Eduardo Hoornaert: ‘A complexidade do
cristianismo’
Passando um olhar
panorâmico sobre a história do cristianismo, descobrimos que dois fatores,
vindos de fora, o complexificam e dificultam descobrir nele a herança de Jesus
de modo claro e inequívoco: a chamada ‘leitura grega’, que desde o século III
d.C. influencia o movimento de Jesus, e o ‘fator iraniano’ (ou ‘zoroastra’),
que, desde o século VI a.C. exerce influência sobre o judaísmo e,
indiretamente, o cristianismo, por meio da própria cosmovisão de Jesus.
Vale a pena se
aprofundar, mesmo em rápidas pinceladas (como aqui), no tema da complexidade do
cristianismo, pois ela dificulta e, em certos casos, impede uma visão clara das
proposições de Jesus.
• A leitura grega
As sensacionais
conquistas militares de Alexandre o Grande, da Macedônia, no Oriente Médio, no
século III a.C., fazem com que a cultura helênica se espalhe por grandes
extensões de terras e culturas muito diversas e atinge cidades importantes da
época, como Antioquia na Síria, Alexandria no Egito e mesmo a longínqua Roma,
que desponta como centro virtual de um grande Império. Um sinal muito conhecido
dessa avassaladora influência está no fato que os evangelhos, embora descrevam
um movimento surgido numa cultura semita, estão redigidos em grego.
É nesse contexto que o
neoplatonismo, uma das mais significantes ‘ondas’ desse tsunami cultural,
inunda o jovem movimento cristão, como descrevo em poucas palavras.
Quando, no ano 244
d.C., o filósofo alexandrino Plotino de Licópolis (203-269) aparece em Roma, na
época centro de um Império em rápido crescimento, e inaugura ali uma escola de
filosofia neoplatônica para jovens da elite intelectual romana, ele alcança em
poucos anos um renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da
intelligentia do Império Romano, de modo convincente, um modo grego de se
entender o homem e a história, especificamente uma interpretação platônica do
ser humano e do sentido de sua existência. Essa filosofia, na realidade uma
arte de viver, não deixa de penetrar no cristianismo letrado e intelectualizado
da época, notadamente por meio dos chamados ‘Padres da Igreja’, que são os
intelectuais cristãos do primeiro milênio do cristianismo. Através de seus
numerosos escritos, os Padres da Igreja tentam fazer uma síntese entre o
pensamento platônico e a visão evangélica do mundo. Com eles, o platonismo se
‘cristianiza’, ao mesmo tempo em que o cristianismo se ‘platoniza’.
As ideias-mestres do
platonismo são conhecidas: abaixo do mundo divino, não atingido pelo mal,
existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito
da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas. O corpo humano,
morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: ele pode se deixar seduzir
pelas formas vãs da matéria, ou se fascinar pela luz imaterial. O corpo é
prisão e sepulcro, mas é capaz de tornar-se trampolim para a luz. Precisa a
alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas
realidades espirituais, ou melhor, da purificação do amor. O homem precisa
partir do mundo material e se encaminhar para o que é espiritual. Precisa a
alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da
materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos
olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele logo toma conta
de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria.
A maioria dos Padres
da Igreja julga que o encontro entre neoplatonismo e cristianismo leva a um
enriquecimento da mensagem de Jesus. Só alguns deles, como Basílio de Cesareia
(330-379), percebem que, no processo da espiritualização, a perspectiva social,
tão presente nos evangelhos, corre o perigo de desvanecer e que, por
conseguinte, não se pode falar em ‘síntese’ entre cristianismo e neoplatonismo,
já que os elementos da ‘fusão’ são heterogêneos. Seria antes um ‘amálgama’, um
hibridismo, uma junção de elementos heterogêneos. Mas essa crítica não
prevalece. Vence a ideia que o drama da vida cristã se processa entre a alma e
Deus. Os impulsos do corpo têm de ser controlados e possivelmente eliminados,
enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a êxtase, a contemplação de
Deus. Pois, impregnado de um senso religioso agudo e místico, o neoplatonismo
faz com que muitos confundam as coisas e não consigam mais distinguir com
clareza a diferença entre ensinamentos de Jesus e ensinamentos de Platão.
