‘Sociedade precisa
compreender que houve ditadura, sim’, diz conselheira da Comissão da Anistia
A
Comissão da Anistia realizou a primeira sessão pública após quatro anos de
governo Jair Bolsonaro (PL) nesta quinta-feira (30), em Brasília. Segundo o
colegiado, a Comissão passou por uma “descarecterização” sob os governos
anteriores e agora retoma os trabalhos mais conectada com essência original.
O
objetivo do grupo, segundo a presidente Eneá de Stutz e Almeida, é analisar de
4 a 9 mil processos que foram julgados e negados indevidamente pelas gestões
anteriores. Em entrevista à Agência Brasil, ela revelou que, especificamente no
período Bolsonaro, houve uma estratégia sistemática de negar os requerimentos
em massa e fechar a Comissão.
A
retomada foi marcada pela análise de quatro processos que haviam sido
atropelados pela gestão Bolsonaro, revitimizando as pessoas envolvidas. Entre
eles, estava o caso do deputado federal Ivan Valente( PSOL-SP).
Para
a conselheira decana da Comissão, Ana Maria Lima, o processo de anistia é
fundamental para as pessoas que tiveram os seus direitos violados durante a
ditadura militar.
“Para
muitos dos anistiados que entram com seu requerimento de anistia, a declaração
de anistiado político e o pedido de desculpas são mais importantes do que o
pedido de reparação econômica. É o reconhecimento do Estado de Direito de que
houve violação aos direitos humanos daqueles que lutaram pela liberdade. A
reparação econômica é apenas um dos pilares da justiça, que deve ser integral.
Não só a econômica, mas a reparação psicológica e moral dessas pessoas que
foram tidos como terroristas, como foi o caso daqueles que tiveram seu processo
negado pela comissão do governo anterior e que foram revitimizados”, apontou.
Ana
Maria participou do programa Central do Brasil desta sexta-feira (31) para
falar sobre a retomada dos trabalhos da Comissão da Anistia e para analisar
como Brasil tem tratado o tema da memória, da verdade e da justiça em relação
ao Golpe Militar de 1964, que completa neste sábado (1) 59 anos.
Sobre
a ascensão do negacionismo histórico nos últimos anos e a proliferação de
discursos em defesa do regime militar, Ana Maria observa com preocupação a
repercussão dessas ideias entre a juventude e defende que o antídoto contra
estas condutas está num trabalho de longo prazo por meio da educação.
“Se
não educar os adolescentes nas escolas, não seremos capazes de evitar as
repetições. A sociedade brasileira precisa compreender que houve ditadura, sim.
Que a democracia foi golpeada e que as pessoas que lutaram para defendê-la
foram presas e torturadas”, sugeriu.
Com
15 anos de experiência a frente da Comissão da Anistia, Ana Maria acredita que
os trabalhos do grupo voltarão a ser priorizados no governo Lula (PT) e defende
que as atividades externas, como as Caravanas da Anistia, voltem a acontecer,
para expor ainda mais os episódios desse passado autoritário.
“Memória
é fundamental. O país que não tem memória e não reconhece o seu passado é
impossível ter um futuro diferente das violações desse passado. É preciso que a
memória desse passado seja revelada”, concluiu.
A
entrevista completa com a conselheira decana da Comissão da Anistia, Ana Maria
Lima, você acompanha na edição desta sexta-feira (31) do programa Central do
Brasil.
Ø
O
caráter dos que lutaram contra a ditadura. Por Uraniano Mota
Eu
estava refletindo há pouco e vi que o admirador reflete o seu caráter nas
pessoas que ele admira. O caráter dos ídolos está no admirador. Ainda que este
não realize os grandes feitos dos seus ídolos, essa admiração revela o homem
que os admira. Assim, quem eleva Mussolini ao posto de grande homem, é fascista
ou simpatizante de fascismo. Na sua admiração se revela. Quem admira Marx é uma
pessoa comunista ou de esquerda ou democrata. E quem admira Machado de Assis e
seu dicionarista José Carlos Ruy, assim como eles gostaria muito, se Deus fosse
camarada, de fazer obra semelhante. E quem, numa escala miserável e medíocre,
admira Bolsonaro, assim como o criminoso revela a própria ignorância e
fascismo.
Essas
reflexões me vêm a propósito do caráter dos lutadores contra a ditadura
brasileira. E para não me alongar, destaco trechos do meu romance A
mais longa duração da juventude, cujo título é uma promessa que espero ter,
numa felicidade, quem sabe talvez, realizado. Aos trechos:
“Selene
continua:
—
Mas o que são as dificuldades para a vitória do socialismo, companheiro?
—
Fale baixo, companheira — Célio sussurra, entredentes, atrás.
Selene
o encara, na iminência de lhe enviar um raio. Mas sufoca a fulminação, e sem
lhe responder continua num tom menor:
—
O que são nossas dificuldades frente ao heroísmo do vietcongue?
Então
eu, como um pequeno-burguês convertido ao novo evangelho, à pregação
apaixonante da revolução pergunto já conquistado:
—
O que posso fazer?
Selene
me olha e responde rápido:
—
Me pague uma sopa.
Peço
e pago uma. E mais uma cerveja para nós. Mas ao chamar o garçom, Célio
intervém:
—
Eu troco minha cerveja por uma sopa. Pode ser?
