quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Por que Austrália estuda proibir propaganda de bets

Na Austrália, país com mais apostas per capita do mundo, a crescente preocupação com os impactos desse mercado na população local levou o Parlamento a iniciar um inquérito bipartidário que pode proibir publicidades voltadas a jogos de azar e sites de apostas.

A investigação apontou que existem "poucas salvaguardas" para proteger aqueles que lutam contra o vício e recomendou 31 reformas para evitar "preparar" uma nova geração de crianças para jogar, começando com uma proibição gradual de três anos da publicidade.

Agora, a pressão está aumentando sobre o primeiro-ministro Anthony Albanese - tanto externamente quanto de dentro de seu próprio partido - para agir. Ao mesmo tempo, pesquisas mostram que a maioria da população apoia a mudança.

O governo, no entanto, sinalizou que pode optar por um teto para limitar a publicidade, em vez de proibi-la totalmente.

Segundo as autoridades australianas, a receita de anúncios de jogos de azar desempenha um papel importante no sustento das emissoras abertas do país. O governo também afirma que as empresas de apostas temem que uma proibição poderia atrair os consumidores para mercados no exterior.

Fazer isso resultaria em enormes perdas fiscais nas plataformas de apostas australianas que atualmente financiam "serviços vitais", diz o órgão máximo que representa a indústria.

O debate gerou acusações de que interesses corporativos estão atrapalhando a reforma. Ele também destacou os vínculos profundamente enraizados entre esporte, jogos de azar e entretenimento na Austrália.

No Brasil, o Ministério da Fazenda finaliza atualmente a regulamentação do mercado de apostas online. A lei que estabeleceu os limites para as chamadas 'bets' foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro deste ano.

Outro projeto de lei, que prevê o funcionamento de bingos e de cassinos no país e regulariza os jogos de azar, como o jogo do bicho, está em análise no Senado. Segundo o relator, a regulação é um tema inadiável dado que a atividade hoje funciona de forma clandestina e permite a atuação do crime organizado.

Especialistas, contudo, veem com cautela o processo de regulamentação dos jogos de azar no país. Clínicas e organizações que atendem usuários dependentes temem pela saúde mental e financeira dos apostadores.

Há também preocupação em relação ao desafio da regulação das publicidades de apostas e jogos de azar.

Após a sanção presidencial à regulamentação das 'bets', o Conar (Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária) publicou um anexo que determina as regras para as mensagens publicitárias desse tipo. Desde então, empresas do ramo já receberam ordens para alteração ou suspensão de anúncios.

O tema ganhou ainda mais projeção no país depois que diversos influenciadores passaram a ser investigados por divulgar links "viciados" e estimular apostas no "Jogo do Tigrinho", considerado ilegal no país.

Investigações apontam que esses jogos de azar na internet estão também pagando influenciadores mirins brasileiros para divulgar as casas de apostas para crianças e adolescentes no Instagram.

•        'Boom' das apostas

Na Austrália, as apostas ocupam um espaço único na cultura local.

Na década de 1980, o país se tornou o primeiro a desregulamentar sua indústria de jogos de azar, possibilitando que máquinas caça-níqueis — antes permitidas apenas dentro de cassinos — se expandissem para bares e clubes licenciados.

Hoje, a Austrália abriga cerca de 0,33% da população mundial, mas um quinto de todos os "pokies" — o termo coloquial usado para as máquinas.

As últimas duas décadas também viram uma explosão na popularidade das apostas online, principalmente quando se trata de esporte. Estimativas mostram que os australianos estão gastando aproximadamente 25 bilhões de dólares australianos (R$ 93 bilhões) em apostas legais a cada ano — com 38% da população jogando semanalmente.

Especialistas argumentam que o marketing sofisticado ajudou nesse boom, enquanto acordos de patrocínio, parcerias e propinas dados a órgãos esportivos predominantes ajudaram a legitimar a indústria.

Amy (nome fictício) é uma das dezenas de pessoas que se apresentaram para testemunhar no inquérito parlamentar bipartidário sobre os impactos das apostas.

Ela e seu irmão, Sam, cresceram em uma comunidade onde apostar era sinônimo de esporte.

Olhando para trás, ela culpa essa normalização do jogo - e a maneira como ele se infiltrou em sua casa e se incorporou às interações sociais - pelo vício de seu irmão e pelo sofrimento que ele enfrentou antes de tirar a própria vida.

"Isso o destruiu física e emocionalmente", diz ela. "Tentamos de tudo. Éramos uma família unida, mas obviamente não sabíamos o quão ruim era - isso o esmagou."

Sean (nome fictício) joga legalmente, e muitas vezes obsessivamente, há mais de 18 anos. Um amigo o apresentou às apostas esportivas quando adolescente, e a partir daí as coisas foram se tornando uma bola de neve.

"Alguns dias eu não conseguia dormir a menos que soubesse que tinha apostado. Chegou ao ponto em que eu estava apostando em esportes que nunca tinha visto em países dos quais nunca tinha ouvido falar", disse ele à BBC.

Agora com 36 anos e buscando ajuda de patrocinadores, ele não gosta de pensar no que parece ser uma vida inteira de perdas - mas estima um rombo de cerca de 2 milhões de dólares australianos (R$ 7,4 milhões) em sua conta bancária.

Ele diz que os rompimentos de relacionamentos e anos de isolamento são mais difíceis de quantificar. "Se eu nunca tivesse apostado, estaria casado e com filhos agora."

