‘Os xamãs sonham e
falam que a floresta está chorando porque está destruída’, diz cineasta
“Quando
nós sonhamos, o que nós vemos em sonho?”, questiona o xamã Davi Kopenawa, a principal
liderança Yanomami, em Mãri hi – A Árvore do Sonho. No novo filme
de Morzaniel Ɨramari, o primeiro
cineasta Yanomami, Kopenawa revela como a floresta se comunica por meio dos
sonhos com os xamãs, a “gente-espírito”, e conta quando os perigos se
aproximam.
Nascido
em 1980 na aldeia Watorikɨ, na região do
Demini, onde mora Kopenawa, Morzaniel viveu a primeira invasão garimpeira de
seu território quando era criança. Viu a luta de Kopenawa, ao lado da fotógrafa
Claudia Andujar, para denunciar o genocídio em curso antes da demarcação, que
ocorreu em 1992. Cresceu no período em que o território se recuperava: estudou
na escola da aldeia, teve acesso a um atendimento médico adequado pela Urihi – Saúde
Yanomami e
se tornou agente de saúde indígena, beneficiou-se de projetos governamentais
que o ensinaram a filmar e viu seu povo se fortalecer – o que contou em sua
primeira produção, o curta Casa dos Espíritos (2010), vencedor
do prêmio de Melhor Filme, segundo o júri popular, na Mostra Aldeia SP, em
2014.
Filmando
seus parentes sem “combinar” cenas, “como fazem os não indígenas”, Morzaniel
produz uma etnografia despida do olhar estrangeiro, narrador da
história até aqui. O respeito pelo ritmo dos rituais xamânicos aparece em seu
primeiro longa, Urihi Haromatimapë – Curadores da Terra-floresta (2014),
que ganhou o prêmio de Melhor Filme na mostra competitiva do festival
Forumdoc.bh.
Pelo
olhar de Morzaniel, também podemos ver a degradação do território Yanomami na
última década. Se em 2010 ele estudou, seus filhos já não puderam acessar a
escola, que deixou de existir. As mortes explodiram
com a chegada das doenças dos garimpeiros a um território com um sistema
de saúde já destroçado. Hoje, a floresta chora aos xamãs porque está destruída,
conta o cineasta nesta entrevista dada por vídeo a SUMAÚMA.
“Os
xamãs falam que a terra está estragada. Mesmo o céu está estragado.” Morzaniel
constatou isso pessoalmente ao atuar como intérprete das equipes do censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que percorreram o
território Yanomami no ano passado e neste ano. Visitou aldeias mais distantes,
totalmente impactadas pelo garimpo. Viu seu povo doente, alcoolizado pela
cachaça dos invasores, pedindo socorro a um sistema de saúde que o abandonou.
Uma realidade distante do Demini, onde não há muito ouro no subsolo, o que
afasta os garimpeiros. Mãri hi é, portanto, também um
filme-denúncia. Um apelo para que os Yanomami possam “viver em paz, com
alegria, e fazendo suas festas”.
Selecionado
para o festival É Tudo Verdade deste ano, o filme ganhou o prêmio de Melhor
Documentário de Curta-Metragem da Competição Brasileira, o que o torna
automaticamente elegível para a inscrição ao Oscar de Melhor Documentário. Na
premiação paralela, recebeu o Prêmio Mistika na mesma categoria. Até o dia 25
de abril, Mãri hi pode ser visto na plataforma Itaú Cultural
Play. A obra faz parte do projeto “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela
Carneiro da Cunha, produzido pela Aruac Filmes e baseado no livro de mesmo nome
de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. O trabalho contou com
ações para fortalecer o audiovisual Yanomami, o que produziu, além de Mãri
hi, outros dois filmes: Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó e Thuë
pihi kuuwi – Uma Mulher Pensando, ambos dirigidos por Aida Harika, Roseane
Yariana, as primeiras cineastas mulheres da etnia, e pelo xamã Edmar Tokorino.
Os três curtas participaram da exposição The Yanomami Struggle (A
luta Yanomami), dedicada à parceria entre Claudia Andujar e o povo Yanomami, no
The Shed Museum, em Nova York, que ficou em cartaz até o último dia 16.
LEIA
A ENTREVISTA:
·
Qual é o papel do sonho para os Yanomami?
Morzaniel: O xamã sonha
com várias coisas: com o espírito do rio, da montanha, da chuva, da lua, do
céu, da floresta, de animais como a onça. Os espíritos dão recados. O rio
avisa: neste momento eu estou doente, não estou bem, cuidado para beber a água,
você vai ficar mal. A floresta fala tudo: “Tenham cuidado que a floresta vai
acabar. A floresta está doente, o clima está muito ruim, está chegando doença
muito forte”. Eles mandam recado assim.
