Por que Austrália estuda proibir propaganda
de bets
Na Austrália, país com
mais apostas per capita do mundo, a crescente preocupação com os impactos desse
mercado na população local levou o Parlamento a iniciar um inquérito
bipartidário que pode proibir publicidades voltadas a jogos de azar e sites de
apostas.
A investigação apontou
que existem "poucas salvaguardas" para proteger aqueles que lutam
contra o vício e recomendou 31 reformas para evitar "preparar" uma
nova geração de crianças para jogar, começando com uma proibição gradual de três
anos da publicidade.
Agora, a pressão está
aumentando sobre o primeiro-ministro Anthony Albanese - tanto externamente
quanto de dentro de seu próprio partido - para agir. Ao mesmo tempo, pesquisas
mostram que a maioria da população apoia a mudança.
O governo, no entanto,
sinalizou que pode optar por um teto para limitar a publicidade, em vez de
proibi-la totalmente.
Segundo as autoridades
australianas, a receita de anúncios de jogos de azar desempenha um papel
importante no sustento das emissoras abertas do país. O governo também afirma
que as empresas de apostas temem que uma proibição poderia atrair os
consumidores para mercados no exterior.
Fazer isso resultaria
em enormes perdas fiscais nas plataformas de apostas australianas que
atualmente financiam "serviços vitais", diz o órgão máximo que
representa a indústria.
O debate gerou
acusações de que interesses corporativos estão atrapalhando a reforma. Ele
também destacou os vínculos profundamente enraizados entre esporte, jogos de
azar e entretenimento na Austrália.
No Brasil, o
Ministério da Fazenda finaliza atualmente a regulamentação do mercado de
apostas online. A lei que estabeleceu os limites para as chamadas 'bets' foi
sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro deste ano.
Outro projeto de lei,
que prevê o funcionamento de bingos e de cassinos no país e regulariza os jogos
de azar, como o jogo do bicho, está em análise no Senado. Segundo o relator, a
regulação é um tema inadiável dado que a atividade hoje funciona de forma
clandestina e permite a atuação do crime organizado.
Especialistas,
contudo, veem com cautela o processo de regulamentação dos jogos de azar no
país. Clínicas e organizações que atendem usuários dependentes temem pela saúde
mental e financeira dos apostadores.
Há também preocupação
em relação ao desafio da regulação das publicidades de apostas e jogos de azar.
Após a sanção
presidencial à regulamentação das 'bets', o Conar (Conselho Nacional
Autorregulamentação Publicitária) publicou um anexo que determina as regras
para as mensagens publicitárias desse tipo. Desde então, empresas do ramo já
receberam ordens para alteração ou suspensão de anúncios.
O tema ganhou ainda
mais projeção no país depois que diversos influenciadores passaram a ser
investigados por divulgar links "viciados" e estimular apostas no
"Jogo do Tigrinho", considerado ilegal no país.
Investigações apontam
que esses jogos de azar na internet estão também pagando influenciadores mirins
brasileiros para divulgar as casas de apostas para crianças e adolescentes no
Instagram.
• 'Boom' das apostas
Na Austrália, as
apostas ocupam um espaço único na cultura local.
Na década de 1980, o
país se tornou o primeiro a desregulamentar sua indústria de jogos de azar,
possibilitando que máquinas caça-níqueis — antes permitidas apenas dentro de
cassinos — se expandissem para bares e clubes licenciados.
Hoje, a Austrália
abriga cerca de 0,33% da população mundial, mas um quinto de todos os
"pokies" — o termo coloquial usado para as máquinas.
As últimas duas
décadas também viram uma explosão na popularidade das apostas online,
principalmente quando se trata de esporte. Estimativas mostram que os
australianos estão gastando aproximadamente 25 bilhões de dólares australianos
(R$ 93 bilhões) em apostas legais a cada ano — com 38% da população jogando
semanalmente.
Especialistas
argumentam que o marketing sofisticado ajudou nesse boom, enquanto acordos de
patrocínio, parcerias e propinas dados a órgãos esportivos predominantes
ajudaram a legitimar a indústria.
Amy (nome fictício) é
uma das dezenas de pessoas que se apresentaram para testemunhar no inquérito
parlamentar bipartidário sobre os impactos das apostas.
Ela e seu irmão, Sam,
cresceram em uma comunidade onde apostar era sinônimo de esporte.
Olhando para trás, ela
culpa essa normalização do jogo - e a maneira como ele se infiltrou em sua casa
e se incorporou às interações sociais - pelo vício de seu irmão e pelo
sofrimento que ele enfrentou antes de tirar a própria vida.
"Isso o destruiu
física e emocionalmente", diz ela. "Tentamos de tudo. Éramos uma
família unida, mas obviamente não sabíamos o quão ruim era - isso o
esmagou."
Sean (nome fictício)
joga legalmente, e muitas vezes obsessivamente, há mais de 18 anos. Um amigo o
apresentou às apostas esportivas quando adolescente, e a partir daí as coisas
foram se tornando uma bola de neve.
"Alguns dias eu
não conseguia dormir a menos que soubesse que tinha apostado. Chegou ao ponto
em que eu estava apostando em esportes que nunca tinha visto em países dos
quais nunca tinha ouvido falar", disse ele à BBC.
Agora com 36 anos e
buscando ajuda de patrocinadores, ele não gosta de pensar no que parece ser uma
vida inteira de perdas - mas estima um rombo de cerca de 2 milhões de dólares
australianos (R$ 7,4 milhões) em sua conta bancária.
Ele diz que os
rompimentos de relacionamentos e anos de isolamento são mais difíceis de
quantificar. "Se eu nunca tivesse apostado, estaria casado e com filhos
agora."
