Nota fiscal em
papel, venda na base da 'boa-fé': entenda os problemas da cadeia do ouro no
Brasil
Uma
determinação da Receita Federal deve fechar um dos principais buracos da cadeia
do ouro no Brasil, pela qual, hoje, o minério extraído ilegalmente de garimpos
proibidos entra facilmente no mercado formal.
Nesta
quinta-feira (30), a Receita instituiu a obrigatoriedade do uso de notas
fiscais eletrônicas nas transações de compra e venda de ouro por companhias que
comercializam o minério como ativo financeiro ou instrumento cambial.
A
decisão vem meses depois de o governo Lula declarar emergência em saúde na
Terra Indígena Yanomami, onde o garimpo provocou uma crise sanitária e
humanitária que, nos últimos quatro anos, vitimou mais de 500 crianças
indígenas.
Até
a determinação da Receita, o ouro extraído pelo garimpo ilegal -- seja da Terra
Indígena Yanomami ou de outras áreas protegidas no país -- era comercializado
com notas fiscais em papel, praticamente inviabilizando o rastreio e o controle
por parte das autoridades.
Ou
seja, para fraudar uma transação bastava possuir, como explica o Ministério
Público Federal no Pará, "dois itens vendidos em papelarias: uma caneta e
uma nota fiscal avulsa”. Depois disso, era só inserir dados falsos no
documento.
A
nota fiscal eletrônica é um passo para a instituição de maior controle,
especialmente sobre a primeira compra do ouro que saí dos garimpos e é
adquirido por instituições autorizadas pelo Banco Central. Mas não resolve
todos os problemas.
Das
158 toneladas de ouro produzidas entre janeiro de 2021 e junho de 2022 no
Brasil, pelo menos 30% podem ser consideradas irregulares, de acordo com o
"Boletim do Ouro 2021-2022", estudo realizado por pesquisadores da
UFMG.
Entenda
na reportagem abaixo quais são os principais problemas da cadeia.
1)
Princípio da boa-fé
A
facilidade com o que o ouro ilegal é "esquentado" no Brasil se deve,
além de frágeis mecanismos de fiscalização e controle, a uma legislação
bastante permissiva.
Uma
lei sancionada em 2013 permite que o ouro extraído do garimpo (em tese, legal,
ou seja, autorizado pela Agência Nacional de Mineração) seja comercializado
apenas com base nas informações oferecidas pelos próprios vendedores, sob a
presunção de “boa-fé”.
Segundo
a lei, "presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa
jurídica adquirente" quando as informações prestadas pelo vendedor
“estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada
a realizar a compra de ouro”.
Na
prática, um vendedor em posse de ouro extraído de áreas proibidas pode
apresentar uma declaração de origem na qual afirma que o minério veio de uma
área autorizada pela Agência Nacional de Mineração para a emissão da nota
fiscal – até hoje em papel – pela instituição que compra o ouro. E, pronto. É
simples assim.
A
lei já está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) e pode vir a
ser revista pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, no
momento, trabalha para retirar milhares de invasores da Terra Indígena Yanomami
e estancar o garimpo ilegal no território.
2)
Regime de permissão de lavra garimpeira
Segundo
a Constituição, toda a riqueza mineral no país pertence à União, que pode
autorizar a exploração por grandes mineradoras ou por garimpeiros.
As
grandes mineradoras usam métodos industriais e possuem uma série de obrigações.
Já os garimpeiros ou suas cooperativas obtém autorização para extrair minério
do subsolo pelo regime de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG).
A
PLG foi pensada inicialmente para permitir a garimpagem “artesanal”, com
métodos rudimentares, aparelhos manuais e máquinas simples – nada mais distante
da realidade atual. O garimpo de ouro na Amazônia hoje se vale de maquinário
pesado, com balsas, dragas, escavadeiras hidráulicas e pás-carregadeiras, que
custam milhões de reais, além de uma logística de alto custo financeiro e
enorme impacto ambiental.
O
grande problema está no fato de que, pelo regramento atual, quem requisita uma
PLG à Agência Nacional de Mineração para explorar determinada área não é
obrigado a apresentar uma pesquisa prévia.
“Na
prática, isso cria uma situação que torna impossível o controle e a
fiscalização”, diz Sergio Leitão, presidente do Instituto Escolhas, que
produziu o estudo “Raio X do ouro: mais de 200 podem ser ilegais”.
