Quem foi Maria
Felipa, a escravizada liberta que combateu marinheiros portugueses e incendiou
navios
"Nasceu escrava, mas depois de liberta colocou
a liberdade como maior tesouro de sua vida, moradora da Ilha de Itaparica,
negra, alta, desde cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira, pescadora,
trabalhadora braçal que aprendeu na luta da capoeira a brincar e a se defender,
que vestia saias rodadas, bata, torso e chinelas, foi líder de um grupo de mais
de 40 mulheres e homens de classes e etnias diferentes, onde vigiava a praia
dia e noite a fortificando com trincheiras para prevenir a chegada do exército
inimigo, e organizava o envio de alimentos para o interior da Bahia
(recôncavo), atuando na luta pela libertação da dominação portuguesa."
Este
trecho do livro Maria Felipa de Oliveira - Heroína da Independência da
Bahia, de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, se refere a esta personagem no
mínimo controversa da história baiana e brasileira.
Praticamente
não existem registros ou documentos históricos que atestem a existência dela e
de seus feitos. Mas 200 anos depois, ela continua viva na tradição oral de
Itaparica e de cidades do Recôncavo Baiano e nas comemorações da independência.
De
acordo com o historiador Milton Moura, professor de História da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), a tradição popular situa Maria Felipa sempre ao lado
das outras duas heroínas, Joana Angélica e Maria Quitéria.
"Nos
cortejos cívicos e nos espetáculos que têm lugar por ocasião das comemorações
da independência, as estampas com os seus rostos costumam ser vistos e muito
bem apreciados", afirma.
A
primeira a quem Moura se refere é Joana Angélica de Jesus, superiora do
Convento da Lapa, em Salvador, que foi assassinada por soldados portugueses que
queriam invadir o local, no dia 8 de novembro de 1822, na Batalha de Pirajá.
A
segunda é Maria Quitéria de Jesus, a primeira mulher a ingressar nas Forças
Armadas brasileiras e, que para isso, se disfarçou de homem — cortou o cabelo,
amarrou os seios e vestiu roupas masculinas — e se alistou como soldado
Medeiros.
O
professor Gilberto Mendonça, da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS), tem dois hobbies: o estudo de história, sobretudo da Bahia, e
colecionar álbuns de figurinhas, hábito que trouxe da infância.
"Durante
a pandemia, os dois passatempos se mesclaram e, em colaboração com um grupo de
amigos colecionadores, criamos um álbum de figurinhas sobre a história da
Bahia", revela.
"Foi
na pesquisa para a confecção deste álbum que me aprofundei um pouco mais na
história de Maria Felipa, uma das três heroínas da independência do
Brasil."
Para
ele, sendo lenda ou realidade, Maria Felipa faz parte do imaginário popular,
suas histórias são contadas e cantadas em todo recôncavo da Bahia.
Ela
é retratada como uma mulher negra, marisqueira, que trabalhava na indústria
baleeira, e sobretudo, uma das grandes heroínas da guerra da independência do
Brasil e da Bahia, em 2 de julho de 1823, quando finalmente houve a rendição e
fuga dos portugueses.
"Acima
de tudo, é um ícone, um exemplo, um modelo de mulher, negra, trabalhadora e
corajosa", diz ele.
Maria
Felipa teria nascido na Ilha de Itaparica em data incerta e morrido em 4 de
julho de 1873. Chamada na época de Arraial da Ponta das Baleias, a ilha passou
depois a ter o nome atual, que, em tupi, significa "cerca de pedra",
devido aos recifes de corais que a rodeiam. Ela tem 36 km de comprimento e uma
superfície de 180 km², que abrigam 36 localidades.
Segundo
conta Eny Kleyde em seu livro, baseado principalmente em depoimentos orais de
ilhéus atuais e obras de autores que a precederam - entre os quais Ubaldo
Osório Pimentel (1883-1974), avô do escritor João Ubaldo Ribeiro -, Maria
Felipa, descendente de sudaneses, nasceu na Rua da Gameleira, no atual
município de Itaparica. Ela morou na região de Beribeira e, depois, na Ponta
das Baleias, num casarão chamado "Convento".
