A 'operação de guerra' para chocar ovos de espécie rara
que passou 75 anos considerada extinta
A
rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis) não chama a atenção apenas
pelos olhos azuis e a bela plumagem marrom-castanho: ela está entre as aves
mais raras do mundo.
A
espécie, que vivia no Cerrado e era avistada de Goiás a São Paulo, de Mato
Grosso a Minas Gerais, praticamente desapareceu do mapa e não era encontrada na
natureza há 75 anos.
Mas
essa história ganhou uma reviravolta surpreendente em 2015, quando 12
rolinhas-do-planalto foram descobertas ao acaso no município mineiro de
Botumirim, a 354 quilômetros de Belo Horizonte.
Desde
então, um time de cientistas lançou uma verdadeira "operação de
guerra" para tentar salvar essa espécie da extinção.
E
o mais recente capítulo deste trabalho aconteceu nos primeiros meses de 2023,
quando dois ovos da rolinha-do-planalto foram retirados da natureza e incubados
com o auxílio de máquinas e especialistas.
Os
filhotes que nasceram foram então transportados de jatinho até Foz do Iguaçu,
onde inaugurarão um viveiro cheio de cuidados especiais — para que, no futuro,
indivíduos dessa espécie possam ser reintroduzidos na natureza.
A
BBC News Brasil conversou com os responsáveis pelo projeto — e você confere a
seguir todos os detalhes da corrida para resgatar essa ave da extinção.
·
A descoberta
Em
2015, o ornitólogo Rafael Bessa viajava pelo interior de Minas Gerais quando
decidiu parar num determinado local da Serra do Espinhaço, no norte do Estado,
para tirar fotos e apreciar a vista.
Foi
aí que o especialista ouviu o canto de um pássaro diferente, que ele não
reconheceu de primeira.
Bessa
resolveu voltar ao mesmo lugar no dia seguinte, munido dos equipamentos
necessários para registrar aquela espécie misteriosa.
"Olhei
pelo binóculo, e minhas pernas começaram a tremer. Sabia que tinha um
verdadeiro fantasma na minha frente. Foi um momento de muita emoção,
indescritível. Estava muito feliz e nervoso ao mesmo tempo", disse o
especialista à BBC News Brasil, numa reportagem publicada em junho de 2016.
"Só
pensava em documentar e aproveitar o momento. Até então, não sabíamos
absolutamente nada sobre a espécie, e aqueles poucos minutos de observação
poderiam significar muito para a conservação da rolinha."
Sim,
Bessa estava diante da rolinha-do-planalto, que não era vista na natureza há 75
anos.
O
biólogo Pedro Develey, diretor-executivo da Save Brasil, ong que trabalha pela
conservação das aves na natureza, lembra que ficou sabendo da descoberta no
Congresso Brasileiro de Ornitologia de 2015, realizado em Manaus.
"Os
registros eram extraordinários. Estávamos diante de uma das maiores descobertas
da ornitologia do último século", pontua.
"Nós
só conhecíamos a rolinha-do-planalto por algumas peças de museu, e os órgãos
responsáveis já a classificavam como uma espécie praticamente extinta",
complementa ele.
·
O planejamento
A
descoberta de Bessa deu início a uma verdadeira corrida contra o tempo. Afinal,
ele só havia observado cerca de 12 indivíduos no local.
"Um
de nossos primeiros questionamentos foi justamente sobre a propriedade. Quem
era o dono daquela terra? Tratava-se de uma área protegida? Havia alguma ameaça
à vida daquelas poucas aves?", questiona Develey.
A
Save Brasil começou a fazer toda essa investigação e, em cerca de três anos,
comprou o terreno localizado na cidade de Botumirim com recursos próprios para
montar uma reserva natural privada de 600 hectares.
"Em
paralelo, trabalhamos com o governo de Minas Gerais para a criação do Parque
Estadual de Botumirim, que tem 35 mil hectares", conta o biólogo.