“Sem
a pesquisa prévia, não há como saber qual o volume de ouro na área determinada
em que está sendo feito o garimpo. Se eu sou uma mineradora, pela legislação, o
primeiro passo é fazer um requerimento de pesquisa e depois um requerimento
para explorar aquilo que eu encontrei. O garimpo não faz nada disso”, explica
Leitão.
Essa
ausência de obrigação de apresentar uma pesquisa prévia acabou criando um
incentivo para a opção pelas PLGs. Hoje, segundo Leitão, a área do total de
lavras garimpeiras na Amazônia para a exploração de ouro já é maior que toda a
área de mineração industrial no país.
Sem
pesquisa prévia e a devida fiscalização da ANM (mais abaixo), também é
extremamente fácil usar PLGs como “laranjas” para garimpos ilegais.
“Vamos
dar um exemplo”, sugere Leitão: “Eu abro uma PLG na Avenida Faria Lima, onde
não tem ouro nenhum, e, como eu não fiz pesquisa, eu nem precisei mostrar para
o governo que lá não tem ouro. Daí, eu tiro o ouro de outro lugar, de um lugar
proibido, de uma terra indígena. Mas depois, eu posso apenas dizer que tirei da
minha lavra na Faria Lima”.
Segundo
o MPF, da produção de 30,4 toneladas de ouro no Pará, no período de 2019 a
2020, ao menos cerca de 17,7 toneladas (58%) foram extraídas com falsa
indicação de origem, “seja pelas evidências de extrapolação dos limites
autorizados para a lavra pela ANM, seja pela indicação de áreas de floresta
intacta ou sem título de lavra vigente como origem do ouro”.
Os
dados são fruto de uma investigação do MPF na região dos municípios de
Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, no sudoeste do Pará, onde fica
localizada a Terra Indígena Munduruku, que, à semelhança do que ocorre na Terra
Indígena Yanomami, sofre com reiteradas invasões e ataques de garimpeiros
armados.
Segundo
o "Boletim do Ouro 2021-2022", estudo realizado por pesquisadores da
UFMG, no Pará, a cada 10 PLGs registradas na CFEM (Compensação Financeira pela
Exploração Mineral, a contrapartida financeira paga pela utilização econômica
dos recursos minerais), sete tinham indícios de irregularidades.
Para
o Instituto Escolhas, é necessário exigir dos garimpos:
• Pesquisa mineral prévia
• Planos de aproveitamento econômico
• Licenciamento ambiental rígido
• Contratos e controles trabalhistas
“As
permissões dadas a pessoas físicas também devem ser limitadas em número, pois
hoje uma única pessoa pode ter inúmeras permissões, somando enormes áreas de
extração”, afirma o Instituto.
3)
Nota fiscal
Depois
que o ouro é extraído de uma lavra garimpeira – legal ou ilegal – ele só
poderia, em tese, ser vendido a algumas instituições autorizadas pelo Banco
Central, as distribuidoras de títulos e valores mobiliários (DTVMs).
Nesta
primeira compra, antes da nova exigência da Receita, era produzida uma nota
fiscal em papel, o que inviabilizava a fiscalização em tempo real pelos órgãos
do Estado.
Para
dar uma dimensão da dificuldade de fiscalizar notas fiscais em papel: em uma
investigação de um esquema criminoso no posto de compra de uma DTVM em
Santarém, no Pará, o MPF e a Polícia Federal tiveram que digitalizar uma a uma
as notas de mais de 4,6 mil transações realizadas entre 2015 e 2018 a fim de
construir um banco de dados digital e prosseguir com a apuração.
Um
pesquisador com conhecimento da área afirma que a adoção da nota fiscal
eletrônica precisa vir acompanhada da extinção do princípio da boa-fé, mas que
ela pelo menos permitirá um acompanhamento da PF e da Receita Federal em tempo
real.
4)
Falta de cruzamento de informações
Outro
problema apontado por especialistas consultados pela reportagem está na
ausência de cruzamento de dados e informações pelos órgãos de controle.
Atualmente,
um garimpeiro ou cooperativa precisa produzir anualmente um relatório de lavra
com todas as informações de produção e de venda. Já as DTVMs são obrigadas a
fazer o recolhimento da CFEM, registrando a quantidade de ouro comprada, a
identidade dos compradores e as permissões de lavra que, em teoria, atestam a
legitimidade da extração do minério.
