quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Danilo Paris: ‘Marçal como uma reação à institucionalização da extrema-direita’

Ideologicamente, a figura do coach empreendedor representa o produto do que as classes dominantes brasileiras cultivaram nos últimos anos. Discursos favoráveis às reformas trabalhista e da previdência, bem como às privatizações, foram fundamentados nas premissas do individualismo e do empreendedorismo.

Para justificar um projeto social dissociado dos direitos sociais, foi difundida quase como um mantra a ideia de que cada um pode prosperar dependendo do seu esforço individual. Marçal é o representante dessa ideologia, amplamente disseminada e reproduzida, apoiada e financiada quase que unanimemente por diferentes segmentos da burguesia nacional e internacional.

A AtlasIntel foi a primeira a captar o crescimento de Marçal nas intenções de voto. Em pesquisa divulgada na quarta-feira, 21 de agosto, o ex-coach subiu 4,9 pontos percentuais, de 11,4% para 16,3%. No mesmo período, Guilherme Boulos, que tinha 32,7%, caiu 4,2 pontos percentuais, e Ricardo Nunes, com 24,9%, recuou 3,1 pontos.

Já a pesquisa Datafolha, publicada no dia 22, apresenta um cenário ainda mais favorável para Marçal, que saltou de 14% para 21% das intenções de voto, empatado com Guilherme Boulos (PSOL), que oscilou de 22% para 23%, e Ricardo Nunes (MDB), que caiu de 23% para 19%. Com essa dinâmica, a possibilidade de Marçal alcançar o segundo turno estão cada vez mais colocadas, embora alguns fatores ainda estejam em jogo.

Os escândalos recentes envolvendo sua candidatura podem ter efeitos, mas ainda são imprevisíveis. O primeiro deles envolve evidências de ligação entre os líderes de seu partido (PRTB) e articuladores de sua campanha com o PCC. Trocas de carros de luxo por cocaína, amplamente noticiadas, podem impactar negativamente sua campanha. Além disso, a comprovação de sua participação em uma quadrilha que aplicava golpes bancários será explorada por seus adversários e poderá ter consequências importantes.

Contudo, há um fator político que pode ser decisivo. Após uma postura vacilante, com elogios parciais a Marçal, Bolsonaro e seu clã adotaram uma atitude mais ofensiva, delimitando e desaprovando-o. Trocas de farpas nas redes sociais e declarações de Bolsonaro, que afirmou na CNN que Marçal é mentiroso e que nunca buscou seu apoio, marcam essa mudança de postura. Segundo alguns veículos de imprensa, Bolsonaro tem enviado vídeos contrários ao coach em suas listas de WhatsApp, dizendo que "certas coisas você não precisa experimentar para saber que é um produto estragado. Meu candidato em São Paulo é Ricardo Nunes."

Essa preocupação de Bolsonaro reflete o receio diante da ascensão de uma nova figura em sua base tradicional. Oriundo de Goiânia, Marçal busca associar sua imagem de empreendedor à de “agroboy” ligado ao agronegócio. Entre os inúmeros compromissos de campanha, ele não deixou de priorizar sua presença na Festa do Peão de Barretos, a maior do país, onde foi recebido de braços abertos pelo evento e por seus principais organizadores. Um sinal concreto de apoio dessas frações do agronegócio à candidatura de Pablo Marçal foi a doação de R$100 mil do bilionário Helio Seibel, até agora a maior doação para sua campanha.

Esses indícios apontam para frações de classes que podem estar mais entusiasmadas em seu apoio. Frações do agronegócio, as classes médias do centro-oeste e do interior de São Paulo, mas também da capital paulista, além de uma base plebeia que se identifica com essa teologia da prosperidade, compõem um leque que, como não poderia deixar de ser, se sobrepõe aos setores da base tradicional de Bolsonaro.

Nesse contexto, o entusiasmo da base bolsonarista em migrar para Marçal, mesmo contrariando as diretrizes de Bolsonaro, configura uma espécie de reação à institucionalização da extrema-direita. É simbólico que isso ocorra na capital do estado governado por Tarcísio, símbolo dessa institucionalização. É importante lembrar que Salles, que seria um candidato “legítimo” para essa base bolsonarista, foi preterido por Bolsonaro justamente para se alinhar a uma ala mais institucionalizada do regime. O próprio Marçal faz questão de lembrar esse episódio, dizendo que se lançou à prefeitura após a desistência de Salles.

É um fato que, após os eventos de 8 de janeiro, que deixaram Bolsonaro em uma correlação de forças desfavorável nacionalmente, os setores políticos que o apoiaram, como Tarcísio de Freitas, passaram a aceitar cada vez mais “as regras do jogo” e as condições estabelecidas pelo regime político dessa democracia degradada. Isso significa evitar confrontos constantes com o STF e promover ações de rua que desafiem os poderes do regime, práticas anteriormente utilizadas por Bolsonaro para barganhar seus interesses.

