É ou não é greenwashing?
Antes mesmo de
iniciarem as atividades de extração mineral na Amazônia, Eneva e Potássio do
Brasil afirmam estar preocupadas com a crise climática e a floresta. A imagem
que buscam projetar é a de empresas que patrocinam eventos culturais e
ambientais em cidades da região Norte. O Festival de Parintins é o mais famoso
deles. Nos relatórios para investidores e em seus sites, garantem incorporar
tecnologias limpas em projetos socioambientais. Para quem perguntar, desfilam
um cardápio de projetos de reflorestamento e de manutenção da qualidade do ar,
do solo e da água. Mas para o povo Mura e ribeirinhos que correm o risco de ser
desalojados de suas terras a realidade é bem outra.
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A palavra
“greenwashing” é a primeira que surge para quem se sente ofuscado nessa
pretensa responsabilidade ecológica corporativa. O termo em inglês, que poderia
ser traduzido como “maquiagem verde”, ocorre quando empresas exageram ou
maquiam seu comprometimento com a sustentabilidade, criando uma falsa percepção
de responsabilidade ambiental ou social. Mostrar compromisso com o ambiente
pode significar financiamento e apoio para os projetos, mesmo que seja
necessário esconder ou mascarar os impactos negativos do avanço de atividades
de exploração de minérios.
Embora não seja
impossível, a prática da mineração dificilmente consegue se enquadrar na
estratégia de ESG (Meio Ambiente, Social e Governança), muito em voga no
discurso das corporações. Além dos riscos da atividade, a extração mineral
implica se estabelecer em grandes extensões de terra, o que mesmo em proporções
amazônicas significa remover povos originários e tradicionais que chegaram
antes.
A Potássio do Brasil,
que nega a prática de greenwashing, prevê a exploração da silvinita nas terras
do povo Mura por um período de quatro anos e meio. A empresa já obteve licenças
estaduais para operar em Autazes, no Amazonas. Para tanto, comprometeu-se em
executar “mais de 30 programas socioeconômicos e ambientais”. Embora prometa
“não desmatar um hectare sequer”, nas palavras do presidente da mineradora,
Adriano Espeschit, um desses programas prevê “reflorestar uma área dez vezes
maior do que essa área que nós vamos ocupar na superfície”.
A 130 quilômetros de
Autazes, em Silves, mais indígenas do povo Mura sofrem a pressão de outro
megaprojeto de extração mineral. A empresa Eneva realiza ações de marketing
bastante visíveis desde que decidiu explorar combustível fóssil (gás natural e
petróleo) no município amazonense. Em 2023, ela foi uma das patrocinadoras da
Glocal Experience Amazônia, uma plataforma que promove discussões sobre
sustentabilidade e meio ambiente e da Expo Amazônia Bio&TIC, maior feira de
tecnologia, bioeconomia e inovação da região Norte. Apoiou e financiou ainda a realização do
Festival Folclórico de Parintins.
• O que o greenwashing não conta
Não há bom mocismo
empresarial. No caso da Potássio do Brasil, a liderança indígena Herton Mura,
professor e assessor técnico da Organização de Lideranças Mura e da Resistência
do Povo Mura (OLIMCV), afirma que uma das estratégias da mineradora foi uma forma
tradicional de colonização, “que é dividir para conquistar”.
“Esse foi o primeiro
passo da estratégia da empresa. Ela conseguiu dividir o povo Mura da região do
Baixo Madeira, em Autazes e no Careiro da Várzea. A gente tinha um movimento
muito coeso e unificado, mas tudo foi por
água abaixo com a entrada da empresa, que conseguiu cooptar algumas lideranças
que a gente considera como ‘chave’ nesse processo”, denunciou o líder indígena.
Herton Mura explica
que a cooptação das lideranças indígenas
foi feita com propostas em dinheiro e promessas de desenvolvimento, o
que se tornou um problema. Desde o ano passado, os indígenas Mura contrários ao
projeto têm denunciado a prática de aliciamento por parte da empresa para que
lideranças aceitem a exploração de potássio.
“A empresa disse que
iria buscar alternativas de melhora, ou seja, construir escola onde não tem,
coisas assim, e claro que as lideranças acabaram se iludindo com isso e
aceitando essa proposta. A aldeia Soares não foi consultada”, declarou Herton
Mura. “Com isso, a empresa tem a maior parte das lideranças do lado deles, que
continuam afirmando que a consulta foi feita e a gente sabe que não foi. Temos
um protocolo de consulta, mas reunião não é consulta.”
