Como foi a
Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura em Portugal
Já
passava da meia-noite do dia 25 de abril de 1974 quando a canção Grândola,
Vila Morena, do cantor e compositor português Zeca Afonso, foi transmitida
pela Rádio Renascença.
Proibida
pela ditadura que governava o país por sua alusão ao comunismo, era o sinal que
civis e militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) aguardavam para iniciar
o levante que colocaria fim a 48 anos de ditadura fascista e a 13 anos de
guerras coloniais em Portugal, quase sem derramamento de sangue.
Começava
a Revolução dos Cravos — chamada dessa forma, pois a população distribuía
cravos vermelhos a vários soldados dissidentes, que os enfiavam nos canos de
suas armas.
O
levante, rápido e pacífico, foi orquestrado por cerca de 200 capitães e majores
e encerrou um dos regimes autoritários mais longos do século 20, em sua grande
parte encabeçado pelo ditador António de Oliveira Salazar, de inspiração
fascista.
Na
época, Portugal passava por uma grave crise econômica e enfrentava guerras de
independência em suas colônias na África.
O
salazarismo também perdia força desde a morte de Salazar, em 1970, dois anos
depois de ser afastado do poder após sofrer um AVC — sendo substituído pelo
jurista Marcelo Caetano.
Como
Portugal recusava-se a aceitar a independência de suas colônias, surgiram
grupos guerrilheiros em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola.
A
contragosto, as forças armadas portuguesas foram enviadas ao continente
africano e obrigadas a combatê-los. Os conflitos se estenderam por 13 anos e
foram muito sangrentos. Estima-se que 10 mil soldados portugueses e 45 mil
civis morreram.
Para
se ter uma ideia, durante o período, quase metade do orçamento de Portugal
passou a ser destinado ao setor militar; a imensa maioria das famílias possuíam
parentes enviados às guerras coloniais.
A
crise econômica e os desgastes nas guerras coloniais começaram, então, a gerar
grande insatisfação nas forças armadas e na população, levando ao aparecimento
de movimentos contra a ditadura.
Além
disso, como no Brasil, partidos e movimentos políticos eram proibidos, e
diversos líderes oposicionistas estavam na prisão ou no exílio.
A
ideia de organizar o levante partiu dos oficiais Otelo Saraiva de Carvalho e
Vasco Lourenço, enquanto trocavam um pneu furado.
"Quando
retornávamos de uma de nossas primeiras reuniões, tivemos um pneu furado e o
trocamos. Eram duas da madrugada, mais ou menos, quando disse a Otelo que não
íamos solucionar nada com requerimentos e papéis, que devíamos dar um golpe de
Estado e convocar eleições. Ele me olhou e disse: 'Mas você também pensa assim?
Esse é meu sonho!'", contou Lourenço em entrevista à agência de notícias
EFE.
Curiosamente,
o MFA foi autorizado pelo governo de Marcelo Caetano, o que os permitiu atuar
dentro de certa legalidade.
"Essa
estrutura permitiu nos organizar e reunir, não dissemos abertamente que íamos
conspirar contra o governo e dar um golpe de Estado, embora no fundo o
propósito era derrubar o fascismo e a ditadura", explicou Lourenço.
Com
a queda do regime militar, as liberdades civis e democráticas foram retomadas e
outros direitos conquistados, como o de votar.
Os
países africanos passaram por processos de independência e uma nova
Constituição entrou em vigor em Portugal.
A
Revolução dos Cravos também teve grande impacto na cultura do país, com a
derrocada do moralismo rígido da ditadura.
Afastado
do poder, Marcelo Caetano foi enviado já no dia seguinte para a ilha da
Madeira. Depois viveu no Brasil e morreu, em outubro de 1980, exilado no Rio de
Janeiro.
·
Polêmica
O
presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), havia sido convidado para
fazer um discurso no Parlamento português, a Assembleia da República, em evento
comemorativo pelo aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos.
A
participação do petista chegou a ser anunciada pelo ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho, em visita ao Brasil em fevereiro
deste ano.
"É
a 1ª vez que um chefe de Estado estrangeiro faz um discurso nesta data",
disse Cravinho em entrevista a jornalistas em Brasília.
Mas
partidos de oposição, como PSD, IL e Chega, se manifestaram contra o convite e,
após uma reunião entre as lideranças políticas portuguesas, chegou-se a um
consenso de que Lula discursaria, mas numa sessão solene de boas-vindas, à
parte das comemorações da Revolução dos Cravos.
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Confira a letra de Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso.