Há de se ressaltar
aqui que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de
forma lenta, quase imperceptível, e nem sempre aparece com clareza no nível dos
textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão
ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos.
Esse é o caso de
Agostinho de Hipona (354-430). Ele faz parte de um grupo de amigos não
cristãos, da África do Norte, que viajam de Cartago a Roma e depois a Milão, na
companhia de Mônica, mãe de Agostinho, que é cristã. O grupo procura emprego na
Itália, aos poucos renuncia a uma vida de prazeres e passa a procurar a
sabedoria. É um grupo seleto, que cultiva altos ideais de vida, tem grandes
intuições, formula excelentes orientações morais e segue um elevado modo de
viver. Depois de tentar diversas filosofias de vida, o grupo entra em contato
com a espiritualidade neoplatônica e, quase ao mesmo tempo, ao chegar a Milão,
se impressiona com Ambrósio, bispo cristão, grande orador e figura de elevada
estima moral. O grupo de amigos, então, se estabelece em uma propriedade rural
num vilarejo nos arredores da cidade de Milão, chamado Cassiciacum. Ali, todos
leem e trocam opiniões. São idealistas em busca de uma alma espiritual, que já
deixaram para trás os prazeres da carne pecaminosa.
A situação dos
escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões
(7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal,
faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a
aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, pois um movimento real para
melhorar as condições sociais da Itália e dos escravos não se faz presente
entre eles. Em síntese, para o grupo de Cassiciacum, entre os quais se encontra
o maior teólogo da história do cristianismo, a libertação que o Evangelho
propõe tem um sentido espiritual, mas não social.
A situação dos
escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões
(7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal,
faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a
aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, mas dificulta o senso
evangélico. Em suas Confissões, Agostinho afirma que a sabedoria neoplatônica
combina bem com a sabedoria bíblica, como deixa claro em dois trechos daquele
livro: Se eu persistisse no sentimento salutar que deles (dos livros dos
platônicos) tenho haurido, julgaria que, se alguém aprendesse só com esses
livros (deixando de lado os livros bíblicos), também deles poderia alcançar o
mesmo afeto espiritual (Confissões, 7, 26). Notei que tudo de verdadeiro que li
nos livros dos platônicos se encontrava neles (nos livros bíblicos)
(Confissões, 7, 27). Agostinho só enxerga originalidade no cristianismo em
temas morais: ascese, obediência, humildade, controle do corpo, procura da vida
perfeita, introspeção, organização da Igreja, patriarcalismo e, principalmente,
a convicção inabalável de andar no caminho certo (dogmatismo). Nada
transparece, nas Confissões, que se refira a um Deus que opta pelos sofredores,
pelos escravos.
Após Agostinho ser
batizado por Ambrósio, o grupo volta à África do Norte, onde o convertido vive
alguns anos numa propriedade da família em Tagaste. Ele, finalmente, transforma
essa residência numa ermida, onde – na companhia de alguns amigos igualmente
convertidos ao cristianismo – vive uma vida monacal, enquanto é bispo da
cidade.
Uma linda trajetória
de vida, mas, sinceramente, há de se questionar: Agostinho não será um
idealista neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos? Em outras
palavras: a ‘leitura grega’ da mensagem cristã combina com a genuína tradição
de Jesus?
• O fator iraniano
No século VI a.C.
surge, em terras do antigo Irã, uma poderosa onda civilizatória, que já
atravessou dois e meio milhares de anos e hoje não demonstra sinais de
enfraquecimento. A tradição atribui a origem dessa ‘onda’ a Zaratustra, um
sábio iraniano, que viveu entre 628 e 551 a.C. e conseguiu despertar as pessoas
para uma ética de responsabilidade pessoal e de esperança. Trata-se de uma
novidade no panorama cultural e moral daqueles tempos remotos. Com Zaratustra,
aparecem narrativas antes desconhecidas no espaço pan-mesopotâmico, com
irradiações para culturas vizinhas (como a judaica, por exemplo). Mudam-se as
relações entre seres divinos e humanos, indivíduos e estados, vivos e mortos.
Não se sabe como se
deu concretamente essa guinada. Só sabemos que Zaratustra inaugurou uma ética
de decisão, a superar as religiosidades tradicionais baseadas na fatalidade.