É
Tudo Verdade
Mãri
hi – A Árvore do Sonho ganhou o prêmio de Melhor Documentário de
Curta-Metragem da Competição Brasileira do festival É Tudo Verdade, o que o
torna elegível para a inscrição ao Oscar de Melhor Documentário
·
O que a floresta tem dito nestes últimos anos?
Os
xamãs falam que a floresta era alegria. Produzia muita fruta, tinha muita caça.
Quando chegou o garimpo, a floresta ficou doente. Eles falam que a floresta
está chorando porque está destruída. Ainda agora eles falam que a terra está
estragada. Mesmo o céu está estragado.
Antigamente,
o povo Yanomami fazia festa feliz, animado porque tinha muita fruta, não tinha
doença, não tinha malária. Hoje, eles falam que a floresta é triste.
·
Você auxiliou as equipes do censo do IBGE como
intérprete Yanomami. Circulou por muitas áreas do território. O que você viu?
No
ano passado, no mês de agosto, eu comecei a ajudar o pessoal do IBGE. Eles me
convidaram, e eu fui para a região do Palimiu, onde teve os tiroteios [dos
garimpeiros] contra os Yanomami [em 2021]. A terra era cheia de buracos. Todas
as crianças estavam doentes. Não tinha mais roçado porque o garimpo ainda
estava perto. Os parentes estavam sofrendo.
Na
época, não tinha nada de remédio por causa do garimpo. Era muita malária por
semana. Eu fiquei muito triste de ver naquela região o envolvimento dos jovens
no garimpo. Não tinha como eu me esconder porque os garimpeiros ficavam perto,
lá do lado. Então eu comecei a andar no garimpo. Encontrava os jovens
trabalhando. As meninas de 15 anos, 20 anos, lavando roupa dos garimpeiros,
andando pelo garimpo. Era muito triste. Lá em Waicás eu quase chorei. Todas as
mulheres no barranco [as crateras que se formam com o garimpo] dos garimpeiros.
·
Trabalhando para os garimpeiros?
Trabalhando
para os garimpeiros, pedindo comida, bebendo cachaça. Lá no Araçá os
garimpeiros ofereciam muita cachaça para eles. Tomavam as mulheres deles
[Yanomami]. Todo mundo ficava bêbado, caído, com a mulher, com o pai.
As
reportagens dizem que melhorou a saúde Yanomami [após a força-tarefa do governo
Lula neste ano]. Mas não. Este mês de março acompanhei o IBGE outra vez, agora
na região do Xitei. Cheguei lá e todos os pais, mães, crianças chorando,
pedindo saúde, pedindo remédio. Todas as crianças com verme. “Cadê a equipe de
saúde?”, perguntavam.
Depois,
dia 13 de março, eu fui para a região do Amazonas, pelo censo também. Eu
encontrei a mesma situação. Parente doente, quer remédio, equipe de saúde não
aparece lá. Eu contei uns dois velhos muito doentes na comunidade de Yawarapi.
Cheguei lá, os velhos pedindo remédio, pedindo socorro. Eles gritando, com dor
de urina, dor de barriga.
Depois,
dia 15, eu fui para a região de Kata Kata, Marari. Eu encontrei a mesma
situação. Lá no Kata Kata morreram dez crianças com malária.
·
Você viu garimpeiros lá ainda neste mês?
Encontrei.
Ainda tem garimpo. A Força Nacional [do SUS] já viu garimpo. Outros intérpretes
Yanomami que me acompanharam no censo já encontraram. O garimpeiro tá lá ainda.
Na região do Alto Catrimani tem garimpeiros pousando lá ainda. Quando passamos
de helicóptero, vimos muitos barrancos [de garimpo].
·
Você acha que um dia vocês vão ficar livres dos
garimpeiros?
Eu
não estou achando que eles vão deixar a terra livre. Eu morei na região do Alto
Mucajaí. Lá os próprios indígenas estão levando os garimpeiros escondidos.
Eu
vi um vídeo que os Yanomami gravaram do garimpeiro trabalhando durante a noite.
De dia eles escondem o maquinário.
·
Você falou do envolvimento da juventude no garimpo.
Seus filmes mostram o modo de vida tradicional Yanomami. Os jovens de hoje se
interessam pelo xamanismo? Pelo uso da yãkoana [substância inalada pelos xamãs
para chegar aos espíritos]?