Localizado
próximo às principais edificações, o "Convento" era uma residência de
trabalhadores, na qual se alojavam pescadores, carpinteiros, marisqueiros,
entre outros, conta Eny em seu livro.
"Maria
Felipa nasceu 'provavelmente em 1799', conforme registra Fernando Rebouças, em
publicação do Informativo Assabita [Associação dos Amigos da Biblioteca de
Itaparica]."
De
acordo com o historiador Pablo Antonio Iglesias Magalhães, da Universidade
Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a personagem Maria Felipa apareceu pela
primeira vez em letra de forma no livro A Ilha de Itaparica: História e
Tradição, escrito por Pimentel mais de um século depois da guerra.
"É
possível afirmar que personagens citados por ele, na referida obra, não possuem
nenhum respaldo documental", garante.
É
o caso de certo impressor, que, com ouvidos apurados, teria interceptado
informações militares junto ao editor português Inácio José de Macedo, que era
contrário à independência, e alertado às autoridades em Itaparica da iminência
de uma investida militar contra a ilha.
"Pode
ser que tenham existido, permanecendo na memória, mas sem os devidos
registros", diz Magalhães.
De
acordo com a tradição oral, no entanto, na guerra de independência da Bahia,
Maria Felipa teria se destacado na defesa de Itaparica, quando os portugueses
atacaram a ilha em 7 de janeiro de 1823.
Segundo
Laurentino Gomes, em seu livro 1822, que não tem nenhuma referência
à personagem, foi um grande ataque lusitano, com "40 barcas, dois brigues
de guerra e lanchas canhoneiras contra a fortaleza de São Lourenço e o
povoado". Mas os baianos resistiram, no entanto, e depois de três dias de
combates, derrotaram os inimigos.
O
professor de história da América, Rodrigo Lopes, da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), chama atenção para o fato de que a ilha era um local estratégico
para portugueses e baianos, pois está no caminho entre a foz do Rio Paraguaçu e
a Baía de Todos os Santos, por onde entrava a maior parte dos víveres que
abasteciam a cidade de Salvador.
Por
isso, ocupar Itaparica era condição indispensável para que os portugueses
pudessem ter acesso a alimentos, que já não chegavam do sertão por terra, pois
os baianos, liderados por Pedro Labatut, general francês contratado para
comandar as tropas brasileiras, haviam formado uma barreira em Pirajá.
"A
intenção era matar a 'marotada' de fome", informa Lopes. A palavra
"marotos" designava os portugueses colonialistas na época.
Foi
neste contexto de guerra que Maria Felipa teria atuado e se destacado. Conta a
tradição que ela se alistou na Campanha da Independência, que reunia índios,
negros livres e escravizados — africanos e brasileiros e até alguns
portugueses, que eram a favor da independência do Brasil, e que organizavam a
resistência na ilha.
Segundo
Eny Kleyde narra em seu livro, na Campanha havia as "vedetas", no
sentido de sentinelas ou vigias, que, dia e noite, vigiavam barcos próximos ou
que vinham ao longe, com intenção de atacar a ilha.
"Maria
Felipa de Oliveira era líder das 'vedetas', observando as praias, as matas, os
caminhos e subindo em outeiros, principalmente o do Balaústre e o da Josefa,
que ficavam próximos aos campos de guerra, para identificar os portugueses que
desciam dos barcos para saquear", diz a escritora em sua obra.
Mas
Maria Felipa também teria entrado em combate direto, durante a batalha de 7 de
janeiro.
"Ao
contrário do que acontece com relação a Joana Angélica e Maria Quitéria, não
dispomos de documentos de arquivo que atestem a existência e atuação
dela", ressalva Moura.
"A
tradição popular vem, assim, completar a lacuna dos arquivos. Maria Felipa é
situada principalmente em dois eventos, sempre acontecidos na beira do
mar".
O
primeiro, continua Moura, é a surra de cansanção (Jatropha urens), uma
planta urticante que produz uma coceira intensa e que, com golpes vigorosamente
desferidos, pode produzir queimaduras muito dolorosas, que Maria Felipa e suas
companheiras teriam dado nos soldados portugueses.