A
primeira missão estava cumprida: a área onde as raras rolinhas-do-planalto
foram observadas depois de tanto tempo estava finalmente protegida.
Começava,
então, a próxima etapa. "A gente precisava entender a biologia dessa ave.
O que ela come, onde vive, se faz migração, como se comporta nas temporadas de
chuva ou seca, como se reproduz…", lista Develey.
E,
ao longo dos estudos, os cientistas depararam com uma boa notícia.
"A
rolinha-do-planalto é prolífera quando o assunto é fazer ninhos e botar ovos.
Ela pode fazer até três posturas de ovos durante a temporada reprodutiva, que
acontece durante a primavera e o verão", explica.
Isso
significa, portanto, que os especialistas poderiam colher ovos logo no início
desse período de reprodução sem prejudicar o futuro da espécie na natureza, já
que a fêmea botaria outra unidade na sequência, sem prejuízos.
"A
gente também percebeu que a predação dos ovos era muito alta", acrescenta
o biólogo.
Outras
aves maiores costumam entrar nos arbustos onde a rolinha-do-planalto esconde o
ninho para roubar os ovos e usá-los como alimentos.
Ao
retirar o primeiro ovo, portanto, os cientistas evitariam o
"desperdício" de um material tão precioso.
"Vale
ressaltar que temos todas as licenças ambientais para realizar esse trabalho e,
antes de iniciar o projeto, fizemos um workshop com 20 instituições e quase 30
especialistas do mundo todo", pondera Develey.
"Foi
nessa reunião que planejamos todas as ações de acordo com as evidências
científicas e as experiências prévias", completa.
·
O nascimento
Todo
o planejamento de quase oito anos foi colocado em prática na última temporada
reprodutiva, entre o final de 2022 e o início de 2023.
Os
cientistas coletaram dois ovos da rolinha-do-planalto na natureza. Eles foram
colocados numa incubadora artificial e tiveram todos os parâmetros monitorados
de perto.
O
processo de desenvolvimento dos embriões foi marcado por alguns sustos.
"Certo
dia, aconteceu uma queda de luz e não podíamos ficar sem energia. Tivemos que
comprar um gerador para garantir o funcionamento dos aparelhos", relata
Develey.
"Passamos
momentos de muita tensão, pois tínhamos que cuidar de dois ovos de uma das
espécies mais raras do mundo", constata ele.
Felizmente,
deu tudo certo: os dois filhotes nasceram nos dias 21 e 22 de fevereiro, sob o
olhar atento e um tanto apreensivo da equipe de especialistas.
Nos
primeiros dias, eles foram alimentados com papinhas entre às 6 horas da manhã e
às 18h da tarde.
Ambos
se desenvolveram bem e estavam prontos para alçar um voo precoce — e inédito.
·
A viagem
"Nós,
da Save Brasil, conhecemos muito sobre a conservação das aves na natureza, mas
não temos expertise sobre o manejo e o cuidado delas em cativeiro", admite
Develey.
"Foi
daí que surgiu a parceria com o Parque das Aves."
Localizada
em Foz do Iguaçu, no Paraná, a instituição tem como foco a conservação das aves
da Mata Atlântica e aceitou a missão de abrigar os filhotes da
rolinha-do-planalto.
Tinha
início, assim, a terceira etapa dessa missão: o transporte das aves por 1,5 mil
km.
"Nós
planejamos praticamente uma operação de guerra para trazer essas aves para
cá", contextualiza a veterinária Paloma Bosso, diretora técnica do Parque
das Aves.
No
dia 23 de março, a caixinha com os dois filhotes foi transportada de carro por
160 km até a cidade de Montes Claros, onde fica o aeroporto mais próximo de
Botumirim.
Ali,
elas foram embarcadas num jatinho particular da Azul — a companhia aérea fez o
trajeto aéreo sem custos para a Save Brasil ou o Parque das Aves.
