quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Você sabe o que os municípios podem fazer pela alimentação?

O Brasil se esparrama em 5.568 municípios. Mesmo o menor deles, Serra da Saudade, em Minas Gerais, com seus 833 habitantes registrados pelo Censo 2022 do IBGE, tem uma prefeitura e uma Câmara Municipal para chamar de suas. É assim que os poderes Executivo e Legislativo marcam presença em todos os milhares de municípios brasileiros. O que não se pode dizer de políticas públicas que atendam às necessidades e aos interesses alimentares de suas populações.

O termômetro para as políticas de alimentação é outro. Até o momento, 20% dos municípios (1.118) aderiram ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que destina recursos do governo federal para políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Cozinhas Solidárias.

O direito à alimentação adequada é garantido pela Constituição Federal, assim como a saúde e a educação gratuitas para todos. O acesso, contudo, é diferente. A adesão ao Sistema Único de Saúde (SUS) é compulsória. Ou seja, os municípios são obrigados a aplicar recursos federais e estaduais e parte da arrecadação de seus impostos em saúde pública. No caso do SISAN, as prefeituras podem aderir ou não, o que deixa o acesso à alimentação saudável e adequada mais vulnerável.

A Lei Orgânica da Saúde, que regulamenta o SUS, aponta que a alimentação é um dos fatores determinantes e condicionantes para a garantia da saúde à população. O prefeito e os vereadores, portanto, têm tudo a ver com esse debate.

O Instituto Fome Zero (IFZ) e o Instituto Comida do Amanhã estruturaram duas cartilhas para apresentar os eixos de atuação possíveis para políticas alimentares a nível municipal. São ferramentas para ajudar candidatos às prefeituras e às Câmaras de Vereadores na formulação de propostas e políticas de acesso à comida saudável e que caiba no bolso da população.

“O período eleitoral é um momento bastante privilegiado para que a gente discuta o cenário da fome com a sociedade, mesmo com a diminuição de 85% que tivemos no índice de insegurança alimentar grave”, afirma Tárzia Medeiros, assessora de políticas públicas do Comida do Amanhã e uma das responsáveis pela elaboração da “Agenda para Eleições Municipais 2024”.

O Brasil permanece no Mapa da Fome da ONU e o desafio está, justamente, em fincar políticas públicas alimentares nos municípios, locais em que os programas poderiam ser estruturados sob medida para aquela determinada população. As necessidades e preferências alimentares, além da oferta de alimentos, não serão as mesmas em Diadema, na Grande São Paulo, e em Imperatriz, no interior do Maranhão, por exemplo.

“Sabendo que é no espaço do município, no Brasil profundo, que esse desafio é mais difícil de ser superado, o processo eleitoral se apresenta como uma oportunidade para fazer sugestões de combate à fome, também pensando o direito humano à alimentação como algo bastante diversificado, que tem uma interdisciplinaridade tremenda. O poder público municipal tem muito a contribuir, seja no Poder Executivo ou no Poder Legislativo”, emenda Tárzia.

Um eixo que já vem agregando os dois poderes é a alimentação escolar. A cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, deu um passo importante ao aprovar um projeto de lei que proíbe os ultraprocessados nas escolas municipais, no início de 2023. A participação da sociedade civil, como o Instituto Desiderata e o Núcleo do Rio de Janeiro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, deu tração à aprovação da lei, que passou a incluir um parágrafo explicativo do que são os ultraprocessados, com exemplos desses produtos.

O Guia Alimentar para a População Brasileira e o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos já recomendam evitar seu consumo, mas o país ainda patina em sanções mais firmes. Um exemplo é a reforma tributária em tramitação no Congresso, cujo texto não incluiu imposto seletivo para ultraprocessados e pode aumentar ainda mais os incentivos para a fabricação de refrigerantes. Na contramão, os municípios que tomam a legislação “pelo pé” saem na frente na corrida da alimentação escolar saudável e adequada. O Rio de Janeiro seguiu o exemplo e também baniu, por lei, os ultraprocessados de todas as escolas, públicas e particulares.