Um estudo acadêmico apontou que, assim como Sean, 90% dos adultos australianos e cerca de três quartos das crianças de oito a 16 anos veem as apostas como uma "parte normal do esporte".

Defensores das reformas como Martin Thomas argumentam que isso é uma evidência de que a prática "se infiltrou em todos os cantos da sociedade". "Nossos filhos sabem tanto sobre as probabilidades de um jogo e apostas múltiplas quanto sobre seus jogadores favoritos", diz ele à BBC.

Na opinião de Amy, além de tornar mais difícil para pessoas de todas as idades escaparem do jogo, essa normalização criou uma narrativa perigosa: que quaisquer impactos adversos - como dívida ou vício - são culpa do indivíduo, não do sistema.

"Você vai assistir a um evento esportivo e vê um monte de publicidade de apostas e pensa: 'Ah, eu sou o problema. Porque todo mundo faz isso'", diz. "Foi o que meu irmão pensou."

Ela diz querer ver o tema reformulado para ser encarado como um grande problema de saúde pública, em vez de uma atividade recreativa, já que pesquisas mostram que quase metade dos que se envolvem na prática correm o risco de sofrer, ou já sofrem, os danos associados, como dificuldades financeiras, violência familiar, depressão e suicídio.

Pesquisas sugerem que a proibição da publicidade pode ser o primeiro passo para atingir esse objetivo. E os defensores da reforma apontam que há um caminho bem trilhado que o governo pode seguir.

Thomas cita a decisão da Austrália de proibir anúncios de tabaco em 1992 - que foi creditada pela redução drástica das taxas de tabagismo - como prova do que é possível.

E apesar de o primeiro-ministro Anthony Albanese descrever a "saturação da publicidade de jogos de azar" como "insustentável", ele ainda não se comprometeu com um curso de ação.

Ao ser questionado sobre a questão, apontou para outras iniciativas de seu governo - como proibir o uso de cartão de crédito em apostas online e criar um registro para as pessoas se excluírem de sites de apostas.

Em algumas ocasiões, o premiê também classificou as apostas como um problema antigo.

“[Isto] tem sido um problema na nossa sociedade, eu suspeito, desde que o homem e a mulher caminhavam e faziam apostas sobre quem montaria o cavalo mais rápido ou quem correria de pedra em pedra, provavelmente antes de existirem edifícios”, disse ele ao Parlamento na semana passada.

•        'A casa de apostas sempre ganha'

O órgão máximo que representa as empresas de apostas da Austrália descreveu uma proibição geral como "um passo longe demais" e apoiou o teto proposto pelo governo — que limitaria os anúncios online e durante a programação geral da TV.

"Ao fazer isso, as expectativas da comunidade de ver menos publicidade seriam atendidas, ao mesmo tempo em que manteria o apoio crucial aos códigos esportivos e às emissoras locais", disse o CEO da Responsible Wagering Australia (Apostas Responsáveis Austrália, em tradução livre), Kai Cantwell.

Mas Andrew Hughes, professor de Marketing na Universidade Nacional da Austrália, coloca dúvidas sobre o quão crucial é esse apoio financeiro - já que os dados da Nielsen mostram que a maior parte do dinheiro publicitário que as emissoras do país recebem vem de uma série de outros setores, e não das plataformas de apostas.

E senadores independentes, como David Pocock, criticaram a lógica de usar dinheiro de apostas para sustentar a mídia.

"O jornalismo é incrivelmente importante, mas não deve depender de produtos de propaganda que sabemos que são prejudiciais e que causam dependência, problemas pessoais, desestruturação familiar e, em alguns casos, suicídio", disse ele à BBC.

"O governo deve ter a imaginação de procurar outras maneiras de preencher essa lacuna."

Pocock é um dos vários senadores a questionar publicamente se as empresas de apostas e as indústrias que elas financiam estão interferindo nas decisões políticas - citando seus extensos esforços de lobby e histórico de grandes doações políticas.

Na semana passada, ele se juntou a 20 parlamentares de todo o espectro político para assinar uma carta aberta apoiando a proibição das propagandas. O documento também pedia que o partido de Albanese liberasse seus parlamentares para votar como desejem sobre a questão, sem sofrer repercussões.

Vários órgãos médicos também deram seu apoio à proibição, assim como um painel de especialistas nomeado pelo governo para investigar como reduzir as taxas de violência doméstica na Austrália, aumentando a pressão crescente que Albanese está enfrentando.

O governo já veicula avisos em anúncios de jogos de azar, lembrando as pessoas dos riscos.

Mas Sean diz que isso faz pouco para deter aqueles que estão presos na mira do vício.

"Eu sei que a casa [de apostas] sempre ganha, mas toda vez que estou pronto para dar uma chance, tudo vai pela janela", explica ele. "Começo a pensar que estou prestes a conseguir aquela vitória que vai me afastar de tudo. Aquela vitória que vai trazer tudo de volta."

Embora nada tenha sido finalizado e o gabinete de Albanese ainda esteja avaliando suas opções, para Amy, o debate em si se tornou muito "insensível" para acompanhar.

Ela não consegue compreender qual é o problema e quer respostas. "Qualquer um que entenda essa questão concordaria sem dúvida com uma proibição total de publicidade — é o que as evidências dizem", diz à BBC.

"Parece que esses lobistas são donos do governo... Estamos balançando esse produto perigoso na frente de todos e normalizando-o, e o pior cenário é o que aconteceu conosco."

"Minha família — eles nunca vão se recuperar. Não é algo do qual você se recupera."

 

Fonte: Por Hannah Ritchie, da BBC News em Sydney

 

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