Acontece
que a Agência Nacional de Mineração (ANM) não cruza essas duas bases de dados,
dificultando o controle e a fiscalização. Assim, um garimpeiro pode alegar que
produziu 10 kg de ouro, enquanto a DTVM pode registrar que comprou deste mesmo
garimpeiro 100 kg.
Segundo
Leitão, do Instituto Escolhas, é preciso que haja uma junção de esforços da
Agência Nacional de Mineração, do Banco Central, da Comissão de Valores
Mobiliários e do Ibama para, assim, instituir-se um controle hoje inexistente
da cadeia do ouro. Ele diz que algumas informações cruciais deveriam ser
cruzadas, como:
1. Quem solicitou a PLG
2. Qual a capacidade econômica do
solicitante para que, depois da exploração, seja feita a recuperação ambiental
da área
3. Se o solicitante tem ficha limpa
4. Qual o tamanho da área requerida – e se
há sobreposição com áreas protegidas, onde o garimpo é proibido.
5)
Ausência de fiscalização
Quem
deveria fiscalizar as lavras garimpeiras e os formulários de compra de ouro
armazenados pelas DTVMs (aqueles em papel) é a Agência Nacional de Mineração.
Em
um documento entregue ao ministro Gilmar Mendes, relator de uma ação no STF que
questiona as regras atuais de comercialização de ouro, o diretor-geral da ANM
afirma que a agência não dispõe dos recursos para fazer a verificação dos
formulários das DTVMs.
"Tal
ação exigiria grande contingente de fiscais, algo impossível em um cenário de
redução de quase 50% da força de trabalho da agência nos últimos dez
anos", diz o documento obtido pelo Jornal Nacional. O diretor-geral da
ANM, Mauro Sousa, afirmou ainda que conta com apenas cinco funcionários para
fiscalizar a arrecadação dos royalties da mineração que, só no ano passado,
renderam mais de R$ 7 bilhões ao país.
A
ausência de fiscalização também levou à proliferação de pequenas joalherias e
estabelecimentos que em lugares como Boa Vista, em Roraima, e Itaituba, no
Pará, compram o ouro diretamente de garimpeiros ao arrepio da lei – lembrando
que apenas DTVMs autorizadas pelo Banco Central podem fazer a primeira compra
de ouro proveniente de garimpos, conforme a legislação.
O
estudo “Raio X do Ouro”, do Instituto Escolhas, revelou que entre 2015 e 2020,
o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade – ou
seja, quase metade do ouro produzido no país tem origem potencialmente ilícita.
Um terço deste volume foi comercializado por apenas cinco DTVMs, algumas delas
já são alvo de ações judiciais do MPF.
Em
2019, o MPF recomendou em uma ação cível que o Banco Central proibisse uma
DTVM, denunciada por comprar e vender ouro extraído de forma ilegal, de
realizar atividades relacionadas à comercialização do ouro até que a empresa
promovesse ressarcimento integral e compensação pelos danos ambientais.
O
g1 questionou o Banco Central sobre a abertura de processos administrativos e
punições aplicadas contra DTVMs. Em nota, o BC afirmou que “por questão de
sigilo, não comenta sobre instituições específicas, bem como acerca de
eventuais ações realizadas, em curso ou planejadas de fiscalização”.
Fiscais do Ibama são recebidos a tiros
por garimpeiros ilegais na Terra Yanomami. Por Rubens Valente
Garimpeiros
e “seguranças” que atuam ilegalmente na Terra Indígena Yanomami atacaram a
tiros equipes da fiscalização do Ibama e de policiais rodoviários federais que
realizam a operação de retirada dos invasores, em Roraima. Houve dois episódios
do gênero neste mês: um no dia 14 de março e outro nesta terça-feira (28).
Não
houve feridos entre os servidores públicos e garimpeiros; uma bala atingiu um
dos helicópteros que estava pousado. Contudo, o acúmulo dos casos levou os
fiscais do Ibama a alertar que “a falta de controle do espaço aéreo e a livre
atuação de aeronaves clandestinas dentro da terra indígena Yanomami estão
comprometendo a efetividade e aumentando os riscos das ações realizadas”.
O
Ibama tem registrado avanços positivos com o bloqueio que realizou em 20 de
fevereiro último, com apoio da Funai e da Força Nacional, no curso do rio
Uraricoera, um dos mais importantes da terra indígena. Os fiscais estenderam um
cabo de aço e montaram uma base. Isso bloqueou o abastecimento fluvial dos
garimpos, com registro de uma queda acentuada na atividade garimpeira na
região. O problema, contudo, conforme apurou a Agência Pública, é que os
garimpeiros migraram a logística do meio fluvial para o aéreo.