A
aeronave saiu de Minas Gerais às 9h30 da manhã e pousou em terras paranaenses
às 13h15.
Bosso,
que acompanhou as rolinhas-do-planalto durante o voo, explica que tudo correu
bem. "Ficamos preocupados com a altitude e a temperatura, mas não tivemos
intercorrências", diz.
Após
o pouso, elas fizeram mais uma rápida viagem de carro até entrar no parque.
"Quando
elas chegaram, uma coisa que me chamou a atenção foi como elas ficam juntinhas,
grudadas uma na outra. E elas continuam muito próximas", observa Develey.
·
A adaptação
Desde
então, a dupla é monitorada numa habitação provisória o tempo todo por uma
equipe de veterinários, biólogos e outros profissionais.
Aos
poucos, a alimentação delas foi modificada da papinha para as sementes que a
espécie tanto aprecia.
"Elas
estão super independentes, se alimentam, tomam banho de sol e fazem todas as
atividades habituais das rolinhas", destaca Bosso.
Agora,
os responsáveis pelo Parque das Aves estão finalizando o viveiro onde os
filhotes — que acabam de completar dois meses de vida — vão viver de forma
definitiva.
E
são muitos os detalhes envolvidos na construção desse local. "Uma das
coisas que aprendemos nos workshops com especialistas é que muitas rolinhas
morrem em cativeiro ao se chocarem com as telas dos viveiros. Para evitar isso,
foi instalado um tecido maleável e suave, que evita esse tipo de
acidente", detalha a médica veterinária.
Por
fora, o viveiro também conta com outra tela mais rígida para evitar a entrada
de espécies predadoras.
Ao
redor da moradia das rolinhas-do-planalto, foi instalado um fosso com água,
para impedir a entrada de formigas no recinto.
Até
o chão conta com um aquecimento especial, para imitar o clima da região de onde
elas vieram.
"O
teto que instalamos é retrátil, para permitir que as aves tomem sol e chuva.
Também trouxemos o terreno arenoso do local e as plantas típicas do habitat
delas", acrescenta ela.
·
O futuro
Mas
por que foi necessário criar um projeto desse tamanho para manter a
rolinha-do-planalto em cativeiro?
Develey
explica que, quando o número de indivíduos de uma espécie está muito baixo,
preservar o local em que ela habita não basta.
"No
último censo, só observamos 15 rolinhas-do-planalto na natureza. Nesse caso,
apenas manter o habitat não é suficiente. Precisamos manejar esse problema com
o auxílio da biologia reprodutiva", diz.
A
proposta dos especialistas, então, é criar uma espécie de reserva dessa ave em
cativeiro. Os dois filhotes que acabaram de chegar em Foz do Iguaçu são os
primeiros — e a ideia é mandar outros na próxima temporada de primavera/verão.
"Planejamos
retirar mais ovos no início da postura, sem prejudicar as aves na
natureza", pontua Bosso.
Com
isso, os pesquisadores esperam no futuro conseguir que esses indivíduos gerem
descendentes no próprio viveiro do Parque das Aves.
Isso
permitirá que, um dia, após muitos anos de trabalho, as rolinhas-do-planalto
criadas em cativeiro sejam reintroduzidas de novo na natureza.
Para
Develey, essa ave rara tem todas as qualidades para virar uma bandeira em prol
da conservação do Cerrado.
"Metade
desse bioma já foi perdido, o que ajuda a explicar a quase extinção da
rolinha-do-planalto", lamenta.
"Essa
espécie é rara justamente porque boa parte do ambiente que ela habita não
existe mais e foi transformado em terras agrícolas", complementa.
Já
Bosso destaca que toda a história dessa espécie representa um fio de esperança.
"A
rolinha-do-planalto pode inspirar as pessoas a entenderem que nem tudo está
perdido e é possível fazer alguma coisa em prol do meio ambiente e de uma
relação mais harmônica com os animais e a natureza."
Fonte:
BBC News Brasil
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