Diante de uma correlação de forças desfavorável para esse tipo de política, Bolsonaro tem calculado bem seus movimentos, optando por apoiar candidaturas oriundas desse bolsonarismo institucionalizado ou provenientes de partidos que, inclusive, compõem a Frente Ampla, como o MDB de Nunes.

A questão é que sua base, acostumada com eventos para desafiar “tudo e todos”, sente-se agora órfã de uma candidatura que rememore os velhos tempos do bolsonarismo em ascensão.

É nesse cenário que Marçal encontrou espaço. Mesmo com manifestações de apoio declaradas a Nunes, como sua presença no lançamento da candidatura, até agora não se pode dizer que houve grande engajamento de Bolsonaro na candidatura do MDBista.

Além disso, é possível que Nunes não tenha tido a melhor receptividade para um setor considerado “bolsonarista raíz”. Uma parte deles quer uma candidatura histriônica, que seja performaticamente reacionário, assim como fez Bolsonaro em toda sua trajetória e Nunes não é propriamente o candidato que encarna esse perfil.

Nesse contexto, Marçal optou por aparições performáticas nos debates, sendo especialmente provocativo contra Guilherme Boulos (PSOL) e levantando temas para agitar sua base de apoiadores. Com forte presença nas redes sociais e se posicionando como o mais ardente opositor de Boulos, Marçal passou a ser um fator real nas eleições de São Paulo.

É interessante notar que a postura do clã Bolsonaro não foi a mesma desde o início da candidatura. Enquanto Marçal ainda não tinha uma candidatura forte, Bolsonaro ensaiou elogios a ele, provavelmente tentando usar essas sinalizações para barganhar mais posições em relação a Nunes. No entanto, à medida que Marçal começou a avançar nas pesquisas, não só Bolsonaro, mas também seus filhos, adotaram uma postura mais agressiva contra o candidato do PRTB, como fez Eduardo Bolsonaro em um vídeo recente.

Neste momento, é difícil prever o resultado dessa disputa. Em essência, há uma batalha pelo espólio eleitoral de Bolsonaro enquanto ele permanece inelegível. Existe o perigo de que um "sucessor não autorizado" capitalize parte desse espaço político sem a bênção de Bolsonaro. Podemos estar diante de um primeiro episódio de um conflito sucessório que ainda terá muitos capítulos, e não está descartada a possibilidade de que, no curso dos embates, esses setores que hoje não estão alinhados cheguem a um acordo e passem a atuar em conjunto.

E esses dados são evidentes na pesquisa DataFolha. Segundo a agência de pesquisas: “O segmento onde Marçal mais avançou foi entre os que se classificam como bolsonaristas. Se no início de agosto ele tinha 25% das intenções de voto nesse grupo, tem agora 46%, ultrapassando Nunes, que encolheu de 37% para 26%. O mesmo movimento aconteceu entre os eleitores do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que oficialmente apoia o prefeito, assim como Bolsonaro. Nesse público, Marçal saltou de 25% para 41% no período, enquanto Nunes caiu de 42% para 28%.”

Ao mesmo tempo, é evidente o receio dos grandes meios de comunicação do estado de São Paulo de que a candidatura de Marçal possa acabar beneficiando Boulos. A mesma pesquisa AtlasIntel mencionada anteriormente mostra que Boulos perderia para Nunes em um eventual segundo turno, mas venceria Marçal, já que uma parte dos votos considerados de “centro-direita” poderia migrar para o candidato do PSOL.

Isso não significa, contudo, uma eleição mais fácil para Boulos. Ele havia se preparado para uma eleição com debates mais técnicos e menos polarizados. Não por acaso, reagiu intempestivamente às provocações asquerosas de Marçal com uma carteira de trabalho. Agora, o debate público se transforma completamente, e Boulos também precisará ajustar o tom e o conteúdo de sua campanha.

Não é por acaso que o candidato apoiado pelo PT vem adotando um tom moderado e conciliador na campanha. Ele incluiu um ex-comandante da Rota em sua equipe de campanha e fez declarações de que estaria disposto a negociar com Tarcísio, além de afirmar que não apoia mais programas que já defendeu, como a legalização da maconha. Este movimento reflete uma tendência de deslocamento à direita no debate eleitoral, com Marçal polarizando no polo da extrema-direita e Boulos assumindo uma postura mais domesticada e conciliadora no polo à esquerda do espectro eleitoral. Um momento que já havia se iniciado, mas agora a tendência é se aprofundar.

Num sentido mais estrutural, as eleições de São Paulo também revelam mudanças no regime político. Após o golpe institucional de 2016 e a ascensão de Bolsonaro, a direita neoliberal tradicional, liderada pelo PSDB, foi corroída pelo bolsonarismo que ocupou seu espaço. Nunes, embora seja do MDB, era vice de Bruno Covas, do PSDB, e para muitos setores está muito mais associado à velha direita neoliberal do que ao bolsonarismo.