No
Palimiu, na Serra Alta, acho que não tem muito interessado. Não tem jovem xamã
para continuar. Não tem xamã grande, como no Demini. Tem outras tradições:
dança, canto, pintura. Só que eles não usam yãkoana, não fazem o xamanismo.
No
Demini eles querem continuar a ser xamã. Não querem acabar com o xamanismo
porque eles falam que o xamanismo é muito importante para ajudar na doença, tem
esse papel importante de curar as doenças.
·
Qual é o papel que os xamãs podem ter para reconstruir
o território Yanomami?
Eles
falam que quando sair o garimpo eles querem melhorar muito a floresta. Falam
que vão espantar a fumaça, porque os garimpeiros fizeram muita fumaça com o
maquinário. Os espíritos deles [que auxiliam os xamãs] querem limpar a terra de
novo. Para a floresta ficar viva de novo. Hoje a floresta está morta.
Só
que eles não conseguem porque o garimpo trabalha direto com fumaça. O garimpo
tá lá ainda, traz malária, doenças diferentes. Não tem como fazer se o garimpo
não sair.
·
Seu filme de 2010 mostra a escola, que tinha
computador. Fala do posto de saúde, que tinha laboratórios para fazer os
exames. Hoje o Demini já não tem mais escola nem laboratório. Seu novo filme já
mostra outra floresta. Muita coisa mudou na realidade de vocês em tão pouco
tempo?
Primeiro
tinha a escola. Funcionava porque tinha um projeto, Davi conseguiu a escola.
Tinha laboratório. A saúde funcionava bem. As crianças estudavam, até eu
estudava. Os próprios indígenas ensinavam suas crianças. A gente tinha tudo.
Funcionava tudo. A gente não morria porque não tinha muita doença, muita
malária.
Hoje
em dia mudou muito. Não tem mais escola. Não tem atendimento de saúde de
qualidade. Tá ruim, ruim… Não tem mais laboratoristas dentro da terra Yanomami,
levaram tudo pra cidade. Por isso mudou muito hoje. Tem muita doença.
·
Você acabou de voltar, com outros artistas Yanomami, de
Nova York, onde seu filme participou de uma mostra da fotógrafa Claudia
Andujar. A Claudia teve um papel fundamental para a demarcação, no início da
década de 1990. A arte Yanomami tem ganhado o mundo. Que importância tem isso
para a luta de vocês?
Hoje
a terra Yanomami está sendo destruída. Os garimpeiros, o povo de Roraima, não
respeitam os Yanomami. Eu tinha o pensamento de mostrar meu filme fora do
Brasil porque a gente quer mostrar a nossa luta.
Para
conseguir apoio de outros não indígenas, foi muito importante participar da
exposição da Claudia Andujar. Ela ajudou a demarcar a terra Yanomami, e agora
estamos junto com ela mostrando a nossa imagem dos Yanomami. Para mostrar como
nós estamos vivendo, como está vivendo a nossa cultura, para eles conhecerem a
vivência do povo Yanomami.
O
Davi explica: quando o Yanomami morrer, quando os xamãs morrerem, todo mundo
vai morrer. Por isso é muito importante para o não indígena de fora do Brasil
conhecer a nossa realidade. Quando eu não tinha nascido, a Claudia trabalhou muito.
Agora nós estamos chegando onde ela conseguiu chegar para defender o povo
Yanomami. E hoje é o próprio Yanomami que está fazendo. Nós estamos desenhando,
estamos mostrando com os filmes.
·
Você foi o primeiro cineasta Yanomami. É diferente
quando o próprio Yanomami conta a história?
O
próprio Yanomami fazendo filme fica perto de onde a pessoa vai andar. Vê o que
vai fazer na casa. Os não indígenas pedem para o Yanomami fazer. Eu não pedia.
Eu contava o que as pessoas faziam. Eu filmava o que os Yanomami fazem dentro
da maloca, como vivem, o que nós comemos. Como nós vivemos.
Como
vamos fazer o trabalho, coletar as frutas, essas coisas. Você tem que andar
junto, levantar cedo, ir à noite. Não pode combinar. [Foi] Assim que eu comecei
a fazer filme. Por isso é diferente.
·
O audiovisual pode ser um caminho para resgatar o
interesse dos jovens Yanomami pela cultura Yanomami?
Tem
muitos jovens interessados em participar do audiovisual para contar a história
para outros Yanomami que vêm nascendo, crescendo. No Demini todo mundo quer
participar do filme, pegar câmera. Tem seis jovens que já fizeram vídeo. Nas
outras áreas eles também têm interesse. Por isso hoje eu estou procurando um
projeto para ensinar os jovens, para aprender comigo. Eu tenho muito interesse em
ensinar.
Fonte:
Sumaúma
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