Há quase dez anos o
Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, tem entrado com ações para
impedir a exploração na área da Aldeia Soares, onde fica a mina de potássio, e
em Urucurituba. Os dois territórios não são demarcados pela Fundação Nacional
dos Povos Indígenas (Funai), mas estão em processo de estudo de delimitação
pelo órgão. Em maio e em agosto, o MPF pediu urgência na apreciação pela
Justiça para suspender as licenças ambientais dadas pelo Estado, favorável ao
empreendimento.
• A tática de desviar a atenção
Já a empresa Eneva
nega a existência de terra indígena e do povo Mura no entorno do Campo do
Azulão, em Silves, onde pretende extrair gás e petróleo. Em seus relatórios,
afirma que o empreendimento está situado a cerca de 9,5 quilômetros da Reserva
de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uatumã. Na Terra Indígena Gavião, onde
vive o cacique Jonas Mura, principal porta-voz contra as ações da Eneva, são
cerca de 360 famílias impactadas pela mineração.
Luiz Afonso Rosário é
ativista da organização global 350 e especialista em impactos ambientais em
territórios tradicionais por derramamento de óleo, construção de plantas
industriais, impactos por hidroelétricas, por plantações de eucaliptos e
exploração de combustíveis fósseis. Ao associar suas marcas a eventos culturais
e ecológicos, relacionou Luiz, essas empresas tentam desviar a atenção de suas
práticas prejudiciais ao meio ambiente.
“É um processo muito
nebuloso, se não falacioso. Mais recentemente a gente vê a Eneva patrocinando o
Festival de Parintins, que tem um cunho de solidariedade aos indígenas e às
raízes amazônicas, e ao mesmo tempo dentro do território, em Silves, ela nega a
presença dos indígenas. Isso em conluio inclusive com o órgão ambiental e o
estado do Amazonas. É um absurdo”, declarou.
O ambientalista lembra
que existem graves ameaças contra o cacique Jonas Mura e outras lideranças do
território, pressionadas psicológica e até fisicamente para cederem o
território para a mineração. A liderança precisou ingressar no Programa de
Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas
após receber ameaças de morte.
A líder indígena
Mariazinha Baré, coordenadora-executiva da Articulação das Organizações e Povos
Indígenas do Amazonas (Apiam), critica a prática das empresas de esconder os
impactos negativos de suas atividades, especialmente as mineradoras. Ela
argumenta que essas empresas criam falsas expectativas de resolver problemas
sociais antigos, como geração de empregos e construção de escolas, para
convencer a população a aceitar seus projetos.
“Essa prática se
traduz em soluções falsas, não tem benefício algum. É uma grande lavagem verde,
estão investindo na questão ambiental, mas com outro sentido, que nada é mais
nada menos que a prática de camuflar, de mentir e de omitir informações sobre os
reais impactos das atividades que uma empresa de mineração causa ao meio
ambiente”, acusou Mariazinha.
• Marketing ambiental falso
Para o pesquisador e
ambientalista Carlos Durigan, muitas empresas adotam uma estratégia de
marketing ambiental positiva, alinhadas com uma demanda da sociedade. Mas, na
prática, ela é falsa, uma vez que faltam um controle mais firme por parte das
autoridades e participação social nos processos decisórios. “Entendo que há um
amadurecimento no setor produtivo global que tem levado a um engajamento a
práticas sustentáveis. Mas ainda existem vários setores que preferem atuar como
sempre o fizeram”, afirmou o pesquisador. Ou seja, em vez de procurarem mitigar
e compensar impactos com suas atividades danosas, reduzir custos sociais e
ambientais e atuar na agenda da sustentabilidade, as companhias ainda
apresentam muita resistência porque essas ações demandam tempo e dinheiro.
As iniciativas de
compensação que agora se apresentam como “verdes” exercem pouco impacto real
diante dos estragos da mineração. A mina de Talvivaara, na Finlândia, é um caso
emblemático que expõe como a mineração levou a repetidos desastres ambientais e
impactou a vida de povos indígenas. Em 2012, a mina sofreu um colapso em suas
instalações de armazenamento de resíduos, levando a um vazamento de ácido e
metais pesados nos rios e lagos locais. O desastre causou danos significativos ao meio ambiente
e à vida aquática. Apesar disso, ela se autopromove como um exemplo de
mineração sustentável.
Estudos do Centro de
Defesa Ambiental de Minnesota, nos Estados Unidos, discutem como as empresas de
mineração usam greenwashing para parecer ambientalmente responsáveis, a partir
de críticas às alegações enganosas da indústria sobre seu papel na energia
limpa e mineração responsável, apontando exemplos como as práticas controversas
da mineradora Glencore.
