Não há paralelismo
entre determinação constitucional e ingerência fardada
Nos
primórdios deste ano parlamentares integrantes do Partido dos Trabalhadores
tomaram uma de suas primeiras iniciativas, qual seja, conseguir a quantidade de
assinaturas necessárias para apresentar uma proposta de emenda constitucional
destinada a reformular o artigo 142 da Constituição que trata do papel das
Forças Armadas com base em alguns argumentos dentre os quais aparece o da
interpretação distorcida feita por Jair Bolsonaro e seus seguidores, visando
defender uma intervenção militar no país, haja vista que eles não aceitaram o
resultado da eleição presidencial. Esta asserção fundamenta-se no pressuposto
de que a intervenção militar tem por âncora uma indicação legal.
O
referido artigo estabelece que cabe às Forças Armadas a defesa da Pátria, a garantia
dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem. Apenas para fins comparativos vale lembrar o que as constituições
anteriores previam. A primeira, de 1824 fixou o exercício do poder coercitivo
do Estado. A de 1891 determinou a elas defender o país internacionalmente,
manter as leis internamente e apoiar as instituições constitucionais. A de 1934
firmou a defesa do território nacional e a proteção do poder constitucional, da
lei e da ordem. As de 1937 e 1946 apenas trataram da organização e das
particularidades das instituições castrenses. A de 1967 instituiu para as
mesmas defender a Pátria e garantir o poder, a lei e a ordem.
Correlatos
a esses papéis emprazados nas respectivas Cartas Magnas ocorreram ações
políticas levadas a cabo pelos servidores de uniforme. Sob a égide da Constituição de 1824 aconteceu
a denominada Questão Militar que se referiu à um conjunto de incidentes entre
militares do Exército e autoridades do Império durante os anos de 1886 e 1887
os quais contribuíram muito para a proclamação da República liderada pelo
marechal Deodoro da Fonseca em 1889, apoiado pelos seus comandados. Sob o manto
da Constituição de 1891 ocorreu o movimento tenentista na década de 1920 do
século passado que englobou o apoio à candidatura Nilo Peçanha, a rebelião do
Forte de Copacabana, a Revolta Paulista e a Coluna Prestes. Aconteceu também a
Revolução de 1930 com a ascensão de Vargas sustentado pelos fardados e o
envolvimento deles na Revolução de 1932.
Observe-se
que não é possível perceber qualquer tipo de apoio do que se encontra escrito
sobre o papel das Forças Armadas nas duas primeiras constituições às ações
políticas dos militares. Tal constatação inclina-se a enfraquecer a tese de que
as intervenções castrenses possuem base legal. Entretanto, na vigência da
Constituição de 1934 veio à tona o Estado Novo iniciado em 1937 com esteio
castrense. Sua emergência, de acordo com declaração oficial, se deveu a um
plano comunista para a tomada do poder, haja vista a intentona ocorrida dois
anos antes, e a situação de pré-guerra civil em desenvolvimento. Aqui já é
possível notar que estas duas justificativas aparentam ter relação com a Carta
Magna de então a qual previa para as instituições bélicas a tarefa de proteção
da ordem e da lei.
As
Constituições de 1937 e 1946, tal como foi visto, não apresentaram o papel das
Forças Armadas, porém em 1945 por pressão dos militares Vargas foi obrigado a
renunciar, muito embora a derrota do nazifascismo e a demanda pela abertura
política se apresentaram como fatores determinantes. No período de 1945 a 1964
ocorreram manifestações de grupos militares favoráveis e contra a participação
do capital estrangeiro e à aliança com os Estados Unidos. Aconteceram em 1954 o
alcunhado Manifesto dos Generais exigente da renúncia de Vargas, o apoio deles
à uma candidatura única de união nacional, o Golpe Preventivo de 1955 destinado
a garantir a posse de Juscelino, liderado pelo marechal Lott e um grupo de
comandados, o veto à posse de Goulart juntamente com a implantação do
parlamentarismo em 1961 e o golpe militar no ano de 1964. Novamente não se
verifica uma correlação entre o fundamento legal e a ação política dos
servidores de uniforme. Entretanto, a Constituição de 1967 ao instituir
novamente a defesa da lei e da ordem serviu para amparar o prosseguimento da
ditadura civil militar que avançou até o ano de 1985. E o artigo 142 da
Constituição atual não fornece sustentação aos atos de insubordinação
praticados pelo comandante do Exército contra o ministro da Defesa da época do
primeiro governo de Lula e nem com as execráveis ações praticadas por militares
decorrentes da íntima ligação deles com o bolsonarismo.
Considerando
que não há paralelismo entre a determinação constitucional e a ingerência dos
fardados na política, conforme ficou claro nessa abordagem histórica, cabe
perguntar se é válido alterar o papel das Forças Armadas com vistas a barrar
futuras intervenções. Junte-se a isso o fato de que as leis, apesar de
objetivarem o controle dos comportamentos das pessoas, não se mostram
totalmente eficientes para tanto pois muitos as burlam, então por mais
legalistas que se acredite serem os militares seu poder regulador pode não
funcionar a contento.
Embora
isto seja verdade, a referida abordagem histórica revelou também que os
militares atuaram bastante na forma de um poder moderador, bem como revelou
ainda que eles possuem um elevadíssimo grau de autonomia que não pode ser
aceito de maneira alguma em um regime democrático. Assim sendo, o modo pelo qual
o artigo 142 se encontra redigido tende a expressar, legitimar e estimular essa
autonomia, bem como favorecer o abominável e incontido anseio de tutelar a
sociedade, dominante na subjetividade de muitos fardados. Outrossim, é preciso
ressaltar que a mesma não tem um significado pleno haja vista que as Forças
Armadas em qualquer país do mundo, principalmente o nosso, se encontram
estreitamente ligadas aos setores dominantes da sociedade, e seus integrantes
costumam praticar intervenções para favorecer os interesses de tais setores.
