SEM COMISSÃO, SEM
VERDADE
Quando deixou a
presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em
2019, a procuradora federal Eugênia Gonzaga fez um relatório listando tudo o
que fez à frente do órgão, vinculado ao governo federal. Mas, mais importante,
listou tudo o que ainda precisava ser feito. Quase quarenta anos depois do fim
da ditadura, cemitérios e valas clandestinas usados pelos militares para
desovar cadáveres continuavam intocados. Estima-se, por exemplo, que ao menos
quinze perseguidos políticos tenham sido enterrados como indigentes no Cemitério
Ricardo de Albuquerque, na zona norte do Rio de Janeiro, mas até hoje o governo
não se mobilizou para buscar as ossadas. Em São Paulo, no Cemitério Vila
Formosa, a comissão suspeita que possa haver restos mortais de doze
perseguidos.
Quatro
anos se passaram desde o relatório de Gonzaga e quase nada foi feito. A última
vez em que a comissão identificou ossadas de desaparecidos políticos –
confirmando, com isso, sua morte – foi em 2018. Até hoje, há 208 vítimas da
ditadura militar cujos corpos nunca foram encontrados. Nos últimos quatro anos,
não foi aberta nenhuma nova escavação para tentar achá-los.
“Ficou
tudo parado. A situação é praticamente a mesma de quando eu saí”, diz Gonzaga.
Ela ficou cinco anos à frente da comissão. Não saiu por vontade própria: foi
demitida pelo então presidente Jair Bolsonaro depois de publicar, via comissão,
uma nota atestando que Fernando Santa Cruz – pai do ex-presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) Felipe Santa Cruz – havia sido morto pela ditadura. A
nota era um recado para Bolsonaro, que, dias antes, irritado com críticas de
Santa Cruz ao governo, dissera: “Se o presidente da OAB quiser saber como o pai
dele desapareceu no período militar, eu conto para ele.”
Na
gestão Bolsonaro, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos –
criada pelo Congresso em 1995, e que sempre sofreu com falta de orçamento –
ficou paralisada. Parte disso se deve à pandemia, que, em 2020 e 2021,
dificultou trabalhos de campo e análises laboratoriais de ossadas. Outra parte se
deve ao desinteresse expresso do governo. O colegiado passou a ser presidido
por Marco Vinícius Pereira de Carvalho, ex-assessor de Damares Alves e filiado
ao PSL – partido de Bolsonaro, na época. Sob o comando de Carvalho, um advogado
sem experiência no assunto, a comissão pouco se reuniu nesses quatro anos.
Quando se reuniu, negou requerimentos de pessoas que pediam o reconhecimento de
seus familiares como mortos ou desaparecidos pela ditadura. Já os projetos de
memoriais sobre a ditadura e novas escavações foram engavetados.
Em
dezembro do ano passado, como se não houvesse nada mais a ser feito, a comissão
decidiu se autoextinguir. “Apesar de todos os esforços e o emprego de recursos
materiais, financeiros e humanos para a localização de pessoas desaparecidas,
há situações que esbarram no campo das impossibilidades”, diz o relatório
final, assinado por Carvalho. Como o governo formava maioria na comissão, o
texto foi aprovado por 4 votos a 3.
A
continuidade
da busca pelos restos mortais de vítimas da ditadura é uma das recomendações
deixadas pela Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final, publicado em
dezembro de 2014. Passados quase dez anos, pouca coisa mudou. Uma análise
inédita publicada nesta quarta-feira (26) pelo Instituto Vladimir Herzog
conclui que, das 29 recomendações feitas pela comissão, só duas foram cumpridas
até hoje. Outras seis foram parcialmente cumpridas. Todas as demais aguardam
resposta do poder público.
“O cenário hoje, em alguns casos, é pior do
que dez anos atrás”, diz Gabrielle Abreu, coordenadora executiva de Memória,
Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. No caso das ossadas, é um
argumento difícil de contestar: com o passar do tempo, o material ósseo tende a
se desgastar, dificultando que sejam feitas novas análises de DNA. A situação
dos restos mortais de participantes da Guerrilha do Araguaia, armazenados há
anos no hospital da UnB, em Brasília, é particularmente preocupante. Embora
algumas dessas ossadas tenham sido encontradas por expedições feitas no começo
dos anos 1990, até hoje elas não foram devidamente analisadas.
“Esses
remanescentes ósseos, pelo que soubemos da última vez, estavam começando a
esfarelar, não podiam ser manuseados de novo. E as condições de armazenamento
não eram ideais. Eles tinham que ser mandados direto para o laboratório de
análise”, explica Eugênia Gonzaga. A urgência da análise desse material,
apontada por ela no relatório de 2019, não comoveu a comissão nos anos de
Bolsonaro. As ossadas continuam guardadas no mesmo lugar.
As 29 recomendações
da Comissão Nacional da Verdade variam em tema e complexidade. Há propostas
razoavelmente simples que até hoje não se concretizaram, como a proibição de
comemorações do golpe de 1964 (durante o governo Bolsonaro, tais comemorações
eram até estimuladas). Outras são mais ambiciosas, como a desmilitarização das
Polícias Militares e a extinção dos órgãos da Justiça Militar estadual. As
únicas duas recomendações cumpridas até hoje são a revogação da Lei de
Segurança Nacional – o que aconteceu em 2021, depois de o governo Bolsonaro ter
usado esse dispositivo à exaustão – e a criação da audiência de custódia, que
visa prevenir casos de tortura e prisão ilegal.