O
primeiro ataque armado ocorrido em março foi na região de Waikás. Procurada, a
assessoria de comunicação do Ibama confirmou à Pública: “Em 14 de março,
sobrevôo realizado por equipe de fiscalização resultou na identificação de
atividade ilegal de garimpo na margem direita do Rio Uraricoera, na região de
Waikás. No momento em que os agentes ambientais chegaram no local houve troca
de tiros com criminosos que faziam a segurança do garimpo. A maior parte do
grupo conseguiu fugir. Dois garimpeiros desarmados, que operavam motores, foram
detidos”.
O
segundo ataque, na última terça-feira, ocorreu contra equipes do GEF (Grupo
Especial de Fiscalização) do Ibama e do GRR (Grupo de Resposta Rápida) da PRF
(Polícia Rodoviária Federal) que foram, em dois helicópteros, a um garimpo
localizado na região do rio Couto de Magalhães perto de uma pista de pouso
clandestina conhecida como “Rangel”. A ação de fiscalização foi cumprida por
três servidores do Ibama e cinco da PRF, além de seis tripulantes. O garimpo
estava “em pleno funcionamento” e “vários garimpeiros conseguiram se evadir
para a mata” com a chegada dos fiscais. Nesse momento houve os disparos.
O
ato foi qualificado como “tentativa de homicídio contra os agentes e a
tripulação das aeronaves”. Foram realizados, dizem os fiscais, “diversos
disparos de arma de fogo de calibre não identificado contra os operadores do
GEF e do GRR e contra a tripulação das aeronaves”. Um dos tiros atingiu a
frente do helicóptero do Ibama número 05.
Os
fiscais apreenderam cinco cartuchos não deflagrados de munição calibre .380,
seis telefones celulares, 84 gramas de mercúrio, 17 gramas de ouro e 29 gramas
“compatíveis com maconha”. Foram destruídos 29 acampamentos e estruturas para
suporte logístico da atividade ilegal”, 550 litros de óleo diesel, oito motores
estacionários e dois motores geradores de energia elétrica.
A
questão aérea continua um problema no combate ao garimpo. Em fevereiro, o
Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça autorizaram que um “corredor
aéreo”, que os militares chamaram de “humanitário”, permanecesse aberto até o
próximo dia 6 de abril em tese para facilitar a saída “voluntária” dos
garimpeiros. As aeronaves autorizadas previamente devem retirar do território
suprimentos e pessoas, e não colaborar para a manutenção dos garimpos. As duas
pastas ainda não tornaram público se, a partir do dia 7, haverá alteração na
ação do governo a respeito do controle do espaço aéreo.
Um
vídeo que circula entre garimpeiros de Roraima mostra um avião da FAB (Força
Aérea Brasileira) supostamente perseguindo um avião usado no garimpo, ou seja,
orientando a aeronave a não prosseguir com a viagem. Procurada pela Pública
para comentar as imagens, a FAB disse que “não foi possível confirmar o local
onde foram gravadas”. Mas também não negou que esteja realizando interceptações
aéreas.
“De
acordo com o decreto 11.405, de 30 de janeiro de 2023, que trata sobre a Zona
de Identificação de Defesa Aérea (ZIDA) na região da Terra Indígena Yanomami,
compete ao Comando da Aeronáutica a adoção de medidas do controle do espaço
aéreo contra todos os tipos de tráfegos aéreos suspeitos de ilícitos. O mesmo
decreto especifica que compete aos agentes da Polícia Federal, do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e dos demais
órgãos e entidades da administração pública federal a adoção de medidas, como a
interdição de aeronaves e de equipamentos de apoio às atividades ilícitas.”
A
FAB afirmou ainda: “As ações de controle do espaço aéreo adotadas pela FAB na
região resultaram em significativa redução na atividade aérea nas áreas
indígenas. Além disso, dados de inteligência produzidos pela FAB são
constantemente compartilhados com as demais agências envolvidas, inclusive os
referentes aos tráfegos ilícitos, propiciando operações de combate às
atividades ilegais. Para isso, a FAB emprega aviões E-99 e R-99 pertencentes à
Aviação de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR), além de aeronaves
A-29 da Aviação de Caça”.
Fonte:
g1/Agencia Pública
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