daniel Silva, que contou vinte
troncos de pau-brasil cortados no chão do parque enquanto percorria, de
bicicleta, uma das seis trilhas do lugar, em 2021.
Outro
desafio para o ICMBio é a permanência, no interior e no entorno do parque, de
diversas áreas privadas, pois ainda não foram desapropriadas. A criação da
unidade de conservação, há mais de duas décadas, e sua ampliação em 2010
enfrentaram resistência de médios e grandes proprietários que queriam manter a
posse de suas fazendas. Antes de ser transformada em área de proteção
ambiental, a área era explorada por uma empresa privada estrangeira. Depois que
a companhia saiu da região para que a unidade de conservação fosse criada,
antigos proprietários questionaram o status do território como bem público.
Quase metade da área do parque (46%) ainda não está regularizada, segundo o
ICMBio. A instituição tem adotado uma estratégia para aumentar essa fatia: se
uma pessoa ou empresa precisa regulamentar outra área dentro do mesmo bioma (a
Mata Atlântica), ela pode, como compensação, comprar terras dentro do parque e
doá-las ao Estado.
Até
hoje há, dentro do parque, terrenos fechados com portões e cadeados, fora do
alcance das autoridades. “Praticamente nenhum dono de fazenda mora ali. Ou
ficam em Porto Seguro ou no Espírito Santo. Não se entra na fazenda quando
quer. Geralmente há controle, portaria”, diz o ex-chefe do ICMBio na unidade,
Fábio Faraco.
Um
exemplo desse conflito entre o público e o privado aconteceu em 2021. No dia 27
de setembro, servidores do ICMBio enviaram um pedido de socorro à Polícia
Federal. No documento, no qual solicitavam “suporte institucional e proteção”,
narraram que, na semana seguinte a uma fiscalização que flagrou extração ilegal
de madeira em uma fazenda privada com acesso ao parque pelos fundos, foram
informados do assassinato do gerente do imóvel. O corpo foi encontrado fora do
parque, na zona rural de Queimado, distrito vizinho à unidade. O crime é
investigado pela Delegacia Territorial de Arraial D’Ajuda, mas o inquérito
policial ainda não foi concluído e não se sabe se há ou não relação com a
fiscalização.
Oito
dias antes de o gerente ser encontrado morto, o ICMBio encontrou 26 trilhas
ligando a propriedade a áreas de extração de madeira dentro da unidade de
conservação. Para camuflar os atalhos, havia mudas recém-plantadas de
bananeiras. Na propriedade, foram encontrados 36 m3 de madeiras nativas,
principalmente Paraju e Pequi, extraídas ilegalmente e usadas para ornamentar
forros de casas luxuosas, segundo as autoridades. A infração gerou uma multa de
58 mil reais (proporcional à quantidade de madeira encontrada). Um dos donos da
fazenda, João Crestan, que mora no Espírito Santo, disse não ter participação
na extração das árvores e negou que a madeira tenha sido apreendida no interior
da propriedade. A PF chegou a cumprir um mandado de busca e apreensão na
propriedade de João em Linhares, no Espírito Santo, em outubro do ano passado,
para investigar a possível ligação dos sócios na extração ilegal de madeira
para a fabricação de arcos-violino.
“Sobre
esse esclarecimento da multa, nunca chamaram, nunca chegou documento para meu
sogro, para mim. Essa multa só é citada agora nessa operação do pau-brasil. Nem
sei dizer se é multa, só se for gerada futuramente, nem tem como ser, porque
não foi tirada madeira na propriedade, se foi tirada, alguém tirou, não fui eu.
[…] Só porque fazemos divisa com área de mata, não podemos ser considerados
criminosos. Mas eu fico tranquilo, porque eles não terão prova jamais, porque
não há nada que me ligue a nada, não tem vestígio de nada aqui”, afirmou
Crestan.
Sobre
a morte do funcionário, o produtor rural disse que a última vez que soube de
Derivaldo foi três dias antes do corpo ser encontrado. Para Crestan, a “tensão
de madeira nos fundos da propriedade gera um clima de insegurança”. “São
pessoas que andam armadas o tempo todo, você pode pôr segurança na porteira, eles
vão passar por algum lugar. São situações que levam a gente a temer, ficamos
refém.”
Para
o agrônomo João Carlos Rocha Júnior, que assessora quinze produtores rurais no
entorno do Parque Nacional do Pau Brasil, os proprietários das terras também
são vítimas de uma rede criminosa que utiliza as fazendas quando os donos estão
longe. “Eles [criminosos] usam e abusam dos pequenos. Uma semana, a
gente vê a porteira pocada [arrombada], consertamos. Na semana seguinte,
estava na porteira assim: ‘Doutor, não tranca de novo não, nós sabemos quem
você 锑, exemplificou o consultor, que admite ser “uma realidade a extração
ilegal de pau-brasil no parque”, mas nega a participação dos assessorados por
ele.
A
inevitável conexão entre a atividade criminosa e a indústria musical também
preocupa a Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima). Presidente da
entidade, Daniel Neves tem organizado encontros com os fabricantes de arcos.
Diz que a organização repudia qualquer atividade ilegal, mas defende uma regulamentação
mais clara, capaz de assegurar o direito dos artesãos ao trabalho. “O governo
deve estar tão atento com a ilegalidade quanto apto a buscar soluções para que
o Brasil não perca a liderança e tradição do arco de violino. Há de se buscar
soluções que voltem a viabilizar o trabalho de quem produz o arco no Brasil e
restabelecer o fornecimento global para as empresas que tenham possibilidade de
se regularizar.”
Fonte:
Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário