quinta-feira, 29 de agosto de 2024

É ou não é greenwashing?

Antes mesmo de iniciarem as atividades de extração mineral na Amazônia, Eneva e Potássio do Brasil afirmam estar preocupadas com a crise climática e a floresta. A imagem que buscam projetar é a de empresas que patrocinam eventos culturais e ambientais em cidades da região Norte. O Festival de Parintins é o mais famoso deles. Nos relatórios para investidores e em seus sites, garantem incorporar tecnologias limpas em projetos socioambientais. Para quem perguntar, desfilam um cardápio de projetos de reflorestamento e de manutenção da qualidade do ar, do solo e da água. Mas para o povo Mura e ribeirinhos que correm o risco de ser desalojados de suas terras a realidade é bem outra.

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A palavra “greenwashing” é a primeira que surge para quem se sente ofuscado nessa pretensa responsabilidade ecológica corporativa. O termo em inglês, que poderia ser traduzido como “maquiagem verde”, ocorre quando empresas exageram ou maquiam seu comprometimento com a sustentabilidade, criando uma falsa percepção de responsabilidade ambiental ou social. Mostrar compromisso com o ambiente pode significar financiamento e apoio para os projetos, mesmo que seja necessário esconder ou mascarar os impactos negativos do avanço de atividades de exploração de minérios.

Embora não seja impossível, a prática da mineração dificilmente consegue se enquadrar na estratégia de ESG (Meio Ambiente, Social e Governança), muito em voga no discurso das corporações. Além dos riscos da atividade, a extração mineral implica se estabelecer em grandes extensões de terra, o que mesmo em proporções amazônicas significa remover povos originários e tradicionais que chegaram antes.

A Potássio do Brasil, que nega a prática de greenwashing, prevê a exploração da silvinita nas terras do povo Mura por um período de quatro anos e meio. A empresa já obteve licenças estaduais para operar em Autazes, no Amazonas. Para tanto, comprometeu-se em executar “mais de 30 programas socioeconômicos e ambientais”. Embora prometa “não desmatar um hectare sequer”, nas palavras do presidente da mineradora, Adriano Espeschit, um desses programas prevê “reflorestar uma área dez vezes maior do que essa área que nós vamos ocupar na superfície”.

A 130 quilômetros de Autazes, em Silves, mais indígenas do povo Mura sofrem a pressão de outro megaprojeto de extração mineral. A empresa Eneva realiza ações de marketing bastante visíveis desde que decidiu explorar combustível fóssil (gás natural e petróleo) no município amazonense. Em 2023, ela foi uma das patrocinadoras da Glocal Experience Amazônia, uma plataforma que promove discussões sobre sustentabilidade e meio ambiente e da Expo Amazônia Bio&TIC, maior feira de tecnologia, bioeconomia e inovação da região Norte.  Apoiou e financiou ainda a realização do Festival Folclórico de Parintins.

•        O que o greenwashing não conta

Não há bom mocismo empresarial. No caso da Potássio do Brasil, a liderança indígena Herton Mura, professor e assessor técnico da Organização de Lideranças Mura e da Resistência do Povo Mura (OLIMCV), afirma que uma das estratégias da mineradora foi uma forma tradicional de colonização, “que é dividir para conquistar”. 

“Esse foi o primeiro passo da estratégia da empresa. Ela conseguiu dividir o povo Mura da região do Baixo Madeira, em Autazes e no Careiro da Várzea. A gente tinha um movimento muito coeso  e unificado, mas tudo foi por água abaixo com a entrada da empresa, que conseguiu cooptar algumas lideranças que a gente considera como ‘chave’ nesse processo”, denunciou o líder indígena.

Herton Mura explica que a cooptação das lideranças indígenas  foi feita com propostas em dinheiro e promessas de desenvolvimento, o que se tornou um problema. Desde o ano passado, os indígenas Mura contrários ao projeto têm denunciado a prática de aliciamento por parte da empresa para que lideranças aceitem a exploração de potássio.

“A empresa disse que iria buscar alternativas de melhora, ou seja, construir escola onde não tem, coisas assim, e claro que as lideranças acabaram se iludindo com isso e aceitando essa proposta. A aldeia Soares não foi consultada”, declarou Herton Mura. “Com isso, a empresa tem a maior parte das lideranças do lado deles, que continuam afirmando que a consulta foi feita e a gente sabe que não foi. Temos um protocolo de consulta, mas reunião não é consulta.”