Diversos outros
estudos e relatórios têm exposto as práticas de greenwashing na indústria de
mineração. Um relatório elaborado pelo London Mining Network e publicado em
2019, destaca como grandes empresas de mineração estão usando a narrativa da
crise climática para justificar a expansão em áreas ambientalmente críticas,
mas na realidade perpetuam práticas destrutivas.
Indo na contramão do
que é apresentado nos comunicados de imprensa, relatórios anuais e em seus
sites e redes sociais, onde dizem seguir rigorosos padrões para investir em
tecnologias limpas e projetos socioambientais, as mineradoras que atuam no
Brasil revelam um contraste entre o discurso e a prática quando o assunto
envolve territórios tradicionais e unidades de conservação na Amazônia.
• O caso da Potássio do Brasil
A Potássio do Brasil
afirma manter o respeito aos povos tradicionais e ao meio ambiente, enquanto
indígenas Mura dizem se sentir ameaçados e intimidados. Em um evento realizado
em Manaus no fim de maio, lideranças indígenas denunciaram que são vigiadas por
drones. Os que se opõem ao empreendimento pertencem à comunidade Soares (ou
Lago dos Soares), reivindicada como pertencente a terras ancestrais Mura.
O empreendimento conta
com o apoio e influência de diversos políticos, a começar do governador Wilson
Lima (União Brasil). Foi ele quem oficializou e comemorou a liberação de
licenças de instalação a obras de exploração de potássio por meio do Instituto de
Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). Por entenderem que se trata de uma
terra indígena, eles exigem que o licenciamento ambiental seja conduzido pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama).
Além do governador do
Estado, são entusiastas da mineração de potássio o prefeito de Autazes,
Andreson Cavalcante (União Brasil), o
vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio
e Serviços, Geraldo Alckmin, o deputado estadual Sinésio Campos (PT), notório
defensor de mineração em terras indígenas, e o senador do Amazonas, Plínio
Valério (PSDB).
Para a liderança
Herton Mura, o discurso de desenvolvimento regional também se apresenta como
“outra falácia”. Sobre a questão de emprego e renda, ele questiona: “Quantos
Mura são qualificados para trabalhar com mineração? Praticamente ninguém, quase
ninguém, não é só os Mura. Os ribeirinhos, as pessoas da região, ninguém tem
qualificação para isso”.
A preocupação é que a
demanda de trabalhadores de fora da região impacte o território com
prostituição, aumento de consumo de drogas, alcoolismo e superpopulação. “A
única coisa que ela [Potássio do Brasil] fala é que o projeto vai ser bom, é
sustentável e vai contribuir com o ambiente e com a cultura do povo indígena.
Só fazem falar, não apresentam nada concreto e muito menos apresentam algo que
foi construído com a participação dos povos indígenas”, denunciou. Segundo ele,
a consulta livre, prévia e informada foi atropelada durante o processo.
A professora Caroline
Nogueira, do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na
Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), enfatiza que o Ipaam está
liberando de maneira fracionada os licenciamentos ambientais, apesar de a Funai
já ter iniciado os trabalhos de delimitação na Terra Indígena Lago do Soares
para fins de demarcação.
Em maio, o MPF entrou
com uma ação judicial questionando essa prática, sob a suspeita de que o
fracionamento visa reduzir a percepção dos impactos ambientais, o que faria com
que o Ipaam fosse o único órgão responsável pelo licenciamento. Caroline Nogueira
afirma que a mina, que pretende explorar a silvinita sob a terra indígena, pode
causar impactos muito severos na região, o que tem levado a comunidade local a
denunciar tentativas da empresa de comprar suas terras para que abandonem o
local. “Aquela região vai ficar inviável de plantar, de pescar e de fazer as
práticas tradicionais dos povos indígenas”, ressaltou a jurista.
• A situação da Eneva
Em um documento
intitulado Relato Integrado de 2023, a empresa Eneva destaca iniciativas de
conservação de sistemas agroflorestais e restauração ecológica. Cita também
compromisso com a eficiência energética responsável e segura, enfatizando o uso
de energias renováveis e redução de emissões de carbono. Um desses projetos, a
Floresta Viva, é feito em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), banco
público federal, para aplicar programas de restauração ecológica em Unidades de
Conservação no Amazonas. A empresa afirma que o total investido pela parceria
até 2023 foi de 5.097.573 reais.
