Indígenas defendem
criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade
A
parlamentar indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) abriu ontem, 25 de abril, a audiência pública sobre as
violações contra os povos originários durante a ditadura militar com um canto
tradicional. Logo depois, justificou a voz um pouco falha: “ainda estou meio
rouca do Acampamento Terra
Livre (ATL)”,
explicou a deputada federal. Desde segunda-feira (24), mais de 6 mil indígenas
estão reunidos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para defender suas
pautas, em especial a retomada da demarcação dos territórios.
Em
sua 19ª edição, o ATL envolve diversos eventos em toda a cidade: um deles foi
justamente a audiência pública que ocorreu ontem (25) na Comissão da Amazônia e
dos Povos Originários e Tradicionais, presidida por Xakriabá na Câmara dos Deputados.
“Para tentar aquecer também esse Congresso Nacional, declaro aberta essa
comissão”, continuou a deputada. O povo Maxakali tomou então o microfone e
seguiu com um canto tradicional. Todas as cadeiras do plenário 12 da Câmara
estavam ocupadas: alguns indígenas haviam se deslocado do acampamento ao
Congresso para acompanhar o evento.
Ao
longo de cerca de 3 horas, 8 convidados falaram sobre as violações cometidas e
sobre os caminhos que o Estado brasileiro poderia percorrer para garantir um
fim à violência por meio da apuração dos fatos e responsabilização dos atores
envolvidos. Tantos eram os convidados que foram feitas duas mesas.
Célia
Xakriabá (PSOL-MG) preside a comissão Comissão da Amazônia e dos Povos
Originários e Tradicionais, na Câmara dos Deputados
Nas
falas, um consenso: a necessidade de instaurar uma Comissão Nacional Indígena
da Verdade (CNIV). Em 2014, analisando apenas 10 povos, a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) apontou que ao menos 8.350 indígenas foram mortos durante a
ditadura, e sugeriu que essas violações fossem melhor apuradas por meio de uma
nova comissão. No ano passado, o Ministério Público
Federal (MPF),
por meio do procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, que
esteve presente na mesa, e do procurador da República Edmundo Antonio Dias,
expediu nota técnica defendendo a instauração da comissão.
“Penso
que a importância e relevância de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena
saltou aos olhos com o fim do último governo, isso porque houve o agravamento
nos últimos 4 anos da situação de violações aos direitos dos povos indígenas
por ação do Estado e de agentes privados que atuam com a leniência e
conveniência governamental. Esse contexto recente de ataque aos povos indígenas
é indissociável, ao meu ver, ao histórico de atentados aos direitos das
populações originárias ocorridos durante a ditadura”, defendeu Weichert em sua
fala, na primeira parte da audiência.
A
presidente da Funai, Joênia Wapichana, também esteve
presente e concordou com a recomendação de instaurar a CNIV. “Nós indígenas
conhecemos o nosso passado justamente para saber aonde a gente quer chegar. Mas
muitas vezes os fatos são tão invisibilizados, não é que são invisíveis, mas
são invisibilizados propositalmente para que a gente não consiga requerer no
futuro o que a Comissão [Nacional da Verdade] recomenda. Tanto o reconhecimento
histórico dessa violação de direitos, mas também o que mais as pessoas temem,
que é a reparação, inclusive com indenizações”, afirmou a presidente.
Wapichana
sugeriu ainda que a própria Célia Xakriabá apresente um projeto de lei pedindo
a criação da CNIV e colocou a Funai à disposição para fornecer documentos que
podem ser importantes para a apuração dos crimes.
Além
do procurador, Wapichana falou ao lado do jornalista Rubens Valente, autor do
livro Os Fuzis e As Flechas e colunista da Agência
Pública; e de Marcelo Zelic, integrante da Comissão de Justiça de Paz de
São Paulo.
“As
pessoas [neste Parlamento] negam ainda o processo de violência na época da
ditadura militar, sem perceber que na verdade essa Casa também reproduz essa
mesma violência. Eu tenho dito que somente sofisticaram as armas, mas a
intenção de matar sempre foi a mesma”, finalizou Xakriabá.
·
Violações contra os povos indígenas
A
segunda parte do debate contou com a participação de representantes dos povos
indígenas Maxakali, Krenak, Pankararu e Guarani-Kaiowá. Os depoimentos
abordaram as histórias das violações de direitos sofridas pelos povos, que
foram contadas pelos mais velhos e estão sendo documentadas pelos próprios
indígenas.
Geovanni
Krenak, representante do povo Krenak da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib), começou sua fala lembrando que durante a ditadura seu povo foi
retirado de seu território sagrado, que até hoje não foi recuperado. Também
contou que foi criado no território Krenak um “reformatório”, uma espécie de
prisão para indígenas que desobedeciam às ordens dos militares durante a
ditadura.
“É
um crime que se perpetua no tempo. Rememorar essas práticas que quase levou
(sic) à extinção do povo Krenak é muito doloroso, é muito sofrido para a gente.