Antes de Zaratustra, o cosmos era entendido como uma web de múltiplas relações,
que têm que ser harmoniosas para que tudo funcione bem. A arte da vida
costumava importar em acomodação com o ‘destino’ (marcado pelos deuses), em
glorificação dos poderosos do momento, ou ainda em simples gestos de etiqueta.
O modelo era a sociedade divina e o mapeamento da ordem era feito pela
observação das estrelas e o movimento dos planetas (da lua, por exemplo). Daí a
importância da astrologia e dos oráculos, ou seja, de sinais que provêm de um
mundo de fora. Os ritmos inalteráveis do macrocosmo marcavam os destinos do
microcosmo, de que fazemos parte, e lhe ditavam regras e harmonias. Zaratustra
rompe com essa visão e interpreta a vida humana a partir do princípio da
responsabilidade pessoal.
Acontece que, no
seguimento das lições de Zaratustra, com o tempo aparecem narrativas de
oposição radical entre Deus e Satanás, o Bem e o Mal, a Santidade e o Pecado,
Céu e Inferno, Salvação e Condenação. São essas narrativas que resistem ao
tempo e chegam até nós.
O Império persa, que
posteriormente se instala no Irã, respeita os ensinamentos de Zaratustra, de
modo que eles continuam orientando as populações da região até os tempos de
Maomé, em 636 d.C. Mas é a helenização que difunde as intuições zoroastras em
amplos ambientes. Como escrevi acima, o líder macedônio Alexandre Magno, nos
anos 330 a.C., rasga horizontes e penetra no mundo pan-mesopotâmico, de modo
que a região mediterrânea se defronta, de repente, com heranças iranianas.
Aparecem, por todo canto, éticas de responsabilidade, enquanto atitudes de
etiqueta religiosa, da conformidade e da harmonia entram em declínio. Sob a
influência, direta ou indireta, das tradições oriundas em Zaratustra, as novas
religiões helenísticas não falam mais em conformidade a desígnios divinos, mas
em libertação do mundo de Satanás. A religião vira um campo de batalha entre o
bem e o mal. A ordem do mundo, tradicionalmente exemplificado pelas sete
esferas planetárias, cede diante da ascensão a um mundo além das ‘esferas’, o mundo
da liberdade e da responsabilidade.
O zoroastrismo é
provavelmente a religião que, até hoje, exerceu maior influência sobre a
história humana, no Ocidente e mesmo em importantes partes além. Ela
influenciou o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o neoplatonismo, o
estoicismo e o pitagorismo. Até o monaquismo cristão ostenta marcas zoroastras.
Imagens como Céu e Inferno, Deus e Satanás, Salvação e Condenação, Santidade e
Pecado se propagam universalmente.
Foi a leitura da frase
"Vi Satanás cair que nem um raio" (Lc 10, 18), atribuída a Jesus nos
evangelhos de Mateus e Lucas, que me fez suspeitar, em suas falas, a influência
de narrativas de teor zoroastra. Percebi que Jesus carrega consigo imagens e
ideias do antigo mundo iraniano. Penso que essa influência seja resultado do
ensino que ele recebeu na sinagoga ao longo da infância e adolescência. Pois o
ensino na sinagoga, embora sempre se tenha apresentado genuinamente judaico,
não deixou de estar impregnado de imagens provenientes de antigas religiões do
espaço mesopotâmico. Hoje, por exemplo, os biblistas concordam em dizer que os
nove primeiros capítulos da Bíblia foram inspirados por imagens provenientes de
antigas culturas mesopotâmicas, iranianas e egípcias.
O jovem galileu Jesus,
ao frequentar a sinagoga nos sábados, é atingido pela onda iraniana. O rabi lhe
explica que, já no jardim do Éden, Satanás aparece na figura de uma Serpente
Tentadora a instigar o primeiro homem a pecar (Gênesis 3 e Apocalipse, 12, 9 e
20, 2). E que o Rei Davi é incitado a pecar por Satanás (1 Crônicas 21, 1). O
‘Senhor Satanás’, o Grande Opositor a Ihwh, o Maioral dos demônios, o Chefe dos
anjos caídos (Zacarias 3, 2), o Sedutor e Acusador do povo de Deus, o Intruso
no tribunal celestial (Livro de Jó), o Falsário e Enganador (Jó 1-2), passa a
ocupar um espaço importante no imaginário judaico e, consequentemente, de
Jesus. O rabi, talvez sem tomar consciência do fato, trabalha com imagens
iranianas. Ele não entra em detalhes sobre a origem de Satanás, só comenta que
ele caiu de sua posição original de Anjo devido a seu orgulho (1 Timóteo 3, 6),
levando consigo outros anjos caídos, uma narrativa de teor zoroastra.