—
Claro, pode — e me digo: ‘foi-se embora meu cinema de sábado’.
Ao
chegar a sopa, densa, de macarrão e carne, Selene a aplaude. O garçom sorri
para a mocinha esfomeada. Ela também sorri para o garçom. Então, com a colher
que vai ao prato e volta em brevíssimos intervalos de tempo, ela nos fala,
deliciada:
—
Sem sopa não há revolução…
Então
a advogada Gardênia anotará da entrevista com Vargas: ‘Ele era um tipo
romântico, ingênuo’. O que isso queria dizer? Ali na sala está corporificado
para ela: de braços abertos, Vargas protege a companheira e a filha. No diário
da advogada: ‘eu conversei com ele que fugisse, ao que ele se negou dizendo que
isso não faria, porque zelava pela segurança da filha e da esposa’. E Vargas,
na defesa sem armas, na imaginada que pode dar às pessoas do seu extremado
carinho, registra o diário da advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criancinha
sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura,
porque ela era uma pessoa frágil, e seria também assassinada. Aí era pior,
porque a menina ficaria órfã, sem ninguém’.
Nesse
ponto flagramos a pessoa, a coragem e terror de Vargas: a consciência de que
será morto. Mas não só morto a tiro, de bala. Morto depois de intensa tortura e
sofrimento. Aqui entra o ponto nevrálgico, ele sabe que não demora ser brutalizado,
se continuar no Recife. Mas não deseja que a sua mulher o acompanhe, na
hipótese de fuga ou adiamento da execução. Se ele é o condenado, por que
atrair, dividir o inferno com quem ama?
—
Fuja, fuja, Vargas. O momento de escapar é agora — fala a advogada.
Mas
ele, o homem ‘romântico ingênuo’, não quer. À distância podemos ver a lógica
fria do heroísmo em lugar do romântico, penso. A advogada Gardênia lhe atribui
a qualidade de romântico porque ele defende de modo absoluto a integridade
física da companheira. Um caso de paixão de enamorado, talvez. E acrescenta o
ingênuo, porque ele se nega a receber o oferecimento prático do mundo real, a
saber: fugir, salvar-se, para depois em segurança avaliar o estrago que deixa.
Mas não estamos preparados para ver a grandeza no instante em que ocorre. Ou
melhor, só vemos o grande quando ele nos impacta de modo bárbaro. Por
exemplo, Gregório Bezerra sendo
espancado a golpes de ferro na cabeça pelas ruas do Recife. Na sua altiva
resistência vemos. Mas não enxergamos que o heroísmo vem antes da tragédia. Na
decisão que antecede o desfecho não vemos a grandeza. O próprio Vargas, naquela
hora em que abre os braços no apartamento de Gardênia, nada vê de excepcional.
Ele apenas age para defender pessoas do seu amor, age apenas por justiça. Não
levará para a desgraça a companheira querida e sua Krupskaia. Não permitirá que
corram riscos maiores que viver com um ‘terrorista’. E ameniza a própria
bravura com uma fórmula prosaica:
—
Talvez eles nem me peguem agora. É tempo de eu vender livros pedidos pelas
escolas. Com o dinheiro da comissão, eu fujo. Entendeu, doutora? Mas fique com
os meus documentos. Se a situação apertar, já estão com a senhora
Aperta
a mão da advogada e sai. Desce pelas escadas para melhor refletir, como se no
tempo entre o quarto andar e o térreo houvesse um acréscimo de vida. E vem
parando nos trechos intermediários, a retardar a sua hora, até alcançar a
portaria e sair para a Rua Sete de Setembro. Agora, é o mundo real sem mais
discussão filosófica. E o real são ele, Daniel e Fleury…
O
horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é
justo resumir uma vida humana assim. Sobre um animal sentimos a brutalidade: ‘O
novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias
brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram. A pele
pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o
agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes
ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam
as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o
guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’. Se essa infâmia narrada
magistral por Tolstói nos fere quando pensamos no gado, o que diremos de
pessoas no matadouro?
Penso
em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um
boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza,
porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas?
Ele está na sala da advogada Gardênia, quando ela lhe propõe a fuga, que corra
e suma antes de ser morto, e ele se nega porque Nelinha era muito frágil? Ele
está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual
possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? ‘Nelinha está salva’, ele se
fala. ‘Ela continuará a viver. Ela e a minha filhinha continuam. Venham, malditos’.
E nisso, ao expressar também a crueza do seu isolamento, pois não estava
‘organizado’, sem vínculo direto com organização clandestina, onde buscar o
terrorista Vargas? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada
Gardênia:
‘Vargas,
que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba
azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma
mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos
abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o
matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele
arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da
ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa
mortis, ao esconder lesões, ao eufemizar a barbárie. Tudo que falam é uma
adaptação do cadáver à fraude da repressão política. É nessas circunstâncias
que cresce o valor do depoimento da advogada, que testemunhou e preencheu as
lacunas, o vácuo dos laudos tanatoscópicos:
‘Soledad
estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror. A boca
estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em
grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo
deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas,
porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso
saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que
ele nasceu, naquele horror’ ”.
Fonte:
Brasil de Fato/Blog da Boitempo
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