Há quase dez anos o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, tem entrado com ações para impedir a exploração na área da Aldeia Soares, onde fica a mina de potássio, e em Urucurituba. Os dois territórios não são demarcados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas estão em processo de estudo de delimitação pelo órgão. Em maio e em agosto, o MPF pediu urgência na apreciação pela Justiça para suspender as licenças ambientais dadas pelo Estado, favorável ao empreendimento.

•        A tática de desviar a atenção

Já a empresa Eneva nega a existência de terra indígena e do povo Mura no entorno do Campo do Azulão, em Silves, onde pretende extrair gás e petróleo. Em seus relatórios, afirma que o empreendimento está situado a cerca de 9,5 quilômetros da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uatumã. Na Terra Indígena Gavião, onde vive o cacique Jonas Mura, principal porta-voz contra as ações da Eneva, são cerca de 360 famílias impactadas pela mineração.

Luiz Afonso Rosário é ativista da organização global 350 e especialista em impactos ambientais em territórios tradicionais por derramamento de óleo, construção de plantas industriais, impactos por hidroelétricas, por plantações de eucaliptos e exploração de combustíveis fósseis. Ao associar suas marcas a eventos culturais e ecológicos, relacionou Luiz, essas empresas tentam desviar a atenção de suas práticas prejudiciais ao meio ambiente.

“É um processo muito nebuloso, se não falacioso. Mais recentemente a gente vê a Eneva patrocinando o Festival de Parintins, que tem um cunho de solidariedade aos indígenas e às raízes amazônicas, e ao mesmo tempo dentro do território, em Silves, ela nega a presença dos indígenas. Isso em conluio inclusive com o órgão ambiental e o estado do Amazonas. É um absurdo”, declarou.

O ambientalista lembra que existem graves ameaças contra o cacique Jonas Mura e outras lideranças do território, pressionadas psicológica e até fisicamente para cederem o território para a mineração. A liderança precisou ingressar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas após receber ameaças de morte.

A líder indígena Mariazinha Baré, coordenadora-executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), critica a prática das empresas de esconder os impactos negativos de suas atividades, especialmente as mineradoras. Ela argumenta que essas empresas criam falsas expectativas de resolver problemas sociais antigos, como geração de empregos e construção de escolas, para convencer a população a aceitar seus projetos.

“Essa prática se traduz em soluções falsas, não tem benefício algum. É uma grande lavagem verde, estão investindo na questão ambiental, mas com outro sentido, que nada é mais nada menos que a prática de camuflar, de mentir e de omitir informações sobre os reais impactos das atividades que uma empresa de mineração causa ao meio ambiente”, acusou Mariazinha.

•        Marketing ambiental falso

Para o pesquisador e ambientalista Carlos Durigan, muitas empresas adotam uma estratégia de marketing ambiental positiva, alinhadas com uma demanda da sociedade. Mas, na prática, ela é falsa, uma vez que faltam um controle mais firme por parte das autoridades e participação social nos processos decisórios. “Entendo que há um amadurecimento no setor produtivo global que tem levado a um engajamento a práticas sustentáveis. Mas ainda existem vários setores que preferem atuar como sempre o fizeram”, afirmou o pesquisador. Ou seja, em vez de procurarem mitigar e compensar impactos com suas atividades danosas, reduzir custos sociais e ambientais e atuar na agenda da sustentabilidade, as companhias ainda apresentam muita resistência porque essas ações demandam tempo e dinheiro.

As iniciativas de compensação que agora se apresentam como “verdes” exercem pouco impacto real diante dos estragos da mineração. A mina de Talvivaara, na Finlândia, é um caso emblemático que expõe como a mineração levou a repetidos desastres ambientais e impactou a vida de povos indígenas. Em 2012, a mina sofreu um colapso em suas instalações de armazenamento de resíduos, levando a um vazamento de ácido e metais pesados nos rios e lagos locais. O desastre  causou danos significativos ao meio ambiente e à vida aquática. Apesar disso, ela se autopromove como um exemplo de mineração sustentável.

Estudos do Centro de Defesa Ambiental de Minnesota, nos Estados Unidos, discutem como as empresas de mineração usam greenwashing para parecer ambientalmente responsáveis, a partir de críticas às alegações enganosas da indústria sobre seu papel na energia limpa e mineração responsável, apontando exemplos como as práticas controversas da mineradora Glencore.

Diversos outros estudos e relatórios têm exposto as práticas de greenwashing na indústria de mineração. Um relatório elaborado pelo London Mining Network e publicado em 2019, destaca como grandes empresas de mineração estão usando a narrativa da crise climática para justificar a expansão em áreas ambientalmente críticas, mas na realidade perpetuam práticas destrutivas.

Indo na contramão do que é apresentado nos comunicados de imprensa, relatórios anuais e em seus sites e redes sociais, onde dizem seguir rigorosos padrões para investir em tecnologias limpas e projetos socioambientais, as mineradoras que atuam no Brasil revelam um contraste entre o discurso e a prática quando o assunto envolve territórios tradicionais e unidades de conservação na Amazônia.

•        O caso da Potássio do Brasil

A Potássio do Brasil afirma manter o respeito aos povos tradicionais e ao meio ambiente, enquanto indígenas Mura dizem se sentir ameaçados e intimidados. Em um evento realizado em Manaus no fim de maio, lideranças indígenas denunciaram que são vigiadas por drones. Os que se opõem ao empreendimento pertencem à comunidade Soares (ou Lago dos Soares), reivindicada como pertencente a terras ancestrais Mura.

O empreendimento conta com o apoio e influência de diversos políticos, a começar do governador Wilson Lima (União Brasil). Foi ele quem oficializou e comemorou a liberação de licenças de instalação a obras de exploração de potássio por meio do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). Por entenderem que se trata de uma terra indígena, eles exigem que o licenciamento ambiental seja conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Além do governador do Estado, são entusiastas da mineração de potássio o prefeito de Autazes, Andreson Cavalcante (União Brasil),  o vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, o deputado estadual Sinésio Campos (PT), notório defensor de mineração em terras indígenas, e o senador do Amazonas, Plínio Valério (PSDB).

Para a liderança Herton Mura, o discurso de desenvolvimento regional também se apresenta como “outra falácia”. Sobre a questão de emprego e renda, ele questiona: “Quantos Mura são qualificados para trabalhar com mineração? Praticamente ninguém, quase ninguém, não é só os Mura. Os ribeirinhos, as pessoas da região, ninguém tem qualificação para isso”.

A preocupação é que a demanda de trabalhadores de fora da região impacte o território com prostituição, aumento de consumo de drogas, alcoolismo e superpopulação. “A única coisa que ela [Potássio do Brasil] fala é que o projeto vai ser bom, é sustentável e vai contribuir com o ambiente e com a cultura do povo indígena. Só fazem falar, não apresentam nada concreto e muito menos apresentam algo que foi construído com a participação dos povos indígenas”, denunciou. Segundo ele, a consulta livre, prévia e informada foi atropelada durante o processo.

A professora Caroline Nogueira, do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), enfatiza que o Ipaam está liberando de maneira fracionada os licenciamentos ambientais, apesar de a Funai já ter iniciado os trabalhos de delimitação na Terra Indígena Lago do Soares para fins de demarcação.

Em maio, o MPF entrou com uma ação judicial questionando essa prática, sob a suspeita de que o fracionamento visa reduzir a percepção dos impactos ambientais, o que faria com que o Ipaam fosse o único órgão responsável pelo licenciamento. Caroline Nogueira afirma que a mina, que pretende explorar a silvinita sob a terra indígena, pode causar impactos muito severos na região, o que tem levado a comunidade local a denunciar tentativas da empresa de comprar suas terras para que abandonem o local. “Aquela região vai ficar inviável de plantar, de pescar e de fazer as práticas tradicionais dos povos indígenas”, ressaltou a jurista.

•        A situação da Eneva

Em um documento intitulado Relato Integrado de 2023, a empresa Eneva destaca iniciativas de conservação de sistemas agroflorestais e restauração ecológica. Cita também compromisso com a eficiência energética responsável e segura, enfatizando o uso de energias renováveis e redução de emissões de carbono. Um desses projetos, a Floresta Viva, é feito em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social  (BNDES), banco público federal, para aplicar programas de restauração ecológica em Unidades de Conservação no Amazonas. A empresa afirma que o total investido pela parceria até 2023 foi de 5.097.573 reais.