Essas tradicionais
narrativas, captadas pelo judaísmo, podem ser apresentadas do seguinte modo: no
Princípio, Deus cria um mundo bom. Mas, pouco tempo depois da criação de Adão,
acontece uma rebelião entre os anjos, liderado por Satanás. Miguel derrota Satanás
e o joga fora do céu. Por vingança, esse seduz Adão no paraíso terrestre, sob o
disfarce de uma serpente (Gen. 3). Adão peca e, com isso, a morte, as
enfermidades, um sem-número de desgraças vêm se abater sobre a humanidade.
Anjos rebelados namoram filhas dos homens, são igualmente expulsos do céu e
relegados ao mundo subterrâneo, donde costumam sair para provocar danos aos
humanos. Enfim, por causa da atuação constante de Satanás e seus seguidores, o
mundo cai nas redes do pecado. Não há como escapar.
O Apocalipse, do final
do século I, conta a mesma história, sendo que introduz a imagem do Dragão.
Conta que, na guerra travada no céu, o Arcanjo Miguel e seus adjuvantes fizeram
a guerra contra o Dragão. O Dragão e seus comparsas reagiram, mas não tiveram
força e caíram na terra. O Dragão, o grande, a antiga Serpente, aquele que se
chama Divisor e Adversário, aquele que engana o mundo inteiro, esse Dragão caiu
na terra. Foi jogado a terra com seus comparsas (Apoc. 12, vv. 7-10). Aí, após
mil anos de prisão, saiu de novo para enganar as nações por meio de mentiras.
Hoje, ele age nos quatro cantos da terra e consegue reunir nações tão numerosas
como os grãos de areia na praia, do mesmo modo que fizeram Gog e Magog, quando
fizeram guerra contra Israel (Apoc. 20, vv. 7-8).
Assim se compreende
que a imagem de uma oposição radical entre Deus e Satanás seja recorrente nas
falas de Jesus. Para ele, como para os primeiros discípulos, Satã (que
originalmente significa ‘Adversário’) é o grande símbolo do mal, como comprovam
nomes com Inimigo, Tentador, Maligno, Príncipe deste mundo, Sopro imundo,
Demônio, Beelzebu, Sedutor, Provocador, Enganador, Mentiroso, Separador (o
termo grego diabolos significa: ‘aquele que separa’), Dragão (no Apocalipse),
Serpente (no Gênesis). Embora não sejam frequentes os textos dos evangelhos que
tratam de um confronto direto entre Jesus e Satanás (só Mt 4, 1-11 [tentação no
deserto], Mc 3, 22 [o poder que Jesus tem de expulsar demônios], e Lc 10, 18
[‘vi Satanás cair como um raio]), o que fica claro, nas narrativas evangélicas,
é que Jesus põe fim ao reino de Satanás sobre o mundo. O Evangelho de Marcos,
por exemplo, estrutura toda a vida pública de Jesus em torno de uma luta
incessante entre Jesus e Satanás. Nele, o Reino de Deus aparece como uma vitória
contra o Reino do Adversário (Mc 3, 23-27).
Nossa dificuldade em
entender a tradição zoroastra provém basicamente do fato que os estudiosos
costumam prestar pouca atenção à porosidade que caracteriza relações
interculturais. O judaísmo, na época de Jesus, está impregnado de imagens e
narrativas oriundas da Mesopotâmia e do antigo Irã. E as lições, que Jesus
recebe na sinagoga, combinam bem com recomendações de Zaratustra. Falar da
influência da ‘tradição zoroastra’ sobre Jesus não é, pois, algo estranho, mas
decorre de um enfoque de sua figura na linha de uma maior definição histórica.