Grândola,
Vila Morena
Terra
da fraternidade
O
povo é quem mais ordena
Dentro
de ti, ó cidade
Dentro
de ti, ó cidade
O
povo é quem mais ordena
Terra
da fraternidade
Grândola,
Vila Morena
Em
cada esquina um amigo
Em
cada rosto igualdade
Grândola,
Vila Morena
Terra
da fraternidade
Terra
da fraternidade
Grândola,
Vila Morena
Em
cada rosto igualdade
O
povo é quem mais ordena
À
sombra duma azinheira
Que
já não sabia a idade
Jurei
ter por companheira
Grândola
a tua vontade
Grândola
a tua vontade
Jurei
ter por companheira
À
sombra duma azinheira
Que
já não sabia a idade
Ø
Acidente,
guerras e farsas: a derrocada de ditador português que antecedeu Revolução dos
Cravos
Jornais
adulterados, entrevistas inventadas e reuniões de mentirinha.
Foi
assim que o entorno do ditador português António Salazar (1889-1970) criou
cenários e situações para esconder, por dois anos, que ele não mais comandava
Portugal, depois de cair de uma cadeira e sofrer um acidente vascular cerebral
(AVC) em 1968.
Por
preocupações com o estado de saúde de Salazar, o jurista Marcelo Caetano
assumiu a liderança do país, materializada no cargo de presidente do Conselho
de Ministros do regime.
Esse
é um dos episódios da trajetória de ascensão e derrocada do ditador contados na
biografia A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu
duas vezes (Todavia, 2023), do jornalista italiano Marco Ferrari.
Segundo
o autor, Salazar morreu sem saber que tinha deixado o poder: sua cúpula
retirava dos jornais textos que falavam de Marcelo Caetano como presidente do
conselho e reuniões com personalidades importantes do país eram marcadas como
se ele ainda fosse o presidente.
A
partir de uma longa pesquisa e de testemunhos de presos políticos do regime, o
livro de Ferrari traz não apenas curiosidades intrigantes como essa, mas também
explica em detalhes os processos que culminaram na Revolução dos Cravos em
1974, que deu fim ao regime ditatorial do Estado Novo português.
É
em meio às comemorações dos 49 anos da revolução que o presidente do Brasil,
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), viajou para Portugal esta semana. Inicialmente,
havia o plano de que Lula discursasse em uma cerimônia relativa à revolução no
parlamento português, segundo havia anunciado o ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho.
Mas
a ideia foi cancelada depois que parlamentares portugueses de oposição
criticaram que um líder estrangeiro assumisse tamanho protagonismo e que a
escolha não tenha sido uma iniciativa do legislativo, e sim anunciada por um
ministro.
Para
entender a revolução, como tudo na história, é preciso entender o contexto — e,
no caso de Portugal, um dos elementos mais importantes daquele cenário era a
manutenção de colônias em lugares como Angola, Moçambique, Timor e Macau.
"Salazar
arrastou para a sepultura o último império marítimo ocidental que Marcelo
Caetano já não conseguia manter unido. O ex-ditador nunca quis libertar
Portugal do seu sonho de grandeza ultramarina, levando a um conflito brutal
entre a pátria-mãe e as colônias que custou milhares de mortes", explicou
Ferrari em entrevista à BBC News Brasil por e-mail.
Foi
com este ideal de um Portugal tradicional e grandioso que Salazar comandou a
mãos de ferro o país por 36 anos (1932-1968) — uma das mais longas ditaduras do
século 20.
Antes
deste período do Estado Novo, Salazar foi um jovem formado em direito com
honrarias e que logo se tornou professor em Coimbra. Ele também já era ativo na
comunidade católica e na polítical local, mas só entraria para a política
nacional em 1928, quando foi nomeado por António de Fragoso Carmona, então
presidente, como ministro das Finanças.
Em
1932, Salazar assumiu como primeiro-ministro, estabelecendo um sistema político
autoritário conhecido como Estado Novo.
"Ele
tinha ido ao seminário e achava que Portugal tinha a missão de evangelizar o
mundo novo e a África. Mas também era um provinciano, um homem do campo que
detestava viajar e se locomover", conta Ferrari.
"Por
isso, nunca chegou a conhecer seu imenso império. Como um homem da igreja que
se dedica a Deus, ele se dedicou à sua pátria pensando que sem ele, tudo
poderia ruir. E nisso estava certo."
Embora
reproduzisse alguns preceitos e formas de organização do fascismo de Benito
Mussolini, foi do general Francisco Franco, ditador da Espanha, de quem
Portugal mais se aproximou no período.
O
autor do livro lembra que houve também uma aproximação do regime salazarista
dos regimes autoritários no Brasil — primeiro o Estado Novo (1937-1945) e
depois a ditadura civil-militar (1964-1985).
"[O
Estado Novo] Foi claramente inspirado na ditadura de Salazar em Portugal,
adotando inclusive a mesma denominação."