“Insegurança alimentar e nutricional não é só matar a fome. É também dar conta de um quadro gravíssimo de desnutrição. Você não pode ter uma alimentação que seja composta por alimentos ultraprocessados que, além de não darem conta da desnutrição, ainda causam doenças crônicas, como diabetes e hipertensão”, afirma Tárzia.

Para executar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os municípios recebem recursos do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE). O valor é proporcional ao número de estudantes matriculados. A merenda deve ser oferecida a todos os alunos até o ensino médio de escolas públicas e, em alguns casos, também há recursos vindos da secretaria estadual de educação. No entanto, o valor é insuficiente para cobrir os custos e o município precisa alocar parte do próprio orçamento.

As ações integradas entre secretarias podem ajudar nessa empreitada. Se 30% das compras com recursos do FNDE têm que ser provenientes da agricultura familiar, uma parceria entre a secretaria municipal de educação e a secretaria de agricultura poderia dar origem a um programa de incentivo à produção de alimentos orgânicos pelas famílias de agricultores, com garantia de compra pela prefeitura.

•        Feijão com arroz das políticas alimentares

O que seria o básico do básico que prefeitos e vereadores podem fazer para alimentar a população das cidades que governam? A primeira ação é assumir um compromisso público de acabar com a fome dentro do município. Parece simples quando escrito em uma frase, mas muitos gestores municipais não abordam esse tema em campanha eleitoral, tampouco no plano de governo.

A busca por recursos para financiar a agenda alimentar é o segundo passo. Historicamente, os municípios brasileiros dispõem de poucos recursos próprios, uma vez que há inadimplência no pagamento de impostos municipais, a exemplo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), e até falta de grandes empreendimentos comerciais em seus perímetros. Boa parte do orçamento municipal depende de recursos dos governos federal e estadual.

Um prefeito do “Brasil profundo” não costuma ser bom de lobby como as gigantes Ambev e Coca-Cola, por isso não consegue simplesmente ligar para Brasília e pedir repasses de recursos. É necessário criar um Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsea) para discutir políticas e programas para alimentação e, depois, uma Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) municipal. A partir daí, a prefeitura pode tentar a adesão ao SISAN e a outras iniciativas federais via Caisan estadual.

O Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana é uma dessas iniciativas. A proposta é oferecer capacitação e incentivo fiscal para ampliar o cultivo de alimentos nas cidades, para abastecimento local e menor impacto climático. O grupo de trabalho para implementar e monitorar o programa inclui quatro ministérios – Meio Ambiente, Desenvolvimento Social, Desenvolvimento Agrário e Trabalho e Emprego – e representantes do Consea. Municípios que já aderiram ao SISAN têm prioridade nos acordos de cooperação e podem propor, por exemplo, projetos de assistência técnica aos agricultores urbanos e de garantia de compra da produção para alimentação escolar e equipamentos públicos, como os restaurantes populares.

Outra oportunidade é a estratégia Alimenta Cidades. A implantação começará por 59 municípios, incluindo todas as capitais brasileiras, exceto Rio Branco, no Acre. O objetivo é assegurar o acesso à alimentação adequada nos municípios com maior número de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Equipamentos públicos e privados de abastecimento e ações de redução da perda e do desperdício de alimentos são alguns eixos de atuação previstos.

Há ainda a possibilidade de parcerias com universidades e instituições de pesquisa para gerar dados de diagnóstico do município e construir pontes sólidas entre as secretarias municipais e demais setores públicos.

O Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares (LUPPA), por exemplo, é uma plataforma colaborativa para facilitar a construção de políticas alimentares municipais integradas. Uma boa saída para municípios que gostariam de implementar políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), mas que têm dúvidas de como começar.

“Um grande desafio é conseguir promover o diálogo e a conexão entre os diferentes setores e as áreas de governo. Muitos municípios conseguem ter os recursos, por exemplo, para implementar e fazer uma gestão relativamente boa do PNAE na educação, mas têm pouco diálogo com a agricultura para conseguir garantir a compra dos produtores familiares”, explica Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Desde 2009, ao menos 30% das compras com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ao qual o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) está vinculado, têm que ser provenientes da agricultura familiar. Em 2023, o governo federal determinou ainda que pelo menos 50% da venda da família agricultora seja feita em nome das mulheres. Este é apenas um dos exemplos do quão importante é pensar em soluções sistêmicas para a alimentação a nível municipal, que compreendam fatores culturais, econômicos, ambientais, raciais, de moradia, trabalho e gênero.