Uma
comitiva do Instituto Vladimir Herzog viajou a Brasília esta semana para
discutir o novo relatório com autoridades do governo Lula. Foi recebida no
Ministério dos Direitos Humanos, no Ministério da Justiça e no Ministério dos
Povos Indígenas. “Isso seria algo impensável no governo passado”, diz Abreu,
que participou dos encontros. Apesar da receptividade, ninguém espera que o
novo governo cumpra todas as recomendações feitas pela comissão. Até porque nem
todas dizem respeito ao Poder Executivo. Há propostas que precisam ser
encaminhadas pelo Congresso e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
“Algumas
coisas vão acabar sendo enterradas. Outras nós vamos tocando adiante”,
reconhece Nilmário Miranda, ex-deputado petista que comanda hoje, no Ministério
dos Direitos Humanos, a Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e
Verdade. Sob seu guarda-chuva trabalha a historiadora Paula Franco, que chegou
a atuar como pesquisadora na Comissão Nacional da Verdade. Sua função, agora, é
justamente monitorar o cumprimento das recomendações feitas em 2014. “O que foi
previsto na transição é que a gente abrace o esforço de mapear como estão essas
recomendações”, explica Franco. “A maneira de fazer isso a gente ainda não sabe
exatamente qual vai ser.”
Uma
das medidas mais simples de serem executadas, ao menos em tese, é a
recomendação de número 26: “Estabelecimento de órgão permanente com atribuição
de dar seguimento às ações e recomendações da CNV [Comissão Nacional da
Verdade].” O Instituto Vladimir Herzog defende que o primeiro passo nessa
direção deve ser a criação de um grupo de trabalho interministerial – já que as
recomendações dizem respeito a diferentes pastas. A ideia é que o trabalho seja
encabeçado pelo Ministério dos Direitos Humanos. Mas falta orçamento e equipe.
“O ministério ainda está se conformando”, lamenta Gabrielle Abreu. “Ainda que tenham
se passado cem dias de governo, a gente entende que ainda é um momento de
engatinhar. Não esperamos que isso se resolva ainda este ano.”
Desde janeiro, o
governo Lula promete recriar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos, mas um quiproquó jurídico sobre qual seria a melhor forma de fazer
isso atrasou a publicação da portaria. Os conselheiros já foram escolhidos, e a
procuradora Eugênia Gonzaga vai reassumir a presidência. O grupo só não foi
recriado ainda “por excesso de zelo”, segundo Nilmário Miranda. “Não queremos
deixar nenhuma ponta solta, pra não dar problema e eventualmente alguém
judicializar essa portaria.”
Gonzaga
diz que nem sabe ao certo por onde começar. “São tantas urgências que é difícil
enumerar.” O primeiro ponto que ela menciona é a conclusão da análise das
ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo.
Foi ali, em 2018, que foram identificados restos mortais de dois desaparecidos
políticos: Dimas Casemiro e Aluízio Ferreira. Ambos eram militantes de esquerda
e foram mortos por agentes da repressão em 1971.
Apesar
da paralisia que marcou a gestão Bolsonaro, a análise das ossadas de Perus
avançou nos últimos anos por força de decisões da Justiça – e também por causa
de um convênio firmado com o ICMP (International Commission on Missing
Persons), instituto sediado em Haia, na Holanda, e que é referência mundial na
análise de ossadas. Os remanescentes ósseos retirados do cemitério estão
distribuídos em 1.049 caixas. Delas, extraiu-se uma série de amostras que foram
enviadas no final do ano passado para avaliação dos peritos do ICMP. A previsão
é de que os resultados cheguem até junho. Depois disso, será preciso enviar uma
nova leva de amostras. Há trabalho a ser feito.
“Do
ponto de vista técnico, da perícia científica, não havia justificativa para
encerrar a comissão”, diz Samuel Ferreira, diretor do Instituto de Pesquisa de
DNA Forense (IPDNA) da Polícia Civil do Distrito Federal. Desde 2014, a convite
de Gonzaga, Ferreira atuava como coordenador científico da Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Acompanhou de perto o trabalho de
manuseio e armazenagem das ossadas de Perus, além da coleta de material de DNA
de familiares das vítimas. “Fizemos coletas em dezesseis cidades, além de
Brasília”, ele relembra, metodicamente. “Percorri 44 mil quilômetros nessas
viagens. É mais do que uma volta ao redor da Terra. E valeu a pena? Muito.”
Segundo
Ferreira, os estudos feitos pela comissão apontam que 40 desaparecidos
políticos podem ser identificados nos remanescentes ósseos de Perus. “Só com a
conclusão desse trabalho é que nós poderemos dar uma resposta para as famílias
dessas vítimas – que são o nosso foco. Uma resposta clara, dizendo: ‘tudo o que
poderia ser feito do ponto de vista técnico, de perícia e análise, foi feito’.
Mas ainda não é possível dizer isso hoje.”
Fonte:
Revista Piauí
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