"A
narrativa fala de um grupo de mulheres que começaram a dançar na praia, de modo
insinuante", conta o historiador.
"Quando
os portugueses se aproximaram, elas teriam se lançado sobre eles com os molhos
de cansanção ocultados sob os arbustos."
Há
outras versões sobre como elas esconderam os galhos da planta. Segundo uma
delas, Maria Felipa e suas companheiras aproveitavam suas roupas largas para
ocultar armas, principalmente peixeiras (facas), que usavam em seu trabalho.
Elas também misturavam folhas de cansanção junto a flores e outros ramos
comuns, que faziam com que parecessem apenas enfeitadas. Mas na verdade,
estavam vestidas para matar.
O
segundo episódio citado por Moura é o incêndio de navios portugueses causado
por tochas, lançadas de uma canoa conduzida por Maria Felipa e suas
companheiras, impondo assim perdas às tropas inimigas.
O
quadro Alegoria ao 7 de Janeiro, de autoria de Mike Sam Chagas,
professor da Escola de Belas Artes da UFBA, pintado em 2019, retrata a batalha
de 7 de janeiro de 1823.
Na
obra, reproduzida acima, a personagem Maria Felipa aparece no centro, com uma
blusa clara que deixa os ombros à mostra e uma tocha acesa em uma das mãos.
"À
sua esquerda, outra mulher empunha um ramo de ervas — justamente o
cansanção", descreve Moura.
"Veem-se
personagens índios, negros e brancos. No canto superior esquerdo, o Forte de
São Lourenço, onde está guardado o quadro. No canto superior direito, os navios
portugueses."
O
problema é que não há provas históricas destes dois episódios.
"Não
há registros sobre a tal 'sedução' com dança", diz o pesquisador
independente itaparicano Felipe Peixoto Brito.
"Além
do mais, considerando o clima de beligerância, e profundo preconceito das
tropas europeias (até mesmo contra brancos nascidos no Brasil), jamais dariam
lugar a tal cena. A narrativa me parece recente, e fruto de um sexismo, em que
uma mulher só poderia vencer homens em um confronto se valendo do desejo do seu
corpo, de traição ou de veneno."
No
caso dos navios portugueses incendiados, Brito diz que, de fato, alguns foram
queimados e destruídos pelas forças itaparicanas, entrincheiradas ao longo de
mais de 8 km entre a Praia do Mocambo, o povoado de Itaparica, e a praia de
Amoreiras.
"A
ilha foi atacada por mais de 40 navios armados de diferentes tamanhos",
conta.
"Apesar
da grande perda de soldados e marinheiros portugueses (cerca de 200, entre
mortos e feridos), sabemos que o incêndio de todos eles não ocorreu, sendo
fruto do exagero ou de confusão narrativa, pois isso representaria um massacre
vergonhoso e de grandes proporções para época."
Com
outras palavras, é o que também diz Magalhães. Ele observa que, se uma única
embarcação tivesse sido destruída, seria necessário fazer os competentes
relatórios. Destruir dezenas delas colapsaria a marinha portuguesa da época, e
os responsáveis por uma falha dessa natureza deveriam responder aos superiores
ou comissão militar.
"Uma
única canhoneira causou imensa comoção ao atacar a vila de Cachoeira, em junho
de 1822", lembra.
"Considerado
o estrago que dezenas de barcos poderiam realizar, deve-se ponderar o que
representaria, à época, a mítica ação de incendiá-los. Alguém teria que
responder pelo fiasco."
O
historiador Jaime Nascimento é mais radical sobre a existência de Maria Felipa.
"Ela
não existiu", garante. "É uma personagem de ficção criada pelo
escritor itaparicano Ubaldo Osório, avô de João Ubaldo Ribeiro, que foi
apropriada por segmentos do 'Movimento Negro' e transformada em 'Heroína da
Independência' de forma bizarra e desonesta com a história."
De
qualquer forma, os estudos continuam e a percepção sobre Maria Felipa vem
mudando nos últimos anos.