Hoje constatamos que
numerosas imagens veiculadas no seio do cristianismo, com forte impacto nas
classes populares, tratam da oposição entre luz e trevas, verdade e mentira,
anjo e demônio, céu e inferno, salvação e condenação. Para o comum do povo
cristão, Satanás continua sendo o grande adversário, o diabo, o demônio, o
dragão da maldade, o Lúcifer. O maior drama do mundo é aquele que se trava
entre Deus e Satanás. Aparece, com a força de séculos de transmissão, a figura
de Jesus Salvador (Redentor). A retórica do inferno, por exemplo, apesar de
atualmente desaparecer no discurso da instituição cristã, continua repercutindo
poderosamente no povo crente.
• Uma intuição de Karl Jaspers
O filósofo alemão Karl
Jaspers publicou, em 1948, um texto baseado numa intuição, que ele formulou do
seguinte modo: num período de aproximadamente seiscentos anos, entre os séculos
VI a.C. até o início da era cristã, teriam surgido, em distintos pontos do
planeta, percepções e ‘artes de vida‘ de teor revolucionário. Ele chamou esse
período de 'Era Axial' e pensou detectar sinais de tal 'Era' em Israel (com
profetas como Isaías), Grécia (com Sócrates e Platão), China (com Confúcio),
Índia (com Buda), Irã (com Zaratustra) e Galileia (com Jesus).
Estamos diante de uma
grande intuição, que no fim dos anos 1940 teve pouca repercussão, mas hoje,
decorridos quase oitenta anos, nos parece ajudar a situar o cristianismo na
amplitude da história da humanidade. O cristianismo seria participante daquele
megamovimento de mudança, em termos de mentalidade e ação, que a escritora
inglesa Karen Armstrong, num best-seller de 2006, apresentou sob o título The
Great Transformation. Na mesma linha, D. MacCulloch, professor de história
eclesial na Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicou recentemente um
livro sob o seguinte título: Christianity: the First Three Thousand Years (Nova
York, Penguin, 2009: Cristianismo: os primeiros três mil anos). Estamos
acostumados a considerar que o cristianismo tem dois mil anos, mas MacCulloch
alarga os horizontes, de modo que ‘artes de vida‘ gregas, mesopotâmicas e
iranianas, anteriores ao surgimento do movimento de Jesus, entrem no campo de
visão. Elas continuam vivas no cristianismo que hoje professamos. Com isso,
MacCulloch questiona a ideia de Jesus como única fonte do cristianismo
histórico.
Há detalhes na
liturgia católica, que costumam passar despercebidos, e que apontam para
influências além de Jesus. Donde vem a mitra dos bispos? Sinal quase
despercebido de uma herança muito antiga, a mitra era usada, mais de dois mil e
quinhentos anos atrás, por sacerdotes de Mitra, um dos principais deuses do Irã
antigo. Em textos antiquíssimos, de milênios atrás, como o Avesta iraniano e o
Rig Veda hindu, Mitra aparece. No tempo do Império Romano, ele é venerado como
protetor das legiões. E, a partir do século IV, aparece na cabeça de bispos
católicos. Ficamos pensando: ao lado de Mitra dos antigos iranianos, não existe
o Tao dos chineses, o Bodhisatta dos budistas tibetanos, o Brahma dos indianos,
o Allah dos árabes, a ‘Caravana do Amor’ do andaluz Ibn Arabi e, nos anos da
luta pela independência da Índia (1946), o Vishnu de Gandhi, que lhe inspira a
Satyagraha? A seu modo, a mitra episcopal mostra que, no cenário mundial, o
iraniano Zaratustra, o chinês Confúcio, o indiano Buda e o árabe Maomé figuram
ao lado do judeu Jesus.
Essa vocação universal
da ideia cristã foi mal percebida e compreendida nas primeiras décadas do
movimento de Jesus (entre os anos 30 e 50). Os primeiros discípulos mal
perceberam que, pensando bem, o universalismo pertence ao âmago da mensagem de
Jesus de Nazaré. Aqui, há de se considerar que, nas palavras e nos gestos de
Jesus, o universalismo entra como vislumbre, não impregna por inteiro seu modo
de falar e atuar (veja o episódio com a mulher cananeia). Jesus permanece
fundamentalmente judeu, pensa em categorias judaicas e segue tradições
judaicas. Então, é de se entender que os discípulos da primeira geração pensem
que a mensagem de Jesus se restrinja ao mundo judaico e não compreendam como um
não judeu possa participar do movimento. É por meio da intuição de um
‘outsider’, o fariseu Paulo de Tarso, que a afirmação do valor universal da
mensagem de Jesus passa a se espalhar pelo movimento, aproximadamente vinte
anos após a morte de Jesus:
Não há judeu nem grego
Não há servo nem livre
·
Não há homem nem mulher
Vocês todos são um em
Jesus o Ungido (Gl 3, 28).