Um estudo acadêmico
apontou que, assim como Sean, 90% dos adultos australianos e cerca de três
quartos das crianças de oito a 16 anos veem as apostas como uma "parte
normal do esporte".
Defensores das
reformas como Martin Thomas argumentam que isso é uma evidência de que a
prática "se infiltrou em todos os cantos da sociedade". "Nossos
filhos sabem tanto sobre as probabilidades de um jogo e apostas múltiplas
quanto sobre seus jogadores favoritos", diz ele à BBC.
Na opinião de Amy,
além de tornar mais difícil para pessoas de todas as idades escaparem do jogo,
essa normalização criou uma narrativa perigosa: que quaisquer impactos adversos
- como dívida ou vício - são culpa do indivíduo, não do sistema.
"Você vai
assistir a um evento esportivo e vê um monte de publicidade de apostas e pensa:
'Ah, eu sou o problema. Porque todo mundo faz isso'", diz. "Foi o que
meu irmão pensou."
Ela diz querer ver o
tema reformulado para ser encarado como um grande problema de saúde pública, em
vez de uma atividade recreativa, já que pesquisas mostram que quase metade dos
que se envolvem na prática correm o risco de sofrer, ou já sofrem, os danos
associados, como dificuldades financeiras, violência familiar, depressão e
suicídio.
Pesquisas sugerem que
a proibição da publicidade pode ser o primeiro passo para atingir esse
objetivo. E os defensores da reforma apontam que há um caminho bem trilhado que
o governo pode seguir.
Thomas cita a decisão
da Austrália de proibir anúncios de tabaco em 1992 - que foi creditada pela
redução drástica das taxas de tabagismo - como prova do que é possível.
E apesar de o
primeiro-ministro Anthony Albanese descrever a "saturação da publicidade
de jogos de azar" como "insustentável", ele ainda não se
comprometeu com um curso de ação.
Ao ser questionado
sobre a questão, apontou para outras iniciativas de seu governo - como proibir
o uso de cartão de crédito em apostas online e criar um registro para as
pessoas se excluírem de sites de apostas.
Em algumas ocasiões, o
premiê também classificou as apostas como um problema antigo.
“[Isto] tem sido um
problema na nossa sociedade, eu suspeito, desde que o homem e a mulher
caminhavam e faziam apostas sobre quem montaria o cavalo mais rápido ou quem
correria de pedra em pedra, provavelmente antes de existirem edifícios”, disse
ele ao Parlamento na semana passada.
• 'A casa de apostas sempre ganha'
O órgão máximo que
representa as empresas de apostas da Austrália descreveu uma proibição geral
como "um passo longe demais" e apoiou o teto proposto pelo governo —
que limitaria os anúncios online e durante a programação geral da TV.
"Ao fazer isso,
as expectativas da comunidade de ver menos publicidade seriam atendidas, ao
mesmo tempo em que manteria o apoio crucial aos códigos esportivos e às
emissoras locais", disse o CEO da Responsible Wagering Australia (Apostas
Responsáveis Austrália, em tradução livre), Kai Cantwell.
Mas Andrew Hughes,
professor de Marketing na Universidade Nacional da Austrália, coloca dúvidas
sobre o quão crucial é esse apoio financeiro - já que os dados da Nielsen
mostram que a maior parte do dinheiro publicitário que as emissoras do país
recebem vem de uma série de outros setores, e não das plataformas de apostas.
E senadores
independentes, como David Pocock, criticaram a lógica de usar dinheiro de
apostas para sustentar a mídia.
"O jornalismo é
incrivelmente importante, mas não deve depender de produtos de propaganda que
sabemos que são prejudiciais e que causam dependência, problemas pessoais,
desestruturação familiar e, em alguns casos, suicídio", disse ele à BBC.
"O governo deve
ter a imaginação de procurar outras maneiras de preencher essa lacuna."
Pocock é um dos vários
senadores a questionar publicamente se as empresas de apostas e as indústrias
que elas financiam estão interferindo nas decisões políticas - citando seus
extensos esforços de lobby e histórico de grandes doações políticas.
Na semana passada, ele
se juntou a 20 parlamentares de todo o espectro político para assinar uma carta
aberta apoiando a proibição das propagandas. O documento também pedia que o
partido de Albanese liberasse seus parlamentares para votar como desejem sobre
a questão, sem sofrer repercussões.
Vários órgãos médicos
também deram seu apoio à proibição, assim como um painel de especialistas
nomeado pelo governo para investigar como reduzir as taxas de violência
doméstica na Austrália, aumentando a pressão crescente que Albanese está
enfrentando.
O governo já veicula
avisos em anúncios de jogos de azar, lembrando as pessoas dos riscos.
Mas Sean diz que isso
faz pouco para deter aqueles que estão presos na mira do vício.
"Eu sei que a
casa [de apostas] sempre ganha, mas toda vez que estou pronto para dar uma
chance, tudo vai pela janela", explica ele. "Começo a pensar que
estou prestes a conseguir aquela vitória que vai me afastar de tudo. Aquela
vitória que vai trazer tudo de volta."
Embora nada tenha sido
finalizado e o gabinete de Albanese ainda esteja avaliando suas opções, para
Amy, o debate em si se tornou muito "insensível" para acompanhar.
Ela não consegue
compreender qual é o problema e quer respostas. "Qualquer um que entenda
essa questão concordaria sem dúvida com uma proibição total de publicidade — é
o que as evidências dizem", diz à BBC.
"Parece que esses
lobistas são donos do governo... Estamos balançando esse produto perigoso na
frente de todos e normalizando-o, e o pior cenário é o que aconteceu
conosco."
"Minha família —
eles nunca vão se recuperar. Não é algo do qual você se recupera."
Fonte: Por Hannah
Ritchie, da BBC News em Sydney
Nenhum comentário:
Postar um comentário