Ao mesmo tempo, há desafios anteriores à conexão entre setores municipais. Ana Paula aponta que gestores locais podem não dominar o tema e a amplitude de políticas que podem ser pensadas e criadas para lidar com a promoção da alimentação adequada e saudável. Além disso, muitas vezes as prefeituras não dispõem de capacidade suficiente para garantir a implementação das políticas.

“Sobrecarregadas, as equipes de saúde não conseguem dar conta de fazer vigilâncias para além das mais tradicionais, como questões sanitárias, para pensar em outras ações que poderiam incluir mais o componente da alimentação saudável”, pondera a professora da USP. “Por exemplo, há cidades que têm algum regulamento sobre cantinas, mas não conseguem fiscalizar e implementar bem essas leis.”

•        Quem toca o quê na agenda alimentar?

<><><> Prefeitos executam:

•        Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), via adesão ao SISAN, para compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar.

•        Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com recursos do FNDE.

•        Equipamentos de SAN: restaurantes populares e cozinhas comunitárias.

•        Bancos de alimentos, com possibilidade de parceria com entidades privadas.

•        Cestas de alimentos para população em situação de insegurança alimentar e nutricional.

•        Mercados públicos e feiras locais para acesso a alimentos frescos, com atenção especial às periferias.

•        Pesquisas regulares para investigar a situação de insegurança alimentar da população no município.

•        Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana.

•        Hortas pedagógicas nas escolas e comunitárias.

•        Incentivo à produção orgânica e agroecológica e criação de mercados para os agricultores.

•        Banco municipal de mudas e sementes.

•        Oficinas de educação alimentar para a população.

•        Campanhas de combate ao desperdício de alimentos.

•        Gestão eficiente de resíduos orgânicos, com programas de compostagem para uso na agricultura.

<><><> Vereadores propõem:

•        Projetos de lei para melhoria da alimentação escolar.

•        Emendas orçamentárias para políticas de SAN.

•        Iniciativas que estimulem a agricultura na município, como a compra de alimentos para merenda, casas de acolhimento, presídios e outros.

•        Criação de fundos públicos para regulamentar as compras e doações de alimentos.

•        Investigação da situação de insegurança alimentar da população, como o levantamento Mapa da Fome no Rio de Janeiro.

•        Seminários e audiências públicas sobre segurança alimentar e nutricional.

<><> Ações de combate à fome

“Quem tem fome tem pressa”, dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundador da ONG Ação da Cidadania. A frase é dos anos 1990 mas, sem dúvidas, permanece atual. De acordo com a PNAD Contínua, realizada pelo IBGE em 2023, as regiões Norte e Nordeste são as mais impactadas pela insegurança alimentar grave, com a fome fazendo parte do dia a dia de 7,7% das famílias no Norte e de 6,2% no Nordeste – frente a 4,1% de média nacional, 3,6% no Centro-Oeste, 2,9% no Sudeste e 2% no Sul.

A fome está diretamente ligada à pobreza. É uma expressão da desigualdade. No Rio de Janeiro, a fome mais que dobrou em seis anos, apontou a pesquisa Mapa da Fome, fruto de uma parceria entre a Frente Parlamentar contra a Fome e a Miséria no Município do Rio de Janeiro da Câmara Municipal e o Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para enfrentá-la, portanto, as políticas de proteção social precisam fazer parte da estruturação do plano de SAN do município, especialmente quanto ao acesso à renda e, emergencialmente, a refeições e bancos de alimentos.

O Mapa da Fome do Rio de Janeiro mostrou que uma das alternativas de acesso alimentar são os equipamentos de provisão da SAN, como os restaurantes populares e as cozinhas comunitárias. Das famílias que tinham moradores acessando algum desses equipamentos, quatro em cada dez estavam passando por insegurança alimentar moderada ou grave.