No
primeiro caso, Magalhães diz que algumas novidades têm aparecido, "fruto
da investigação do pesquisador independente Felipe Peixoto Brito, possivelmente
quem mais conhece a documentação de Itaparica atualmente".
"Certa
Maria Felipa é mencionada em documentos de 1832 e 1834", afirma.
No
primeiro, ela está registrada como solteira e no segundo, tem uma filha.
"Então,
é possível que exista alguém, para além do mito, que pode ser melhor
compreendida por meio de exaustiva busca em velhos papéis", acredita
Magalhães.
O
próprio Brito diz que isso prova apenas a existência dela, não de episódios
atribuídos a ela.
Em
relação à percepção sobre a personagem, isso pode ser notado nas comemorações
da independência.
"Nos
cortejos do 2 de julho, em Salvador, e de 7 de janeiro, em Itaparica, há sempre
pelo menos uma mulher — jovem ou menina — caracterizada como Maria
Felipa", observa Moura.
Neste
ano, no cortejo do 2 de julho, em Salvador, um pequeno grupo de um Candomblé
Angola trazia, na frente, uma mulher corpulenta, de torço e blusa branca com os
ombros à mostra.
"Enfim,
é uma personagem que se consagrou no repertório das comemorações", diz
Moura.
"Em
escolas de Itaparica, a personagem é entusiasticamente encenada em atividades
com crianças e adolescentes."
Seja
lenda ou real, para muitos estudiosos Maria Felipa não deixa de ter importância
histórica.
"Não
é difícil compreender o entusiasmo da população de Itaparica em torno de sua
grande personagem feminina, que se difundiu e intensificou nos últimos quinze
anos", diz Moura.
"Uma
mulher do povo, negra, marisqueira, transpõe o limite de sua condição de
subalternidade e se constitui como sujeito político proeminente."
Para
Brito, Maria Felipa é "um símbolo maior das classes oprimidas, na disputa
eterna que é o passado".
"Reconhecer
a participação dela e da 'gente comum' do Recôncavo Baiano nessa luta, é
fundamental para a construção de um país que quer superar o racismo e a misoginia",
defende.
"Os
questionamentos acerca disso jogam luz sobre o ceticismo, a acomodação e o
desinteresse da historiografia clássica, pela memória dos oprimidos, ao mesmo
tempo que revelam novos caminhos, criam sonhos e orgulham aqueles que se
sentiam à margem desse processo, como eu, um jovem pesquisador, negro e filho
de Itaparica."
O
historiador André Carvalho, especialista em história da Bahia e ex-diretor do
Museu Memorial da Câmara Municipal do Salvador, pensa de maneira semelhante. De
acordo com ele, durante muitos anos a trajetória dessas mulheres negras
baianas, a exemplo de Felipa, permaneceram anônimas na história da Bahia e do
Brasil.
"Eram
lembradas apenas nos conteúdos escolares por referências negativas, quando
citadas como baderneiras, arruaceiras e bandidas, criando assim uma identidade
indissociável da mulher negra ao crime", critica.
"Uma
imposição racista histórica, que leva a figura feminina negra a ter suas
características estéticas marginalizadas e riscadas da existência."
Ele
acredita que Maria Felipa timidamente hoje em dia vem sendo inscrita na
história e nos espaços da sociedade. Ela também vem sendo inserida não só nas
comemorações oficiais do 2 de julho, como também no 7 de setembro.
"Como
o desfile do Grito dos Excluídos, reconhecendo que 'muitas surras de cansanção'
e queima de navios ainda serão necessárias para se lembrar das heroínas negras
na proclamação do 2 de julho, a verdadeira independência do Brasil",
avalia.
Tendo
existido ou não, e mesmo com a história praticamente desconhecida, Maria Felipa
de Oliveira foi declarada, em 26 de julho de 2018, Heroína da Pátria Brasileira
pela Lei Federal nº 13.697, tendo seu nome inscrito no Livro dos Heróis
e Heroínas da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade
Tancredo Neves, em Brasília.
Fonte:
BBC News Brasil
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