No entanto, após a turbulenta transição de poder nas eleições presidenciais, diversas alas do regime, em especial o Judiciário, atuam contra aqueles que ameaçam a relativa estabilidade política do país. Bolsonaro foi abandonado por poderosas frações burguesas porque sua política era demasiadamente disruptiva, com enfrentamentos permanentes com outras alas do regime político. As ameaças do Ministério Público e do Judiciário contra Marçal fazem parte desse movimento de tentar conter e domesticar essas variantes políticas que podem promover maiores turbulências.

Essas ações, porém, não refletem uma “preocupação democrática”. Os poderes acumulados e centralizados que o Judiciário conquistou, ao que denominamos bonapartista pelo seu caráter autoritário e repressivo, inerente a uma democracia burguesa cada vez mais degradada, agora se voltam contra esses representantes da extrema-direita, mas já foram utilizados para possibilitar sua ascensão, como quando prenderam Lula arbitrariamente.

No fundo, Marçal é mais um sintoma mórbido da crise de hegemonia que atravessa o Brasil há quase uma década. Como desenvolveu o comunista sardo Antonio Gramsci, a crise de hegemonia é uma crise de dominação burguesa, na qual a crise de representatividade e a separação de grandes setores de massas de seus partidos tradicionais é um sintoma marcante.

Não é por acaso que Marçal repete a velha retórica da “antipolítica”, a mesma fórmula que levou Bolsonaro ao poder. Em certo sentido, ele ainda é um efeito retardatário dos fenômenos que começaram a se manifestar em 2016 e ganharam mais força em 2018. Candidatos como Doria, Witzel, Zema, além do próprio Bolsonaro, e toda uma fauna da chamada “nova direita”, que se dizia contrária à “política tradicional”, emergiram, contrariando as previsões clássicas dos analistas políticos.

Assim como Doria e Witzel, Marçal pode ter um prazo de validade curto e desaparecer com a mesma velocidade com que surgiu. Não é fácil prever como o eleitorado bolsonarista se comportará daqui para frente. Com a oposição declarada do seu “capitão”, Marçal poderá crescer nas pesquisas? Nesse caso, ele pressionará cada vez mais o debate público e os posicionamentos dos outros candidatos para a direita.

Por outro lado, seria possível algum tipo de acordo entre Bolsonaro e Marçal para rearticular suas posições a partir de São Paulo? Esta última seria, sem dúvida, a jogada mais arriscada para Bolsonaro, e, portanto, improvável, pois significaria romper com seus principais aliados no regime político justamente num momento em que ele não pode se isolar, sob pena de ver aumentar a ofensiva contra ele.

Ao mesmo tempo, ter sua hegemonia questionada no campo da extrema-direita seria um golpe profundo para suas posições. Ainda estamos distantes de um cenário como esse, mas esses são os riscos que motivam Bolsonaro a se posicionar mais frontalmente contra o ex-coach.

Em sua essência, Marçal expressa elementos de classe estruturais que permitiram a ascensão da extrema-direita. O peso do agronegócio e o discurso ideológico a favor do empreendedorismo são as bases materiais nas quais se apoia. Além disso, sua chapa conta com uma vice que é policial militar, abertamente contrária ao direito ao aborto, para agradar os setores mais reacionários do fundamentalismo evangélico.

São justamente essas bases materiais que o governo de Frente Ampla vem fortalecendo. Lula ofereceu o maior Plano Safra da história para o agronegócio. Favoreceu o governador Tarcísio de Freitas com vultosas cifras do BNDES, além de oferecer um ministério ao Republicanos. Nas eleições municipais, o PT está se coligando com diversos setores reacionários do bolsonarismo, como mostramos neste artigo. Além disso, Lula vem buscando renovar seus compromissos com a bancada evangélica, deixando claro desde a campanha que não tocaria no tema do direito ao aborto.

A tentativa de institucionalizar e domesticar a extrema-direita através do Judiciário tem como contrapartida o fortalecimento desses atores políticos e econômicos que desejam uma variante política mais agressiva, que retome o bolsonarismo em seu momento de maior radicalização. Isso mostra que a política de conciliação de classes acaba por fortalecer a extrema-direita, que pode renovar suas apostas diante de novos cenários, como vem fazendo com Marçal.

Mais do que nunca, é fundamental uma alternativa de independência de classes que combata a ideologia individualista do empreendedorismo neoliberal, que pretende fragmentar e atomizar ainda mais a classe trabalhadora. Esse discurso busca a manutenção de todas as contrarreformas, como a trabalhista e da previdência, e apoia entusiasticamente a política de “equilíbrio fiscal”, tendo no Arcabouço Fiscal um guardião dos interesses do capital financeiro.

 

Fonte: Esquerda Diário

 

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