Essas ingerências se tornam mais fáceis quando recebem apelos dos segmentos
empresariais e encorajamentos de intelectuais orgânicos, que costumam prestar
auxílio hermenêutico sobre o conteúdo do artigo em questão, já praticado inclusive
por um eminente jurista brasileiro que, equivocadamente, o interpretou de modo
muitíssimo limitado, levando em conta apenas a sua construção gramatical,
desconsiderando comparações, contextualizações e historicidade.
Acrescente-se
que os dizeres genéricos, abstratos e indefinidos pertinentes à garantia da lei
e da ordem inscritos no artigo ora na berlinda são condizentes com a estrutura
jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e
brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira
provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É
intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria
lei. Esta tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o
antidemocrático poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de
Bolsonaro em suas contendas com o Judiciário.
Quanto
à parte relativa à expressão por iniciativa de qualquer destes nele previsto,
ela pode ensejar um conflito entre os poderes, provocar uma situação de
insubordinação legalizada porquanto o comandante supremo das Forças Armadas é o
presidente da República, e criar uma circunstância inusitada caso não haja um
acordo entre os poderes quanto ao uso das Forças Armadas. Estas possibilidades
foram amenizadas por meio de uma Lei Complementar a qual previu que cabe ao
presidente decidir a respeito da concretização das tarefas destinadas às
instituições castrenses. Observe-se que a mencionada lei, apesar de ter
solucionado a questão da subordinação não resolveu o problema da concentração
do poder no executivo e nem a sua autonomia. Isto é deveras preocupante porque
por motivação determinada um presidente da República pode ameaçar o regime
democrático com o apoio dos fardados, tal como insinuava Bolsonaro.
Vale
lembrar também que a escrita do artigo em questão não encontra paralelo em
outros países democráticos. A Constituição de Portugal aponta que às Forças
Armadas incumbe a defesa militar da República. Outrossim, estabelece que cabe a
elas satisfazer os compromissos internacionais do Estado português no âmbito
militar e participar de missões humanitárias e de paz assumidas pelas
organizações internacionais de que Portugal faça parte. Internamente devem
colaborar em missões de proteção civil e em tarefas relacionadas com a
satisfação de necessidades básicas e melhoria da qualidade de vida da
população. Acentua ainda que seus elementos não podem aproveitar-se da sua
arma, do seu posto ou de sua função para qualquer intervenção política. Na Alemanha
destinam-se à proteção contra um perigo iminente ameaçador da existência livre
e democrática do Estado. No âmbito interno devem apoiar a polícia na proteção
das fronteiras e no combate a grupos rebeldes organizados e armados
militarmente. Na Suíça servem para evitar guerras, contribuir para a manutenção
da paz, defender o país e sua população, apoiar as autoridades civis na defesa
contra ameaças graves à segurança interna e no controle de outras situações
extraordinárias.
Ressalte-se
que o estabelecido na Constituição portuguesa se mostra bem pertinente e
atualizado. De fato, a institucionalização do papel das Forças Armadas de
qualquer país não é uma tarefa elementar como talvez pensem os parlamentares do
PT, que por sinal leva em conta num estudo muito bem elaborado, feito por
acadêmicos de renome, mas que indicaram para as instituições bélicas apenas a
função objetiva e unitária de defesa do país. Note-se que o atual pensamento
estratégico internacional, válido para todas as nações, fixado após a queda do
muro de Berlim, estabeleceu para as Forças Armadas a tarefa de garantir a
estabilidade mundial. Isto significa uma mudança radical na função desempenhada
pelos fardados, porquanto devem colocar em segundo plano seus impulsos
guerreiros e priorizar o papel de agentes da conciliação. Por sua vez, o avanço
da globalização transformou a guerra num empreendimento internacional. Assim
sendo, qualquer conflagração entre dois países tende a colocar aliados em ambos
os lados, localizados em diversos recantos do planeta. Portanto, se mostra como
um novo compromisso internacional.
De
forma derradeira cabe um exame a respeito da posição assumida pelo hábil atual
ministro da Defesa quanto ao assunto em pauta, haja vista que o mesmo é o
comandante das três armas. A esse respeito os meios de comunicação divulgaram
que ele tem se colocado contra qualquer alteração no anacrônico e ilídimo
artigo 142 para não irritar os militares e não prejudicar a relação entre eles
e o atual presidente. Disse também que está atuando para convencer o governo a
não apoiar a proposta dos parlamentares petistas. Tal postura permite inferir
que tanto ele quanto seus comandados parecem estar vendo a referida proposta
como uma mera ação revanchista em aproveitamento da momentânea situação de
fragilidade vivida pelos servidores de uniforme. Este presumível entendimento
não pode, de forma alguma prevalecer, pois é contrário a toda argumentação
anteriormente exposta. Ademais, tal mudança, imprescindível e urgente, não deve
ser feita por leigos, pois exige considerar a razão existencial das Forças
Armadas, nem de maneira impositiva e sim resultante de um debate entre
integrantes da universidade e militares intelectuais, reconhecidos no meio
científico como eminentes estudiosos das mesmas. A fixação do papel
constitucional dos estabelecimentos castrenses é um trabalho relativamente
complexo e demorado o qual exige levar em conta as prementes demandas da
contemporaneidade e a real submissão dos fardados ao regime democrático.
Fonte:
Por Antônio Carlos Will Ludwig, na Conjur
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