E mesmo assim ainda perceber que a gente, com todos os relatos, com a ação
civil pública, com a morte dos parentes, com o exílio dos meus familiares, dos
meus ancestrais, a gente ainda está aqui lutando pelo território”,
afirmou.
O
povo Krenak, com o auxílio do Ministério Público Federal em Minas Gerais,
documentou as violações sofridas e apresentou uma ação
civil pública sobre
a criação do reformatório Krenak. Em setembro de 2021, a juíza Anna Cristina
Rocha Gonçalves, da 14ª Vara Federal de Minas Gerais, condenou a União, o
estado de Minas Gerais e a Funai pela “prática de atos de violações de direitos
dos povos”. Mas os réus recorreram à sentença e a ação segue.
A
fala de Sueli Maxakali, representante do povo Maxakali da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (Apib), foi uma das mais fortes: “quando a gente vê
os parentes Yanomami, eu penso em
quando o meu povo Maxakali passou pela mesma situação. O povo Maxakali na época
da ditadura militar, como os parentes [Krenak] colocaram, que foram levados
para os presídios, nós Maxakali também fomos levados para os presídios Krenak e
Pataxó, e teve um parente nosso que foi queimado a língua devido a falar a
língua [materna]. Muitas mulheres também falam que os policiais, que não eram
indígenas, pegaram elas e abusaram delas, as mais velhas contam. O Capitão
Pinheiro chegava e abraçava elas, tipo [dizendo] que eles eram amigos, e depois
eles abusavam das mulheres. Algumas índias Maxakali engravidaram e depois eles
[militares] mesmos distribuíram medicamentos para elas terem aborto”,
explicou.
“A
gente conta e no final a gente começa a emocionar, a gente não tem como
falar…”, explicou à reportagem após a audiência. “[A CNIV] é muito importante.
Hoje nós vê (sic) o nosso parente Yanomami, as mulher sendo abusadas, as mesmas
memórias que a gente resgata dos mais velhos… Para nós, a ditadura está viva”,
disse Sueli Maxakali.
“Foi
um período muito obscuro, onde os policiais faziam o que queriam com os povos
indígenas. Proibindo a de falar a linguagem, proibindo de se relacionar
indígenas com indígenas. E agora a gente pode, através de relatos dos parentes
nossos, falar essas atrocidades com mais tranquilidade. Na época a gente não
poderia nem falar, porque a gente era preso. Essa Comissão [Nacional Indígena
da Verdade] vem de forma muito oportuna para a gente de fato contar a história
como aconteceu, de tortura, de morte, de exílio, e tentar a reparação por parte
da justiça”, disse Geovanni Krenak à reportagem, também após o evento.
Dessa
forma, para Maíra Pankararu, que participou da mesa como a primeira indígena a
compor a Comissão da Anistia, órgão responsável por reparar pessoas perseguidas
pelo regime, é “injusto” falar em “Ditabranda”, termo usado para sugerir que a
ditadura brasileira não teria sido tão violenta e repressiva quanto a de outros
países latino-americanos, como Argentina e Chile.
“Não
pode ser uma ditabranda. Quando a gente olha só para os crimes de pessoas
não-indígenas, a gente já entende que foi uma ditadura muito cruel, mas quando
a gente olha para os crimes cometidos contra pessoas indígenas, a gente entende
a gravidade e a complexidade da ditadura militar no Brasil”, explicou ela. “A
gente nunca pode falar em Ditabranda quando a gente estava sendo dizimado como
inimigo nesse nível, numa estrutura tão desigual, e a gente nem sabia porquê
estava morrendo”, finalizou.
·
Para o futuro
Após
o fim do evento, Eliel Benites, indígena Guarani-Kaiowá que também participou
da mesa como diretor de Línguas e Memórias do Ministério dos Povos Indígenas,
explicou à reportagem que ele considera a discussão sobre as violações
cometidas durante o regime militar uma “demanda histórica” importante para “a
reparação das violências praticada contra os povos”.
Ainda
assim, na avaliação dele, trata-se de um tema delicado: “Temos que criar um
ambiente político de reflexão, no sentido de que cada povo possa se expressar
naturalmente, e não forçar. São feridas profundas, violência histórica, de décadas,
famílias desestruturadas, aldeias desestruturadas, terras arrasadas”, afirmou.
Maíra
Pankararu concorda: “é um tema que mexe com feridas que foram abertas num
período muito recente, porque são gerações dos pais e dos avós de pessoas que
estavam aqui na mesa, e que a gente não tratou”. A jurista considera necessária
uma mudança no aparato legal para incluir as violações cometidas contra os
indígenas, que são diferentes das sofridas nas cidades.
“Eu
tenho estudado a questão da reparação no Brasil e como ela se deu, e obviamente
ela vem se dando a partir dessa perspectiva das pessoas da cidade que foram
perseguidas, estudantes, pessoas que estavam em partidos políticos, em
organizações políticas, então a estrutura da reparação política abraça essas
pessoas. Não se cita povos indígenas ou qualquer outra coletividade”, explicou.
Fonte:
Por Laura Scofield, da Agencia Pública
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