Em outra ponta do país, o programa Ceará sem Fome, iniciado em 2023 pelo governo estadual, conta com a adesão das prefeituras para produzir 100 mil refeições para pessoas em situação de insegurança alimentar no estado. Só em Caucaia, são 42 cozinhas preparando diariamente cerca de 4.200 refeições. As cozinhas comunitárias entram na categoria “equipamentos de SAN”, que são espaços apropriados para o preparo de refeições coletivas. Outros equipamentos desse tipo são os restaurantes populares, cujo repasse de recursos federais depende da inscrição no SISAN.

Além do Ceará sem Fome, que dá assistência mais imediata ao problema da fome, o município de Caucaia deu seguimento a outras políticas alimentares. Após a criação do Comsea, da Caisan municipal e da adesão ao SISAN, foi elaborado um plano de segurança alimentar.

Estão em curso ações de fortalecimento de feiras e mercados públicos e de um banco de alimentos, que funciona por meio de doação a entidades cadastradas e compra da agricultura familiar. Na produção de alimentos, destaca-se o mapeamento de agricultores, o estabelecimento de um conselho de desenvolvimento rural sustentável, um banco municipal de sementes crioulas e mudas orgânicas e um plano de ação climática, para controle do desmatamento. 

•        Diagnóstico alimentar e governança

As questões alimentares são, portanto, transversais, a exemplo do que já mencionamos sobre seu reconhecimento como um fator determinante para a saúde da população. Depois de atender à emergência da insegurança alimentar grave, é fundamental que o município investigue as ramificações do alimento para outros direitos da população, como educação e trabalho. Estudar essas conexões dentro das cidades e propor ações conjuntas é benéfico, inclusive, em termos de orçamento público, com os gastos podendo ser divididos entre diferentes secretarias e órgãos.

O levantamento de dados para um diagnóstico sobre o sistema alimentar municipal é o passo que antecede o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. Em áreas urbanas, é provável que haja uma área extensa de periferia e favelas, o que vai exigir políticas específicas de acesso a alimentos, que considerem a geomorfologia (se é uma região de morros, por exemplo) e o fornecimento de energia elétrica, para citar alguns fatores. Já em áreas rurais, a discussão pode incluir mais vigor no fortalecimento da agricultura orgânica, com subsídios municipais à produção e garantia de compra.

Anchieta, em Santa Catarina, é considerado um município agroecológico, graças a políticas de incentivo à agricultura familiar, à agroecologia e à promoção da segurança alimentar e nutricional. Desde os anos 1990, está em curso um processo de resgate de sementes crioulas, para diversificar o cultivo de milho.

Em 2017, o apoio municipal evoluiu para a produção e certificação de alimentos orgânicos, com subsídios aos agricultores e garantia de compra para uso na merenda escolar. No ano passado, foi sancionada a lei que aprova o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Anchieta, um compromisso público em adotar políticas e ações pelo direito à alimentação. É importante lembrar que as propostas de leis municipais são deliberadas pelos vereadores que, portanto, têm um papel importante a desempenhar nas políticas de SAN.

Iniciativas que estimulem a governança local são outra frente de trabalho para o poder público municipal. No caso de Anchieta, há um programa de hortas comunitárias e outro de capacitação de merendeiras em alimentação saudável e combate ao desperdício. Outro ponto é o incentivo fiscal relacionado aos sistemas alimentares, com isenção parcial no IPTU por dois anos para quem implantar cisternas e sistema de energia solar, ceder terreno para horta e compostar resíduos orgânicos.

A estrutura de governança pode estar prevista nas leis municipais. Em Santarém, no Pará, a política de SAN foi registrada em lei em 2023 e dispõe sobre a participação social como um de seus princípios. Dessa forma, a sociedade civil precisa ser ouvida para a formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de SAN em todas as esferas do governo municipal.

É claro que uma coisa é colocar no papel e outra, bem diferente, é ter a aplicação na prática. Mas a legislação é um poderoso sistema de cobrança, no qual a população pode buscar apoio sempre que houver sinais de violação do que está previsto em lei.

 

Fonte: O Joio e O Trigo

 

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