Um dos principais acionistas da empresa, o banco BTG Pactual, detém quase 50% de participação da Eneva. Outro acionista é o Fundo Cambuhy, pertencente ao banqueiro Paulo Moreira Salles, um dos donos do Itaú Unibanco. Conforme apurado pela Amazônia Real, os investimentos no Campo de Azulão serão de 5,8 bilhões de reais. Uma parte deste valor – 1 bilhão de reais – virá de empréstimos junto ao Banco da Amazônia (Basa) com juros subsidiados pelo Fundo Constitucional do Norte (FNO) e que podem ser pagos em até 16 anos. No fim de 2023, a Eneva divulgou novos empréstimos de bancos públicos destinados a “desenvolvimento regional” com vigência de 17 anos.

A empresa afirma, em nota enviada à Amazônia Real, que o licenciamento ambiental do Campo Azulão foi precedido de audiências públicas em Silves e Japaratinga, com a participação de “mais de 1.000 pessoas nos dois encontros, com grande interação entre os presentes, de forma pacífica e clara”. E que os impactos do empreendimento foram apresentados no Estudo Ambiental (EIA/RIMA), que é público e foi divulgado nas audiências.

•        O que dizem as empresas

Procurada, a Eneva não refutou a prática de greenwashing, tampouco a confirmou, mas assegura que seguiu todas as etapas necessárias e legais determinadas pelas instituições para a obtenção das licenças ambientais. À agência, afirmou que os referidos financiamentos contratados pela companhia estão sendo integralmente destinados ao desenvolvimento do projeto Azulão 950 MW e que os investimentos em atividades socioambientais não estão previstos nos contratos dos financiamentos citados. “Esses financiamentos preveem apenas recursos destinados ao propósito de investimentos e/ou atividades de custeio e só são liberados mediante a realização das devidas comprovações de custos destas atividades”, disse a empresa.

Apesar de o empreendimento ameaçar a vida do povo Mura naquele território, a Eneva advoga o uso de ESG em suas ações, com “foco no estímulo à bioeconomia e a agroflorestas”. Os projetos sociais, justifica a empresa, são voltados ao empoderamento feminino, à educação e inserção no mercado de trabalho e ao fomento à sociobioeconomia. A formação de mão de obra local, para impulsionar a empregabilidade local, é outra promessa da Eneva para o desenvolvimento da região de Silves. O apoio da Eneva se estende a projetos em escolas públicas e parcerias com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam) para a implantação de escola técnica em Silves e desenvolvimento de cursos técnicos.

A empresa afirma que possui projetos de responsabilidade socioambiental em andamento no Amazonas, priorizando três “causas” principais: “fomento à sociobioeconomia; educação e inserção produtiva no mercado de trabalho; e empoderamento feminino”. Empresa listada na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), a Eneva conclui a nota afirmando que “a Companhia passou a integrar pela primeira vez a carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) B3. Além disso, conquistou o selo ouro no Programa Brasileiro GHG Protocol pelo terceiro ano consecutivo, e foi finalista do Platts Global Energy Awards 2023, na categoria Deal of The Year – Strategic, pelo reconhecimento às ações e inovações de empresas e indivíduos no setor de energia”.

Questionada pela reportagem da Amazônia Real sobre os conflitos com os indígenas naquela região, a Potássio do Brasil respondeu por e-mail  que o povo Mura de Autazes é composto por 37 aldeias, representado pelo Conselho Indigenista Mura (CIM), e que a organização cumpriu integralmente o Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes, Amazonas. Trincheiras: Yandé Peara Mura.

“Com 94% das aldeias representadas o projeto foi aprovado, superando o que prevê o Protocolo de Consulta Mura, que aponta para a aprovação, por meio de votação, através de quórum mínimo de 60% das aldeias. Pelo que tomamos conhecimento da ata da Assembleia Geral da Consulta, a Aldeia Soares optou em não participar da assembleia geral”, disse a empresa. A empresa, contudo, não informou que as lideranças da Aldeia Soares se retiraram do CIM em 2023 e elas não autorizam a entidade a falar pelos Mura da comunidade.

A empresa refuta de forma veemente as acusações de prática de greenwashing. “Muitos estudos e relatórios técnicos, dentro do processo de licenciamento ambiental, foram requeridos pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão licenciador do Projeto Potássio Autazes, sendo que o referido órgão analisou, em caráter antecedente à concessão das licenças, os impactos do empreendimento”, não havendo, segundo ela, “omissão por parte da Potássio do Brasil”.

 

Fonte: Por Nicoly Ambrosio, para Amazônia Real

 

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