Um dos principais
acionistas da empresa, o banco BTG Pactual, detém quase 50% de participação da
Eneva. Outro acionista é o Fundo Cambuhy, pertencente ao banqueiro Paulo
Moreira Salles, um dos donos do Itaú Unibanco. Conforme apurado pela Amazônia
Real, os investimentos no Campo de Azulão serão de 5,8 bilhões de reais. Uma
parte deste valor – 1 bilhão de reais – virá de empréstimos junto ao Banco da
Amazônia (Basa) com juros subsidiados pelo Fundo Constitucional do Norte (FNO)
e que podem ser pagos em até 16 anos. No fim de 2023, a Eneva divulgou novos
empréstimos de bancos públicos destinados a “desenvolvimento regional” com
vigência de 17 anos.
A empresa afirma, em
nota enviada à Amazônia Real, que o licenciamento ambiental do Campo Azulão foi
precedido de audiências públicas em Silves e Japaratinga, com a participação de
“mais de 1.000 pessoas nos dois encontros, com grande interação entre os presentes,
de forma pacífica e clara”. E que os impactos do empreendimento foram
apresentados no Estudo Ambiental (EIA/RIMA), que é público e foi divulgado nas
audiências.
• O que dizem as empresas
Procurada, a Eneva não
refutou a prática de greenwashing, tampouco a confirmou, mas assegura que
seguiu todas as etapas necessárias e legais determinadas pelas instituições
para a obtenção das licenças ambientais. À agência, afirmou que os referidos
financiamentos contratados pela companhia estão sendo integralmente destinados
ao desenvolvimento do projeto Azulão 950 MW e que os investimentos em
atividades socioambientais não estão previstos nos contratos dos financiamentos
citados. “Esses financiamentos preveem apenas recursos destinados ao propósito
de investimentos e/ou atividades de custeio e só são liberados mediante a
realização das devidas comprovações de custos destas atividades”, disse a
empresa.
Apesar de o
empreendimento ameaçar a vida do povo Mura naquele território, a Eneva advoga o
uso de ESG em suas ações, com “foco no estímulo à bioeconomia e a
agroflorestas”. Os projetos sociais, justifica a empresa, são voltados ao
empoderamento feminino, à educação e inserção no mercado de trabalho e ao fomento
à sociobioeconomia. A formação de mão de obra local, para impulsionar a
empregabilidade local, é outra promessa da Eneva para o desenvolvimento da
região de Silves. O apoio da Eneva se estende a projetos em escolas públicas e
parcerias com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam) para a
implantação de escola técnica em Silves e desenvolvimento de cursos técnicos.
A empresa afirma que
possui projetos de responsabilidade socioambiental em andamento no Amazonas,
priorizando três “causas” principais: “fomento à sociobioeconomia; educação e
inserção produtiva no mercado de trabalho; e empoderamento feminino”. Empresa listada
na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), a Eneva conclui a nota afirmando que “a
Companhia passou a integrar pela primeira vez a carteira do Índice de
Sustentabilidade Empresarial (ISE) B3. Além disso, conquistou o selo ouro no
Programa Brasileiro GHG Protocol pelo terceiro ano consecutivo, e foi finalista
do Platts Global Energy Awards 2023, na categoria Deal of The Year – Strategic,
pelo reconhecimento às ações e inovações de empresas e indivíduos no setor de
energia”.
Questionada pela
reportagem da Amazônia Real sobre os conflitos com os indígenas naquela região,
a Potássio do Brasil respondeu por e-mail
que o povo Mura de Autazes é composto por 37 aldeias, representado pelo
Conselho Indigenista Mura (CIM), e que a organização cumpriu integralmente o
Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes,
Amazonas. Trincheiras: Yandé Peara Mura.
“Com 94% das aldeias
representadas o projeto foi aprovado, superando o que prevê o Protocolo de
Consulta Mura, que aponta para a aprovação, por meio de votação, através de
quórum mínimo de 60% das aldeias. Pelo que tomamos conhecimento da ata da
Assembleia Geral da Consulta, a Aldeia Soares optou em não participar da
assembleia geral”, disse a empresa. A empresa, contudo, não informou que as
lideranças da Aldeia Soares se retiraram do CIM em 2023 e elas não autorizam a
entidade a falar pelos Mura da comunidade.
A empresa refuta de
forma veemente as acusações de prática de greenwashing. “Muitos estudos e
relatórios técnicos, dentro do processo de licenciamento ambiental, foram
requeridos pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão
licenciador do Projeto Potássio Autazes, sendo que o referido órgão analisou,
em caráter antecedente à concessão das licenças, os impactos do
empreendimento”, não havendo, segundo ela, “omissão por parte da Potássio do
Brasil”.
Fonte: Por Nicoly
Ambrosio, para Amazônia Real
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