"Nesse
contexto, sobretudo na era Vargas, o Brasil funcionava como uma poderosa
plataforma de propaganda pró-Salazar e sua política colonial."
"Houve
também relações diretas entre a PIDE [polícia política portuguesa], substituída
em 1969 pela Direção-Geral de Segurança, e o Departamento Brasileiro de Ordem
Política e Social, ativo de 1924 a 1983. Marcelo Caetano estreitou laços com a
ditadura brasileira durante sua visita oficial em 1972."
·
Revolução nascida entre militares
O
Brasil viveu ainda outro tipo de reflexo da ditadura portuguesa: Ferrari lembra
que as décadas de autoritarismo fizeram milhares de portugueses se exilarem em
países como o nosso, a França e a Itália, inclusive jovens que decidiram
escapar do serviço militar obrigatório.
"O
governo viu-se obrigado a ampliar o serviço militar obrigatório para quatro
anos. Muitos jovens foram para o exilio para não morrer na África", diz,
referindo-se à alta demanda por soldados devido a tantos conflitos nas
colônias.
"Os
que foram obrigados a alistar-se a contragosto vieram de uma vida universitária
em que aprenderam os princípios antifascistas e também eram contaminados pelo
forte sopro de protesto que prevalecia no resto da Europa", destaca o
jornalista.
"Assim,
Portugal colocou o seu exército nas mãos de um número crescente de adversários.
Com 220 mil efetivos, o Exército acabou se tornando o ponto de convergência
política dos problemas do país. Diante da crescente derrota na Guiné,
considerada o Vietnã português, no final de 1973 um grupo de oficiais redigiu
um documento criticando a ação militar. A partir daí nasceu o Movimento das
Forças Armadas que organizou a Revolução dos Cravos."
Ou
seja, a Revolução dos Cravos não foi um movimento predominantemente civil em
sua origem.
"Não
foi uma revolução popular porque 40 anos de ditadura mataram todos os
dissidentes e enviaram todos os líderes políticos para a prisão ou para o
exterior. Os capitães do Movimento das Forças Armadas eram jovens conscientes
do incipiente fim do salazarismo."
O
dia da revolução em si não foi sangrento: o golpe militar foi seguido por
manifestações favoráveis da sociedade civil, abrindo caminho para a democracia.
Ela foi batizada como uma revolução "dos cravos" pois, segundo a
explicação predominante, a população distribuía cravos vermelhos a militares
dissidentes, que por sua vez colocavam as flores em suas armas.
Rapidamente,
entre 1974 e 1975, as colônias portuguesas de Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo
Verde, São Tomé e Príncipe e Angola conquistaram sua independência. Portugal
também se retirou do Timor Português, hoje Timor Leste, que depois foi invadido
pela Indonésia.
Já
o território de Macau foi entregue à China apenas em 1999, encerrando
definitivamente o período imperialista colonial de Portugal.
Em
1982, um governo civil foi formalmente estabelecido em Portugal.
O
jornalista italiano autor de A incrível história de António Salazar, o
ditador que morreu duas vezes conta que começou a se interessar por
Portugal ao conhecer um exilado português vivendo na Itália.
"Tive
a sorte de chegar a Lisboa pouco depois da Revolução dos Cravos, num ambiente
que oscilava entre o entusiasmo e a surpresa, a alegria e a inquietação, típica
das democracias recém-nascidas. Mas para além de efervescência, parecia que uma
sombra inquietante reinava sobre Lisboa, a de António Salazar."
Essa
viagem virou um livro, Alla rivoluzione sulla due cavalli, e também
um filme de mesmo nome. As obras acompanham a jornada do italiano e de um amigo
até Portugal assim que se soube da revolução.
Ferrari
aponta para mudanças mais profundas que começaram após aquela data.
"O
dia 25 de abril marca o início da liberdade mas também a entrada de Portugal na
Europa, país que esteve isolado durante o salazarismo, também devido à presença
da barreira franquista [a presença e aliança com Franco]. Esses valores são
essenciais para compreender Portugal hoje, um país que não abdica da sua alma
progressista, um país que casa com a modernidade sem renunciar à
tradição."
Entretanto,
as marcas do passado ditatorial não foram totalmente tratadas, segundo o
jornalista.
"Houve
julgamentos, mas eles diziam respeito principalmente aos agentes da PIDE, a
polícia política. Alguns ministros [do regime] ou altos executivos terminaram
seus dias no Brasil em completo anonimato, assim como o último representante do
regime, Marcelo Caetano, que exilou-se no Rio de Janeiro, onde foi protegido
pela ditadura e onde morreu em 1980", relata.
Fonte:
BBC News Brasil
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