Foi preciso que o
autor ateu Alain Badiou, em 1997, chamasse a atenção para o fato que o universalismo
é a verdadeira dimensão da mensagem de Jesus (Badiou, A, Saint Paul, La
Fondation de l’Universalisme, Presses Universitaires de France, Paris, 1997),
para que essa ideia renascesse na teologia atual. Por seu modo retórico de
escrever, que lhe é próprio, Paulo dá a impressão de estar escrevendo para
todos os habitantes de Corinto, Roma ou Tessalônica. Mais: Paulo parece
escrever para os habitantes do mundo inteiro. A ideia universalista impregna
seu modo de escrever. Na realidade, suas Cartas se dirigem a grupinhos de, no
máximo, umas dezenas de pessoas. Mas Paulo está imbuído da ideia do
universalismo da mensagem de Jesus. Por isso, são seus textos que conferem
forma, expressão e ampla divulgação à ideia universalista e, dessa forma,
constituem a primeira literatura universalista de que a humanidade tem
conhecimento. Pela primeira vez, na literatura mundial, alguém escreve
explicitamente que o universalismo é a verdadeira dimensão da história humana,
sua verdadeira vocação.
Hoje, percebemos com
crescente clareza: se o judeu não der a mão ao grego, o livre ao escravo, o
homem à mulher, não haverá paz neste mundo. Eis a inspiração básica de não
poucos entre os teólogos de hoje, como Dietrich Bonhoeffer, que fala em viver
sem Deus em Deus, ou Roger Lenaers, que aborda o tema do ser cristão moderno,
José María Vigil, quando instiga a vivenciar o pluralismo religioso, José María
Castillo, quando valoriza a historicidade de Jesus, Shelby Spong, quando ensina
a ler os evangelhos com olhos novos, Joseph Moingt, quando escreve em viver
segundo o espírito do cristianismo, José Comblin, quando diz que evangelho não
é religião. E tantos outros.
Para muitos cristãos,
o modo em que o cristianismo é vivido hoje parece decorrer unicamente do
evangelho de Jesus. Eles não costumam perceber, no cristianismo, influências
vindas de fora. Nunca ouviram falar que o zoroastrismo ou o neoplatonismo
possam ter algo a ver com o modo em que eles praticam a religião cristã. Nunca
se fizeram perguntas como ‘no cristianismo de minha fé, o que é de Platão, o
que é de Zaratustra, o que provém de Jesus?’ Isso se entende, pois as
imbricações do cristianismo, tanto com o zoroastrismo quanto com o
neoplatonismo, são sedimentadas por um passado de muitos séculos e estão
integradas no modo em que costumamos entender o cristianismo.
Mesmo assim, é
importante distinguir. Sendo o cristianismo uma complexa formação de elementos
diversos, é bom recorrer ao método tomista de distinção, diferenciação e
depuração, para conseguir enxergar as diferenças. Aqui podemos parafrasear um
dito de Jesus e dizer que precisa ‘dar a Platão o que é de Platão, a Zaratustra
o que é de Zaratustra e a Jesus o que é de Jesus’. Pois aqui, como já dizia
Basílio de Cesareia, não se trata de ‘sínteses’ (entre a leitura grega, o fator
iraniano e o evangelho de Jesus), mas de ‘amálgamas’, ou seja, composições de
elementos heterogêneos. Platão, embora apresente uma ‘arte de viver’ de grande
valor, não contempla as relações sociais em que os seres humanos estão
envolvidos e que constituem uma das principais ideias-mestre de Jesus. Tarefa
ainda mais delicada consiste em destrinchar o fator iraniano, tão presente na
vivência do cristianismo hoje, pois está na origem de imagens universalmente
difundidas como a de ‘Jesus Salvador’, do ‘último juízo’ e da ‘eterna condenação’,
que destoam da mensagem de Jesus sobre ‘Deus Pai’.
Termino aqui, caro
leitor, querida leitora, e espero que meu texto lhe seja de algum proveito.
Fonte: IHU
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